terça-feira, março 23, 2021

O tal vazio

Que boa a sensação! Às vezes é positivo ser pouco lida, posso contar segredos. Ontem, aconteceu algo alucinante. Eu que sempre gostei de vestir-me... Não, melhor contar no final. Estava no centro, tomava um café, sentada numa mesa digna, de cafeteria conhecida. Olhava as pessoas, tão belas, quando vislumbrei o tal homem. De início, não fiz menção de pensar bobagens, principalmente a de me entregar cega nos braços de um homem. Ele passava como as outras pessoas, eu tinha um livro à mesa, acho que ainda permeava minha mente rastros do tal romance. E era bom o livro. Mas o homem voltou. Acho que reparou a tal mulher aérea, diva à espera de sua glória. Fez que iria ao balcão, depois escolheu a mesa, quase ao meu lado, pediu enfim o café. Ouvi sua menção ao garçom. Pouco a pouco, voltou-se para mim, sorriu; depois, tentou cumplicidade através do livro sobre a mesa. Arregalou os olhos como alguém que tenta adivinhar o título. Talvez pensasse numa possível pergunta minha sobre se o tinha lido. Mas permaneci plácida, perdida em minhas questões, distante, acho que do outro lado da rua, onde passava uma mulher de vestido vermelho. O homem insistiu, tomou o café, parecia querer irmanar-se às mesmas minhas atitudes.

Tenho uma amiga que sai de primeira com os homens que conhece. Não podemos ter alguém para algo aquém do sexo?, talvez uma conversa sobre livros (na certa, haverá alguém a dizer que não há nada mais sexual do que este tipo de relação). Existem tão poucas pessoas que falam sobre livros nos dias de hoje. Não, não é possível, ela me afirmou, podemos até mesmo lembrar que elas existam, mas não acaba aí. Ri-me da lembrança.

O homem notou o sorriso, o rosto aberto, desvendou meus pensamentos. Talvez não a conversa com a amiga, mas minha necessidade de conversar sobre livros. Livros são o céu inatingível, disse em voz baixa, por mais que os leiamos jamais conseguiremos alcançar sua totalidade, mesmo escolhendo apenas um ramo do conhecimento. Inteligente ele. Tinha capacidade de levantar véus. Não precisou de muito tempo para me seduzir. Falou sobre literatura. Aliás, não gostava da palavra literatura, preferia livros. Tinha seus motivos.

Minha intenção, a princípio, era conversar no próprio café e, quem sabe, entraria na livraria em frente. A literatura tem o seu peso, concluiria eu depois. Não me bastaria o café e a conversa sobre os escritores preferidos. Não sei se ele estava sendo sincero ou se empregava diversos de seus ardis. Mas sabia de cor alguns trechos de romances, estrofes perdidas de epopeias antigas. Saímos do café; a seguir, como previsto, a livraria. Tão bonita, não? Chegou a encontrar algumas capas atraentes, pérolas de design. Fez de conta que partiria, em dado momento. Acho que me reparou a face triste. Ficaria desprovida de companhia tão interessante. Você tem compromisso, cheguei a afirmar de modo interrogativo. Talvez não, sorriu. Pronto. Depois das poucas palavras, um acordo tácito. Percorremos algumas bancadas, encontramos o livro Se houvesse sol. Bom livro, começou a discorrer, uma escritora promissora; a princípio parece lugar comum, mas pouco a pouco a história vai avançando em duas frentes: batalha pela escrita e contra a solidão; já reparou como há escritores que escrevem sobre a solidão; talvez escrever seja um meio de vencer a solidão; há neste livro uma mulher que parte em busca de um homem, verdadeiro trabalho de detetive; ela, porém, encontra o vazio; isso mesmo, o vazio produzido pela escrita; quanto mais escreve, tanto maior o vazio incontornável; não digo mais, é bom você mesma ler, concluiu.

Há momentos em que uma mulher tem o desejo de se atirar nos braços de um homem. Talvez um caminho de fuga fácil, talvez o instinto suicida, no fundo uma tentativa de equilíbrio sobre corda frágil, dois prédios altíssimos, desertora de uma família de equilibristas. Já tínhamos bebido café, o que eu poderia sugerir, além de andarmos a esmo pelo centro velho, a observar prédios de um ou dois séculos?

O homem se mostrava mais forte, não me convidaria a ir com ele. Em algum momento, parou e olhou, talvez para o mesmo vazio que encontrara no livro apontado momentos antes. Eu não podia convidá-lo, seria mulher vulgar, sobretudo após um passeio cultural. Convidei-o para mais um café, naquele momento houve uma cafeteria que pareceu abrir-se apenas para nós dois. Pedimos mais dois cafés e continuamos nossa história, preenchida por mais silêncios do que palavras. Descobri, então, o segredo. Não o que ameacei revelar lá no começo, mas o segredo de um relacionamento saudável: muitos os silêncios, poucas as palavras. E fomos assim, como dois cães que se cheiram sem nada dizer, circundam-se sem conhecer o círculo, separam-se sem pensar na saudade, sabem que se encontrarão no semelhante próximo. Estávamos condenados a fazer como estes pequenos animais. E fizemos. De quem a iniciativa? Mais uma vez nossos silêncios ajudaram.

Mas não era esse o segredo. Naquele dia, eu vestia um vestido muito curto. Quanto mais a presença dele crescia, tanto eu me sentia nua. Ele reparou. Mas, no fundo, gostei. Fiquei a pensar como conseguia conciliar literatura e alguma libertinagem. Arrependi-me, há namorados que desejam mais do que a pele por baixo das nossas saias.

O vazio colocado por ele, entretanto, era de outra natureza.

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