domingo, maio 10, 2020

A pantera

A quinta-feira ia clara, o Largo do Machado movimentado como sempre, com seus camelôs, passantes, gente sentada à beira do lago e outras aglomeradas na saída do metrô. Nas bordas da praça, idosos aproveitando a hora que antecedia o almoço jogavam cartas. Um amigo atravessava em direção ao metrô. Consegui alcançá-lo,  toquei-lhe o braço.

“Que tal visitarmos o César? Ele está internado numa clínica a dois quarteirões. Ontem enviou mensagem pedindo pra gente dar uma chegadinha lá.”

“O César? O que ele tem?”

“Erisipela, está com a perna muito inchada, o médico decidiu pela internação.”

“Poxa, que chato, hein?”

“Mas a visita só começa  duas da tarde”, dei a sugestão e, ao mesmo tempo, demonstrei certo enfado, teríamos de esperar um longo tempo, duas ou três horas.

“Duas da tarde, é?”, franziu a testa. “O que vamos fazer durante esse tempo todo?”

Confesso que me envergonhei. Não havia pensado nas consequências do convite. Trabalhava com ele, éramos professores na mesma escola, naquele dia só trabalhamos durante a manhã. Teria de sair da situação embaraçosa, mas ele falou primeiro.

“Tenho uma ideia.”

Fiquei a olhá-lo, meus olhos fixos, reparei seus cabelos castanhos que desciam cobrindo-lhe as orelhas. Achei simpática sua face, os fios dos seus cabelos longos eram frágeis, mas lhe davam certo charme.

Entramos na rua das Laranjeiras, caminhamos duzentos metros, sugeriu que parássemos numa lanchonete. O local era desses onde se paga na caixa e se recebe o pedido do funcionário que fica ao lado. Duas jovens trabalhavam. A que buscava o lanche olhou meu amigo com insistência, notava-se claramente que fora tomada, pelo menos durante alguns segundos, por um pensamento de volúpia. Sorri a ela, que pareceu entender meu sorriso. Talvez observar os homens e desejá-los tornasse mais ameno o dia. Senti uma ponta de inveja, era como se tentasse me roubar o homem, ou, pelo menos, uma parte dele. Meu amigo pedira dois copos de suco de maracujá, um para ele outro para mim. Quem sabe a fruta maneirasse meus pensamentos.

Depois da Pinheiro Machado há uma rua que leva a uma biblioteca pública, era para lá que meu amigo tinha a intenção de ir, assim mataríamos o tempo.

“Está muito calor, conheço a biblioteca, lá não há ar-condicionado”, minha fisionomia devia transmitir desânimo, na verdade vinha da escola, não queria saber de livros.

“Livros não são sinônimos de escola, nem de estudo, servem também para o lazer”, acrescentou, adivinhando meus pensamentos.

Sou professora de Inglês, confesso que não estou acostumada a pegar livros emprestados em bibliotecas, nem leio com muita frequência, mas o admirei por isso. Ele procurava nos livros a realização de um prazer, um modo de vida ou, quem sabe, uma filosofia.

“Moro aqui perto, acho que vou pra casa, assim tomo um banho e descanso um pouco”, disse um tanto atabalhoada. Depois, ao refletir, achei que não deveria ter sido tão abrupta.

“Tudo bem”, ele, não sem uma ponta de tristeza, rebateu.

Quando já se preparava para partir, sugeri:

“Não quer ir até lá em casa? Deixe os livros para outra hora.”

Ainda não convidara colega algum da escola para ir a minha casa. Embora o convite tenha sido feito sem muita reflexão, achei que não seria nada demais.

Sorriu. Achou boa a ideia. Na rua o movimento de meio-dia era barulhento, ônibus e muitos carros subiam em direção ao Cosme Velho. Crianças saíam da escola. Meu prédio era no começo da General Glicério.

Quando entramos, não havia ninguém na portaria. Onde estaria o zelador? Melhor, já fazia tempo que não convidava homem algum para subir. O último namorado partira fazia mais de um ano, e fora alvo de olhares desconfiados da vizinhança. Apesar de Laranjeiras ser um bairro da zona sul do Rio, com muitas pessoas escolarizadas, de nível superior, a quantidade de fofoqueiros e fofoqueiras era grande. Saímos do elevador no sexto andar, abri a bolsa e tirei a chave. Logo ao entrar, fui abrir à janela da sala.

“Espere um pouquinho, vou fazer um café”, quis ser delicada.

“Não precisa se preocupar, descanse um pouco”, interveio.

Mesmo assim fui à cozinha e preparei a cafeteira.

“Está muito calor, é melhor ligar o ventilador”, sugeri, o interruptor é o mesmo que o da luz.

Meu amigo levantou-se e acionou o ventilador de teto.

O que conversar num momento como aquele? Desviara-o da biblioteca pública, convidara-o para vir comigo sem segundas intenções. Comecei a pensar se ele falaria para alguém da escola sobe a visita ao meu apartamento. Sou discreta, nada conto sobre minha vida, seria interpretada de modo equivocado.

“Também tenho livros, sabe”, disse eu de repente.

Ele sorriu.

“Que bom, são livros de literatura?”

“Sim, literatura de língua inglesa, é lógico, dou aulas de inglês.”

“Tenho uma amiga que se formou em francês, mas diz não gostar de literatura, estranho, não é mesmo?”

“Não, não é tão estranho, há professores que querem ensinar apenas a língua, o básico para a comunicação, uma língua estrangeira para viajantes”, arregalei os olhos após a última palavra.

“Mesmo entre os professores de literatura são poucos os leitores, tenho observado, não vejo ninguém carregando um romance, ou mesmo falando de um bom livro’”, acrescentou.

Pedi licença e corri à cozinha. A cafeteira fazia seu gargarejo demonstrando o término da preparação do café. Enquanto tirava do armário uma pequena bandeja com duas xícaras, pensei numa amiga que não acreditava na amizade entre homem e mulher. Pessoas de sexo diferentes têm interesses que vão além da amizade. Meu amigo não dava sinal de que estava interessado em mim, pensava mesmo era na biblioteca. Tenho uma amiga não acredita em nada disso. Quando vai à praia, usa um biquíni curtíssimo, a bunda toda de fora. E ela já passa dos cinquenta. Gosto de homens másculos, que me levem pra cama, chego a gritar na hora do prazer, afirma. Também não titubeia ao trepar com um homem de primeira, no mesmo dia em que o conheceu. O perigo me excita, diz.

Meu amigo sentado na sala tirara um livro da mochila quando cheguei com o café. Colocou-o sobre o sofá, ao seu lado, pegou a xícara e bebeu os primeiros goles. Pousei a bandeja sobre a pequena mesa e segurei também minha xícara. Ele tomava o café totalmente amargo.

“Você não quer açúcar?”, pareci assuntada.

Ele disse não, preferia sentir o gosto puro do café. Ah, meu amigo gosta de sentir o gosto original, puro, das coisas. Talvez seja um bom homem. Coloquei meu adoçante e fui bebendo pouco a pouco.

“Você acha a leitura tão importante assim?”, perguntei.

“Não sei, acho importante pra mim, mas para os outros depende de cada um.”

“Tua resposta é sensata, não procura impor o que gosta.”

“Também gosto de outras coisas, como sair por aí, andar em em meio à natureza, conhecer pessoas, conversar, não apenas ler. Mas confesso que a leitura me seduz.”

Levantei e caminhei até a janela, abri-a um pouco mais. Ele se levantou e veio ao meu lado.

“Bonito olhar o bairro daqui de cima.”

“Você acha?”, perguntei, “esse lugar é tão provinciano.”

Virei-me para ele, toquei-lhe um dos braços e sorri. Temi que me achasse uma rua desimpedida, não queria ser vulgar.

“O teu cabelo é tão liso”, reparou, e fez um carinho na lateral do meu rosto.

“Oh, o café vai esfriar”, fingi assustar-me.

“Que esfrie, há coisas mais quentes”, demos uma gargalhada após as palavras dele.

Se fosse outro os tempos, já estaria nua nos braços deles. Mas achei melhor esperar, o terreno era favorável. Sentamos mais uma vez, olhei as horas.

“Ainda é cedo, as visitas começam às duas em ponto”, confirmei.

“Não faz mal, está bom aqui, tua casa é muito legal.”

“Você não quer comer alguma coisa?, tenho tanta comida na geladeira.”

“Não, não me importo, lanchei bastante às dez horas, deixe o tempo passar um pouco, ou, quem sabe, a gente come algo por aí, depois de visitar o César."

Sentada na poltrona, de frente para o sofá, descruzei as pernas e alternei a posição, agora com a direita sobre a esquerda. O que vamos conversar agora?, cheguei a pensar. Ele mergulhara num silêncio demorado, tomou nas mãos o livro que tirara da mochila e olhava a capa. Mas achou indelicado abri-lo, o que fez foi guardá-lo novamente.

“Você se incomoda de ficar sozinho um pouco?, estou com muito calor, acho que vou trocar de roupa”, falei. Nas verdade, eu queria mesmo era tomar uma ducha.

“Fique à vontade, não se preocupe comigo.”

Saí da sala, corri primeiro ao banheiro. Acho que se a gente tivesse bebido vinho ou outra bebida alcoólica as coisas teriam sido diferentes, refletia eu nua, preste a abrir a ducha. Imaginei-me saindo nua do banheiro, ou enrolada numa curta toalha. Tais pensamentos, porém, não iriam se concretizar. O fato de pedir para trocar de roupa já fora uma inciativa ousada. Ele me imaginaria tirando o vestido, procurando por outro, ou mesmo me veria nua em pensamentos ao ouvir o replicar da água da ducha no chão do boxe.

Quando saí do banheiro, corri ao quarto, fechei a porta e comecei a me vestir. Escolhi uma camisa branca com uma estampa em inglês, no lugar da saia optei por uma calça que me deixou com as canelas de fora. Ajeitei o cabelo, esguichei rapidamente um perfume qualquer e voltei à sala. Meu amigo lia seu livro.

“Desculpe, é que não aguentava mais o calor.”

Nada falou, apenas fez um gesto de aprovação com a cabeça. Reparei o nome do livro que ele lia, era em francês: La panthére des neiges, de Sylvan Tesson.

“Que chique, um livro em francês.”

“Sim, é um bom romance, ganhou um dos maiores prêmios de língua francesa.”

“É interessante?”, perguntei.

“Sim, é sobre quatro pessoas que vijam ao Tibete: um fotógrafo, sua companheira, um escritor e um ajudante com jeito de filósofo. Vão em busca de uma pantera, como diz o título, pantera das neves, animal raro, praticamente em extinção, existente apenas naquela região. .

“Hum , deve ser interessante, Tibete, pantera, neve, tudo o que não existe por aqui. Mas fale mais, estou gostando.”

“O objetivo é observar a pantera e fotografá-la. A trama do livro gira em torno dessa situação. Mas não se trata de uma narração sobre o mundo animal nem sobre lugares exóticos. Na verdade, é uma filosofia de vida. Os personagens estão à procura de lugares pelo mundo fora do circuito da mundialização. Por causa da internet, pensamos que tudo e todos os lugares estão ao nosso alcance. Mas isso não é verdade. Na maior parte do tempo os integrantes da expedição vivem situações extremas. A temperatura é de menos 25 graus, a altitude em torno de 5000 metros. O melhor de tudo é descobrir como olhar o mundo ao redor, toda a riqueza que ele possui. A pantera não aparece com facilidade. Muitos exploradores permanecem o inverno inteiro à espera, mas não conseguem descobri-la. O narrador diz que, depois dessa experiência, aprendeu a ver o mundo de modo diferente. Olhar de modo disfarçado ou espionar, em francês, é guetter. Diz que, quando estiver de volta, num ou noutro café de Paris, saberá observar o mundo de modo bem diverso de como fazia antes. O livro não narra uma história sobre ecologia nem sobre animais, é lógico que há a necessidade de preservá-los, mas o que fica é uma reflexão sobre o mundo e o modo de vida contemporâneos. Apesar de ser um romance, a viagem foi verdadeira. Além do livro com a aventura, há outro, publicado pelo fotógrafo, com as fotos da pantera e de outros animais da região.”

“E como acaba a história?”, cheguei a rir, confesso que naquele momento não entendi a importância do assunto.

“Acaba como todo livro acaba, quando chega ao final”, meu amigo entrou no meu jogo e deu uma sonora gargalhada.

“Se um dia você conseguir o livro de fotos, me empreste”, pedi. “Vamos tomar um pouco mais de café e vamos ao hospital. Quando chegarmos lá, acho que já será a hora de visitas.”


Poupemos o leitor da visita ao hospital. Todos já foram visitar algum doente. Muita gente de branco, ou de verde claro (cor que adotaram nos últimos tempos para o pessoal da saúde), médicos, enfermeiras, funcionários diversos, corredores compridos, este higienizados (pelo menos na aparência), salas de espera, equipamentos para cada tipo de enfermidade, camas com encosto levantado, grades, hastes sustentando o soro, agulha nas veias. O que poderia criar imagens mais vivas? Ficamos com o doente mais ou menos três quartos de hora. Agradeceu nossa visita, mas durante a maior parte do tempo ficou olhando suas mensagens no celular.

Na saída, olhei meu amigo e sugeri:

“Que tal comermos algo agora?, estou morrendo de fome.”

“Boa ideia, achei que você ia esquecer.”

“Nada disso, comer é uma das melhores coisas, conheço uma ótima lanchonete, no Largo do Machado.”

Voltamos pela Pinheiro Machado e entramos na Laranjeiras, no sentido de quem desce ao Aterro. Andamos lado a lado.

“Gostei dessa pantera aí do teu livro” falei e segurei sua mão. “Precisamos conversar mais  sobre ela.”

Manteve a mão segurando a minha. Como não quisesse me perder, fechou os dedos, selando a relação.

Tive vontade de beijá-lo, um beijinho no rosto, bem ao lado dos lábios, bastaria virar a face à esquerda e chegar um pouquinho mais. Tive medo que viesse alguém, no caminho sempre circulavam muitas pessoas da escola, outros professore, alunos, quem sabe alguém mais. Resisti ao desejo, torcendo-me dentro das roupas.

Soltamos as mãos apenas na lanchonete, quando tivemos de pegar as esfirras e os refrescos que nos serviriam de lanche.

Daí em diante noites e mais noites, histórias e mais histórias. A pantera.

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