domingo, maio 24, 2020

Lingerie da mesma cor

Marquei de telefonar e encontrar com ele, um homem para quem já trabalhei e sempre se mostrou afetuoso, que me enche de presentes e de algum dinheiro, mas faz dois dias conheci outro cara, que me provocou um arrepio prolongado, por isso não telefonei, optei pela nova aventura. Quando surge alguém que não conheço, vejo a possibilidade de um novo relacionamento, um tipo de namoro, não uma vida conjugal, é claro. Na verdade, uma nova experiência. Surgiu alguém que pode me proporcionar o que ainda não senti com nenhum outro. Esse negócio de desejar novas experiências já me causou alguns sustos. Não é bom sair com um homem de primeira nem com um desconhecido; às vezes, no meio da trepada, eles falam coisas de arrepiar, fico morrendo de medo. Certa vez um deles disse que tinha uma faca na bolsa, que ia me espetar com a ponta, ia fazer pequenos cortes na minha pele, narrava e enfiava o enorme peru dentro de mim. Fiquei morrendo de medo, com o cu apertadinho, como dizem por aí por meio de uma expressão chula mas verdadeira; após gozar, quis saber se o homem tinha a faca mesmo, mas, como não tocou no assunto, não perguntei. Uma amiga, para quem contei a história, tem certeza de que fiquei excitada com a possibilidade da tal da faca, e bem que gostaria de sentir a ponta afiada deslizando sobre meu corpo! Será? Mas este que conheci, que me fez renegar o primeiro, já vem há certo tempo me azarando, acho que não vai haver perigo, não, e parece ser tão gostoso, tem o tipo que possui um pênis longo e grosso. Não é muito alto, acho que quatro dedos a mais do que eu, mas é musculoso, costas largas, bom nadador, o tipo de homem com muita potência. Marquei de encontrar depois de amanhã, após o trabalho. Vamos tomar um copo num bar recém inaugurado, em Botafogo. Nas proximidades há um hotel, por isso já sei o que acontecerá depois. Vou com lingerie nova, calcinha e sutiã da mesma cor. Engraçado, dizem que quando uma mulher sai com um homem, vestindo calcinha e sutiã da mesma cor, é porque está a fim de trepar. Será? Já saí com as duas peças diferentes e mesmo com apenas uma! A tal amiga que deu seu parecer sobre a faca diz que já foi a um forró vestindo apenas um vestido de malha, justinho sobre a pele, nada mais. Você é louca, retruquei, caso algum homem te agarre, não poderá reclamar. É isto mesmo que eu estava querendo, ela disse. Em termos de relacionamentos, cada uma com sua loucura. Sei que muita gente está doidinha pra saber sobre esta minha nova aventura. Mas ainda não aconteceu!, só depois de amanhã. Eu conto, não vou esquecer, todos os detalhes. E o homem pra quem já trabalhei, que me enche de presentes e de algum dinheiro, será que vai ficar a ver navios? Nada disso, tenho a desculpa prontinha. Na última vez que dei bolo, disse que fui assaltada, me roubaram o celular. Ele caiu direitinho. Sempre volta. Meu telefone está tocando! É aquele por quem estou doidinha. Será que vai antecipar nosso encontro? E não estou nem com a lingerie da mesma cor.

domingo, maio 17, 2020

Pendurada no pescoço

Outro dia li uma história interessante. Uma mulher – professora de inglês – seguia no metrô ao apartamento do namorado, era hora do almoço. Ficaria sozinha durante várias horas, no silêncio ou no ligeiro rumor de uma tarde de junho. Ele morava à rua Bulhões de Carvalho, ali entre o Posto e Seis e o Arpoador. O tal namorado trabalhava muito, chegava tarde, quando chegasse ela já teria partido, não sei para uma aula ou para a própria casa. A ida até o local era para descansar, ou ler um livro, horas de prazer que apenas a solidão pode contemplar. Pensei, então, na minha vida. Tenho filha adolescente, minha mãe mora comigo, o apartamento tem dois quartos. Caso arranjasse namorado como a mulher do conto seria o paraíso. Descanso e carinho, ações necessária para uma mulher em plena vida ativa. E, feliz coincidência, sou também professora de inglês.

Ter namorado, grande problema para mim! Talvez isso revele que não sei administrar minha vida privada. Criar sozinha uma filha, dar-lhe educação, cultura, uma boa moral, não é fácil. Por isso acho que os namorados ficaram sempre em segundo plano, o que faz que se afastem, vão em busca de mulheres mais acessíveis. Ninguém quer ficar em segundo plano. Tenho uma amiga que perguntou: por que você não leva o namorado para sua casa? Sinceramente, não sei se seria bom. Causaria um estranhamento, minha filha na certa arregalaria os olhos, “minha mãe com um namorado, já não vai querer saber de mim”, e minha mãe vai dizer que estou procurando homem, coisa que ela nunca fez depois do dia em que ficou viúva. Sou separada desde o nascimento da menina, namorados até hoje só da porta para fora, e muito raramente. Tive um namorado sim, faz três ou quatro anos, a gente se encontrava à tarde, namoro das três às cinco, ou das quatro às seis; eu correndo, como uma louca, de volta para casa. A gente foi a uma casa de chá, no centro, duas vezes ao cinema, e a um hotel, também no centro. Comecei a falhar aos encontros. Problemas domésticos, dizia a ele. Achou que perdi o interesse por ele. Acabamos nos afastando por tanto tempo que ele, provavelmente, arranjou outra, tantas mulheres por aí, mais jovens e mais nuas do que eu. Lá se foi o homem, sem adeus. Um dia desses nos encontramos ao acaso, eu estava com minha filha, dei um rápido aceno a ele e segui meu caminho.

Na escola, há um professor que sempre vem falar comigo, maior delicadeza, me dá a maior importância. Conversamos nos intervalos, às vezes também quando estamos saindo, ele vai a caminho do metrô, eu sigo um pouco mais, ao ponto do ônibus. Seu assunto é sobre cultura: peças de teatro, filmes, um ou outro livro. Minha vida dupla, de professora e dona de casa, não me permite frequentar os eventos enumerados por ele. Seria uma boa amizade o tal professor. Ao descobrir que vive só, achei possível namorá-lo. O destino seria o mesmo do namorado anterior? Não posso ser tão pessimista, e a menina já vai pela adolescência.

Tenho uma amiga que olha os homens recém-apresentados com aquele olhar de volúpia. Não sei dizer outra palavra. Sai com eles de primeira, e diz preferir os casados. Estes não contam para ninguém, são de extrema discrição, e não exigem permanências demoradas. Não é que ela não possa passar longas horas com o namorado, sua filha fica sozinha e ela não tem mãe para morar junto, é porque não deseja que namoro se torne casamento. A palavra a assusta. Podemos usar outra, como namoro, relacionamento durável ou estável, mas ela diz tratar-se de eufemismos. Casamento desgasta. É bom cada um ter a sua independência. Não penso assim, adoraria ter alguém para ficar comigo, morar comigo, alguém carinhoso, dedicado. Diz ela não existir essa pessoa, ou melhor, existe sim, mas na cabeça de mulheres sonhadoras. Discordei, disse ter uma amiga feliz ao lado do marido, ou do eterno namorado, não sei bem. Aparências, diz, tudo aparências. Mas você não acredita naqueles que foram feitos um para o outro? Não, ela afirma, isso é muito difícil.

Volto ao conto, sobre o qual falei lá no começo. A professora de inglês e seu namorado, morador de Copacabana, rua Bulhões de Carvalho, alguns dizem que essa rua fica no Arpoador. Que seja, melhor ainda. Mas ela aparece no conto sozinha, o namorado é alguém distante. Chega ao apartamento, tira a roupa e fica de calcinha. No silêncio e na meia sombra da tarde. Repousa, lê um livro, escuta a campainha, sobressalta-se. A faxineira do apartamento de frente pede, por favor, um saco plástico; mulher alegre, ainda no corredor do sexto andar fala em divertir-se. A professora sorri e entrega o saco. Volta ao silêncio da tarde, senta-se na poltrona e retoma a leitura. O namorado é uma imagem distante. Ela não vai encontrá-lo naquela tarde, nem na noite próxima. Um conto sobre a solidão, dou-me conta.

Teimosa, acredito no amor, nos relacionamentos. Ah, o professor e nossos momentos de intervalos, seu sorrisinho matreiro. Vou lhe enviar um zap, de repente mora num apartamento em Copacabana. Poderei então descansar, libertar-me de todo o stress de dona de casa, quem sabe também sentar nua numa poltrona para ler um livro. E para não ficar apenas na solidão, encontrá-lo vez ou outra, namorá-lo, pendurar-me no seu pescoço.

domingo, maio 10, 2020

A pantera

A quinta-feira ia clara, o Largo do Machado movimentado como sempre, com seus camelôs, passantes, gente sentada à beira do lago e outras aglomeradas na saída do metrô. Nas bordas da praça, idosos aproveitando a hora que antecedia o almoço jogavam cartas. Um amigo atravessava em direção ao metrô. Consegui alcançá-lo,  toquei-lhe o braço.

“Que tal visitarmos o César? Ele está internado numa clínica a dois quarteirões. Ontem enviou mensagem pedindo pra gente dar uma chegadinha lá.”

“O César? O que ele tem?”

“Erisipela, está com a perna muito inchada, o médico decidiu pela internação.”

“Poxa, que chato, hein?”

“Mas a visita só começa  duas da tarde”, dei a sugestão e, ao mesmo tempo, demonstrei certo enfado, teríamos de esperar um longo tempo, duas ou três horas.

“Duas da tarde, é?”, franziu a testa. “O que vamos fazer durante esse tempo todo?”

Confesso que me envergonhei. Não havia pensado nas consequências do convite. Trabalhava com ele, éramos professores na mesma escola, naquele dia só trabalhamos durante a manhã. Teria de sair da situação embaraçosa, mas ele falou primeiro.

“Tenho uma ideia.”

Fiquei a olhá-lo, meus olhos fixos, reparei seus cabelos castanhos que desciam cobrindo-lhe as orelhas. Achei simpática sua face, os fios dos seus cabelos longos eram frágeis, mas lhe davam certo charme.

Entramos na rua das Laranjeiras, caminhamos duzentos metros, sugeriu que parássemos numa lanchonete. O local era desses onde se paga na caixa e se recebe o pedido do funcionário que fica ao lado. Duas jovens trabalhavam. A que buscava o lanche olhou meu amigo com insistência, notava-se claramente que fora tomada, pelo menos durante alguns segundos, por um pensamento de volúpia. Sorri a ela, que pareceu entender meu sorriso. Talvez observar os homens e desejá-los tornasse mais ameno o dia. Senti uma ponta de inveja, era como se tentasse me roubar o homem, ou, pelo menos, uma parte dele. Meu amigo pedira dois copos de suco de maracujá, um para ele outro para mim. Quem sabe a fruta maneirasse meus pensamentos.

Depois da Pinheiro Machado há uma rua que leva a uma biblioteca pública, era para lá que meu amigo tinha a intenção de ir, assim mataríamos o tempo.

“Está muito calor, conheço a biblioteca, lá não há ar-condicionado”, minha fisionomia devia transmitir desânimo, na verdade vinha da escola, não queria saber de livros.

“Livros não são sinônimos de escola, nem de estudo, servem também para o lazer”, acrescentou, adivinhando meus pensamentos.

Sou professora de Inglês, confesso que não estou acostumada a pegar livros emprestados em bibliotecas, nem leio com muita frequência, mas o admirei por isso. Ele procurava nos livros a realização de um prazer, um modo de vida ou, quem sabe, uma filosofia.

“Moro aqui perto, acho que vou pra casa, assim tomo um banho e descanso um pouco”, disse um tanto atabalhoada. Depois, ao refletir, achei que não deveria ter sido tão abrupta.

“Tudo bem”, ele, não sem uma ponta de tristeza, rebateu.

Quando já se preparava para partir, sugeri:

“Não quer ir até lá em casa? Deixe os livros para outra hora.”

Ainda não convidara colega algum da escola para ir a minha casa. Embora o convite tenha sido feito sem muita reflexão, achei que não seria nada demais.

Sorriu. Achou boa a ideia. Na rua o movimento de meio-dia era barulhento, ônibus e muitos carros subiam em direção ao Cosme Velho. Crianças saíam da escola. Meu prédio era no começo da General Glicério.

Quando entramos, não havia ninguém na portaria. Onde estaria o zelador? Melhor, já fazia tempo que não convidava homem algum para subir. O último namorado partira fazia mais de um ano, e fora alvo de olhares desconfiados da vizinhança. Apesar de Laranjeiras ser um bairro da zona sul do Rio, com muitas pessoas escolarizadas, de nível superior, a quantidade de fofoqueiros e fofoqueiras era grande. Saímos do elevador no sexto andar, abri a bolsa e tirei a chave. Logo ao entrar, fui abrir à janela da sala.

“Espere um pouquinho, vou fazer um café”, quis ser delicada.

“Não precisa se preocupar, descanse um pouco”, interveio.

Mesmo assim fui à cozinha e preparei a cafeteira.

“Está muito calor, é melhor ligar o ventilador”, sugeri, o interruptor é o mesmo que o da luz.

Meu amigo levantou-se e acionou o ventilador de teto.

O que conversar num momento como aquele? Desviara-o da biblioteca pública, convidara-o para vir comigo sem segundas intenções. Comecei a pensar se ele falaria para alguém da escola sobe a visita ao meu apartamento. Sou discreta, nada conto sobre minha vida, seria interpretada de modo equivocado.

“Também tenho livros, sabe”, disse eu de repente.

Ele sorriu.

“Que bom, são livros de literatura?”

“Sim, literatura de língua inglesa, é lógico, dou aulas de inglês.”

“Tenho uma amiga que se formou em francês, mas diz não gostar de literatura, estranho, não é mesmo?”

“Não, não é tão estranho, há professores que querem ensinar apenas a língua, o básico para a comunicação, uma língua estrangeira para viajantes”, arregalei os olhos após a última palavra.

“Mesmo entre os professores de literatura são poucos os leitores, tenho observado, não vejo ninguém carregando um romance, ou mesmo falando de um bom livro’”, acrescentou.

Pedi licença e corri à cozinha. A cafeteira fazia seu gargarejo demonstrando o término da preparação do café. Enquanto tirava do armário uma pequena bandeja com duas xícaras, pensei numa amiga que não acreditava na amizade entre homem e mulher. Pessoas de sexo diferentes têm interesses que vão além da amizade. Meu amigo não dava sinal de que estava interessado em mim, pensava mesmo era na biblioteca. Tenho uma amiga não acredita em nada disso. Quando vai à praia, usa um biquíni curtíssimo, a bunda toda de fora. E ela já passa dos cinquenta. Gosto de homens másculos, que me levem pra cama, chego a gritar na hora do prazer, afirma. Também não titubeia ao trepar com um homem de primeira, no mesmo dia em que o conheceu. O perigo me excita, diz.

Meu amigo sentado na sala tirara um livro da mochila quando cheguei com o café. Colocou-o sobre o sofá, ao seu lado, pegou a xícara e bebeu os primeiros goles. Pousei a bandeja sobre a pequena mesa e segurei também minha xícara. Ele tomava o café totalmente amargo.

“Você não quer açúcar?”, pareci assuntada.

Ele disse não, preferia sentir o gosto puro do café. Ah, meu amigo gosta de sentir o gosto original, puro, das coisas. Talvez seja um bom homem. Coloquei meu adoçante e fui bebendo pouco a pouco.

“Você acha a leitura tão importante assim?”, perguntei.

“Não sei, acho importante pra mim, mas para os outros depende de cada um.”

“Tua resposta é sensata, não procura impor o que gosta.”

“Também gosto de outras coisas, como sair por aí, andar em em meio à natureza, conhecer pessoas, conversar, não apenas ler. Mas confesso que a leitura me seduz.”

Levantei e caminhei até a janela, abri-a um pouco mais. Ele se levantou e veio ao meu lado.

“Bonito olhar o bairro daqui de cima.”

“Você acha?”, perguntei, “esse lugar é tão provinciano.”

Virei-me para ele, toquei-lhe um dos braços e sorri. Temi que me achasse uma rua desimpedida, não queria ser vulgar.

“O teu cabelo é tão liso”, reparou, e fez um carinho na lateral do meu rosto.

“Oh, o café vai esfriar”, fingi assustar-me.

“Que esfrie, há coisas mais quentes”, demos uma gargalhada após as palavras dele.

Se fosse outro os tempos, já estaria nua nos braços deles. Mas achei melhor esperar, o terreno era favorável. Sentamos mais uma vez, olhei as horas.

“Ainda é cedo, as visitas começam às duas em ponto”, confirmei.

“Não faz mal, está bom aqui, tua casa é muito legal.”

“Você não quer comer alguma coisa?, tenho tanta comida na geladeira.”

“Não, não me importo, lanchei bastante às dez horas, deixe o tempo passar um pouco, ou, quem sabe, a gente come algo por aí, depois de visitar o César."

Sentada na poltrona, de frente para o sofá, descruzei as pernas e alternei a posição, agora com a direita sobre a esquerda. O que vamos conversar agora?, cheguei a pensar. Ele mergulhara num silêncio demorado, tomou nas mãos o livro que tirara da mochila e olhava a capa. Mas achou indelicado abri-lo, o que fez foi guardá-lo novamente.

“Você se incomoda de ficar sozinho um pouco?, estou com muito calor, acho que vou trocar de roupa”, falei. Nas verdade, eu queria mesmo era tomar uma ducha.

“Fique à vontade, não se preocupe comigo.”

Saí da sala, corri primeiro ao banheiro. Acho que se a gente tivesse bebido vinho ou outra bebida alcoólica as coisas teriam sido diferentes, refletia eu nua, preste a abrir a ducha. Imaginei-me saindo nua do banheiro, ou enrolada numa curta toalha. Tais pensamentos, porém, não iriam se concretizar. O fato de pedir para trocar de roupa já fora uma inciativa ousada. Ele me imaginaria tirando o vestido, procurando por outro, ou mesmo me veria nua em pensamentos ao ouvir o replicar da água da ducha no chão do boxe.

Quando saí do banheiro, corri ao quarto, fechei a porta e comecei a me vestir. Escolhi uma camisa branca com uma estampa em inglês, no lugar da saia optei por uma calça que me deixou com as canelas de fora. Ajeitei o cabelo, esguichei rapidamente um perfume qualquer e voltei à sala. Meu amigo lia seu livro.

“Desculpe, é que não aguentava mais o calor.”

Nada falou, apenas fez um gesto de aprovação com a cabeça. Reparei o nome do livro que ele lia, era em francês: La panthére des neiges, de Sylvan Tesson.

“Que chique, um livro em francês.”

“Sim, é um bom romance, ganhou um dos maiores prêmios de língua francesa.”

“É interessante?”, perguntei.

“Sim, é sobre quatro pessoas que vijam ao Tibete: um fotógrafo, sua companheira, um escritor e um ajudante com jeito de filósofo. Vão em busca de uma pantera, como diz o título, pantera das neves, animal raro, praticamente em extinção, existente apenas naquela região. .

“Hum , deve ser interessante, Tibete, pantera, neve, tudo o que não existe por aqui. Mas fale mais, estou gostando.”

“O objetivo é observar a pantera e fotografá-la. A trama do livro gira em torno dessa situação. Mas não se trata de uma narração sobre o mundo animal nem sobre lugares exóticos. Na verdade, é uma filosofia de vida. Os personagens estão à procura de lugares pelo mundo fora do circuito da mundialização. Por causa da internet, pensamos que tudo e todos os lugares estão ao nosso alcance. Mas isso não é verdade. Na maior parte do tempo os integrantes da expedição vivem situações extremas. A temperatura é de menos 25 graus, a altitude em torno de 5000 metros. O melhor de tudo é descobrir como olhar o mundo ao redor, toda a riqueza que ele possui. A pantera não aparece com facilidade. Muitos exploradores permanecem o inverno inteiro à espera, mas não conseguem descobri-la. O narrador diz que, depois dessa experiência, aprendeu a ver o mundo de modo diferente. Olhar de modo disfarçado ou espionar, em francês, é guetter. Diz que, quando estiver de volta, num ou noutro café de Paris, saberá observar o mundo de modo bem diverso de como fazia antes. O livro não narra uma história sobre ecologia nem sobre animais, é lógico que há a necessidade de preservá-los, mas o que fica é uma reflexão sobre o mundo e o modo de vida contemporâneos. Apesar de ser um romance, a viagem foi verdadeira. Além do livro com a aventura, há outro, publicado pelo fotógrafo, com as fotos da pantera e de outros animais da região.”

“E como acaba a história?”, cheguei a rir, confesso que naquele momento não entendi a importância do assunto.

“Acaba como todo livro acaba, quando chega ao final”, meu amigo entrou no meu jogo e deu uma sonora gargalhada.

“Se um dia você conseguir o livro de fotos, me empreste”, pedi. “Vamos tomar um pouco mais de café e vamos ao hospital. Quando chegarmos lá, acho que já será a hora de visitas.”


Poupemos o leitor da visita ao hospital. Todos já foram visitar algum doente. Muita gente de branco, ou de verde claro (cor que adotaram nos últimos tempos para o pessoal da saúde), médicos, enfermeiras, funcionários diversos, corredores compridos, este higienizados (pelo menos na aparência), salas de espera, equipamentos para cada tipo de enfermidade, camas com encosto levantado, grades, hastes sustentando o soro, agulha nas veias. O que poderia criar imagens mais vivas? Ficamos com o doente mais ou menos três quartos de hora. Agradeceu nossa visita, mas durante a maior parte do tempo ficou olhando suas mensagens no celular.

Na saída, olhei meu amigo e sugeri:

“Que tal comermos algo agora?, estou morrendo de fome.”

“Boa ideia, achei que você ia esquecer.”

“Nada disso, comer é uma das melhores coisas, conheço uma ótima lanchonete, no Largo do Machado.”

Voltamos pela Pinheiro Machado e entramos na Laranjeiras, no sentido de quem desce ao Aterro. Andamos lado a lado.

“Gostei dessa pantera aí do teu livro” falei e segurei sua mão. “Precisamos conversar mais  sobre ela.”

Manteve a mão segurando a minha. Como não quisesse me perder, fechou os dedos, selando a relação.

Tive vontade de beijá-lo, um beijinho no rosto, bem ao lado dos lábios, bastaria virar a face à esquerda e chegar um pouquinho mais. Tive medo que viesse alguém, no caminho sempre circulavam muitas pessoas da escola, outros professore, alunos, quem sabe alguém mais. Resisti ao desejo, torcendo-me dentro das roupas.

Soltamos as mãos apenas na lanchonete, quando tivemos de pegar as esfirras e os refrescos que nos serviriam de lanche.

Daí em diante noites e mais noites, histórias e mais histórias. A pantera.

domingo, maio 03, 2020

Confinamento

Ia contar uma história engraçada, vivida por mim numa praia em Rio das Ostras. Mas por causa do confinamento, resolvi falar de outra coisa, um pouco diferente do que aconteceu na Costa Azul.

Vocês sabem que adoro andar nua. Já saí nua, de carro, várias vezes, sozinha ou ao lado do namorado. É o maior frisson, principalmente no lugar onde moro. O carro na garagem, entro,  ligo e dou a partida. Instalei um portão de garagem eletrônico para poder saltar da varanda ao banco do motorista, assim não preciso descer do carro para, do lado de fora, ter de fechar o portão. Os vizinhos acharam um luxo. Sou preguiçosa, falei, enquanto o tal portão abria e fechava, automático. Não souberam o verdadeiro motivo. Até hoje tudo sempre correu bem, até o dia que resolvi ficar nua, na praia, em Rio das Ostras. Mas não é sobre isso que quero falar agora! É sobre o tal confinamento.

Antes, o máximo que podia acontecer era eu ser surpreendida por estar nua; agora, posso ser surpreendida porque saí de casa. Vejam a contradição. Alguém resolve passear nua por aí, é uma fora da lei. Os bons costumes não permitem a nudez. No entanto andar por aí, passear, olhar o mar, ou a paisagem da montanha que há do lado oposto, agora também é uma falta perante a lei. Estando vestida, é preciso ressaltar. Será que posso suportar isso? Há ainda a multa ou mesmo a prisão. Verdade. Aqui onde moro, à primeira vez surpreendida do lado de fora recebe-se uma advertência; à segunda, uma multa; caso aconteça a terceira, levam o infrator ou a infratora para a delegacia. Razões sanitárias, dizem.

Resolvi burlar a tal lei. Não estou contaminada por este novo vírus, tenho certeza. Moro sozinha, não tive contato com ninguém atualmente. Portanto, decidi que posso sair. Mas como as autoridades da minha cidade são turronas, resolvi sair nua! Burlo a lei em dobro. Azar o deles. Acordei às quatro da manhã, tomei uma ducha e saí. Isso mesmo, as ações foram exatamente essas. Alguém poderia perguntar: ela não descreve mais nada? Como poderia responder se não há mais o que descrever. Nua, isso mesmo, inteirinha sem roupa alguma. Montei a bicicleta e pedalei à praia. Tinha uma hora e meia para viver minha transgressão dupla.

O namorado, que mora em Rio das Ostras, sabe que adoro sair por aí em pelo; melhor, em pele. Mas nem para ele falei. Cavaleiros estava límpida, uma claridade de lua próxima ao horizonte, corri e molhei os pés. A água não estava fria. Lógico que um mergulho me faria tremer um pouquinho, mas tinha a bicicleta, bastava pedalar rapidinho. Bom aquecimento. Lembrei-me de um amiga a quem contara de modo resumido meu amor pela nudez. “Também gosto”, disse ela, “certa vez desci nua do terceiro andar da minha casa e fui até o portão. Na época, eu alugava uma parte independente da casa a uma mulher. Ao chegar lá embaixo, ela estava no portão, parecia esperar alguém. Mas, felizmente, não me viu. Subi os dois lances da escada e bati para o namorado abrir. Tempos depois disse a mim mesma, tenho de parar com essas loucuras, se meus filhos me surpreendem nua lá embaixo vão me internar justificando que a mãe enlouqueceu!” Ambas rimos muito. Quem sabe encontro com ela, também nua, por aí. Seria divertido. Pior se encontrar um homem, o que poderei dizer? Não teria chance alguma de escapar. Mas nem homem nem mulher. Todos em confinamento. Bem que eu gostaria de encontrar um homem, sempre há o desejo, mesmo inconsciente. Na minha cidade todos me conhecem, e sou tão cobiçada. Melhor procurar alguém em outro lugar.

Depois de uma hora e pouco, ao leste apontou um vermelhinho. Montei a bicicleta e pedalei de volta. Não fui pela avenida principal, é lógico. Que arrepio, cheguei toda molhada. Não sei se nervosa ou frisson. Mais provável o frisson.

Em casa, veio-me à mente a tal praia na cidade vizinha. Eu e a mania de tirar a parte de baixo, o biquíni, entregá-lo nas mãos do namorado. Ninguém nota, não; a água é escura, principalmente no fim da tarde. Mas naquele dia decidi fazer o contrário, ao invés da calcinha deixei em suas mãos o top! Ele chegou a dizer a água não esconde os teus seios. E fez a tal brincadeira, levou meu top lá pra cima, guardou-o na minha bolsa. Não deu certo.

Fique em casa.