“Que tal visitarmos o César? Ele está internado numa clínica
a dois quarteirões. Ontem enviou mensagem pedindo pra gente dar uma
chegadinha lá.”
“O César? O que ele tem?”
“Erisipela, está com a perna muito inchada, o médico decidiu pela internação.”
“Poxa, que chato, hein?”
“Mas a visita só começa duas da tarde”, dei a sugestão e, ao mesmo tempo, demonstrei certo enfado, teríamos de esperar um longo tempo, duas ou três horas.
“O César? O que ele tem?”
“Erisipela, está com a perna muito inchada, o médico decidiu pela internação.”
“Poxa, que chato, hein?”
“Mas a visita só começa duas da tarde”, dei a sugestão e, ao mesmo tempo, demonstrei certo enfado, teríamos de esperar um longo tempo, duas ou três horas.
“Duas da tarde, é?”, franziu a testa. “O que vamos fazer
durante esse tempo todo?”
Confesso que me envergonhei. Não havia pensado nas
consequências do convite. Trabalhava com ele, éramos professores na mesma
escola, naquele dia só trabalhamos durante a manhã. Teria de sair da situação embaraçosa, mas ele falou primeiro.
“Tenho uma ideia.”
Fiquei a olhá-lo, meus olhos fixos, reparei seus cabelos
castanhos que desciam cobrindo-lhe as orelhas. Achei simpática sua face, os
fios dos seus cabelos longos eram frágeis, mas lhe davam certo charme.
Entramos na rua das Laranjeiras, caminhamos duzentos metros, sugeriu que parássemos numa lanchonete. O local era desses onde se paga na
caixa e se recebe o pedido do funcionário que fica ao lado. Duas jovens
trabalhavam. A que buscava o lanche olhou meu amigo com insistência, notava-se
claramente que fora tomada, pelo menos durante alguns segundos, por um
pensamento de volúpia. Sorri a ela, que pareceu entender meu sorriso. Talvez
observar os homens e desejá-los tornasse mais ameno o dia. Senti uma
ponta de inveja, era como se tentasse me roubar o homem, ou, pelo menos, uma
parte dele. Meu amigo pedira dois copos de suco de maracujá, um para ele outro
para mim. Quem sabe a fruta maneirasse meus pensamentos.
Depois da Pinheiro Machado há uma rua que leva a uma
biblioteca pública, era para lá que meu amigo tinha a intenção de ir, assim
mataríamos o tempo.
“Está muito calor, conheço a biblioteca, lá não há
ar-condicionado”, minha fisionomia devia transmitir desânimo, na verdade vinha
da escola, não queria saber de livros.
“Livros não são sinônimos de escola, nem de estudo, servem
também para o lazer”, acrescentou, adivinhando meus pensamentos.
Sou professora de Inglês, confesso que não estou acostumada
a pegar livros emprestados em bibliotecas, nem leio com muita frequência, mas o
admirei por isso. Ele procurava nos livros a realização de um prazer, um modo
de vida ou, quem sabe, uma filosofia.
“Moro aqui perto, acho que vou pra casa, assim tomo um banho
e descanso um pouco”, disse um tanto atabalhoada. Depois, ao refletir, achei
que não deveria ter sido tão abrupta.
“Tudo bem”, ele, não sem uma ponta de tristeza, rebateu.
Quando já se preparava para partir, sugeri:
“Não quer ir até lá em casa? Deixe os livros para outra
hora.”
Ainda não convidara colega algum da escola para ir a minha
casa. Embora o convite tenha sido feito sem muita reflexão, achei que não seria
nada demais.
Sorriu. Achou boa a ideia. Na rua o movimento de meio-dia
era barulhento, ônibus e muitos carros subiam em direção ao Cosme Velho.
Crianças saíam da escola. Meu prédio era no começo da General Glicério.
Quando entramos, não havia ninguém na portaria. Onde estaria
o zelador? Melhor, já fazia tempo que não convidava homem algum para subir. O
último namorado partira fazia mais de um ano, e fora alvo de olhares
desconfiados da vizinhança. Apesar de Laranjeiras ser um bairro da zona sul do
Rio, com muitas pessoas escolarizadas, de nível superior, a quantidade de
fofoqueiros e fofoqueiras era grande. Saímos do elevador no sexto andar, abri a
bolsa e tirei a chave. Logo ao entrar, fui abrir à janela da sala.
“Espere um pouquinho, vou fazer um café”, quis ser delicada.
“Não precisa se preocupar, descanse um pouco”, interveio.
Mesmo assim fui à cozinha e preparei a cafeteira.
“Está muito calor, é melhor ligar o ventilador”, sugeri, o
interruptor é o mesmo que o da luz.
Meu amigo levantou-se e acionou o ventilador de teto.
O que conversar num momento como aquele? Desviara-o da biblioteca pública, convidara-o para vir comigo sem segundas intenções.
Comecei a pensar se ele falaria para alguém da escola sobe a visita ao meu
apartamento. Sou discreta, nada conto sobre minha vida, seria interpretada de
modo equivocado.
“Também tenho livros, sabe”, disse eu de repente.
Ele sorriu.
“Que bom, são livros de literatura?”
“Sim, literatura de língua inglesa, é lógico, dou aulas de
inglês.”
“Tenho uma amiga que se formou em francês, mas diz não
gostar de literatura, estranho, não é mesmo?”
“Não, não é tão estranho, há professores que querem ensinar
apenas a língua, o básico para a comunicação, uma língua estrangeira para
viajantes”, arregalei os olhos após a última palavra.
“Mesmo entre os professores de literatura são poucos os
leitores, tenho observado, não vejo ninguém carregando um romance, ou mesmo
falando de um bom livro’”, acrescentou.
Pedi licença e corri à cozinha. A cafeteira fazia seu
gargarejo demonstrando o término da preparação do café. Enquanto tirava do
armário uma pequena bandeja com duas xícaras, pensei numa amiga que não
acreditava na amizade entre homem e mulher. Pessoas de sexo diferentes têm interesses
que vão além da amizade. Meu amigo não dava sinal de que estava interessado em
mim, pensava mesmo era na biblioteca. Tenho uma amiga não acredita em nada
disso. Quando vai à praia, usa um biquíni curtíssimo, a bunda toda de fora. E
ela já passa dos cinquenta. Gosto de homens másculos, que me levem pra cama,
chego a gritar na hora do prazer, afirma. Também não titubeia ao trepar com
um homem de primeira, no mesmo dia em que o conheceu. O perigo me excita, diz.
Meu amigo sentado na sala tirara um livro da mochila quando
cheguei com o café. Colocou-o sobre o sofá, ao seu lado, pegou a xícara e bebeu os primeiros goles. Pousei a bandeja
sobre a pequena mesa e segurei também minha xícara. Ele tomava o café
totalmente amargo.
“Você não quer açúcar?”, pareci assuntada.
Ele disse não, preferia sentir o gosto puro do café. Ah, meu
amigo gosta de sentir o gosto original, puro, das coisas. Talvez seja um bom
homem. Coloquei meu adoçante e fui bebendo pouco a pouco.
“Você acha a leitura tão importante assim?”,
perguntei.
“Não sei, acho importante pra mim, mas para os outros
depende de cada um.”
“Tua resposta é sensata, não procura impor o que gosta.”
“Também gosto de outras coisas, como sair por aí, andar em em meio à natureza, conhecer
pessoas, conversar, não apenas ler. Mas confesso que a leitura me seduz.”
Levantei e caminhei até a janela, abri-a um pouco mais. Ele
se levantou e veio ao meu lado.
“Bonito olhar o bairro daqui de cima.”
“Você acha?”, perguntei, “esse lugar é tão provinciano.”
Virei-me para ele, toquei-lhe um dos braços e sorri. Temi
que me achasse uma rua desimpedida, não queria ser vulgar.
“O teu cabelo é tão liso”, reparou, e fez um carinho na
lateral do meu rosto.
“Oh, o café vai esfriar”, fingi assustar-me.
“Que esfrie, há coisas mais quentes”, demos uma gargalhada
após as palavras dele.
Se fosse outro os tempos, já estaria nua nos braços deles.
Mas achei melhor esperar, o terreno era favorável. Sentamos mais uma vez, olhei
as horas.
“Ainda é cedo, as visitas começam às duas em ponto”,
confirmei.
“Não faz mal, está bom aqui, tua casa é muito legal.”
“Você não quer comer alguma coisa?, tenho tanta comida na
geladeira.”
“Não, não me importo, lanchei bastante às dez horas, deixe o
tempo passar um pouco, ou, quem sabe, a gente come algo por aí, depois de visitar
o César."
Sentada na poltrona, de frente para o sofá, descruzei as
pernas e alternei a posição, agora com a direita sobre a esquerda. O que vamos
conversar agora?, cheguei a pensar. Ele mergulhara num silêncio demorado, tomou
nas mãos o livro que tirara da mochila e olhava a capa. Mas achou indelicado
abri-lo, o que fez foi guardá-lo novamente.
“Você se incomoda de ficar sozinho um pouco?, estou com
muito calor, acho que vou trocar de roupa”, falei. Nas verdade, eu queria mesmo
era tomar uma ducha.
“Fique à vontade, não se preocupe comigo.”
Saí da sala, corri primeiro ao banheiro. Acho que se a gente
tivesse bebido vinho ou outra bebida alcoólica as coisas teriam sido diferentes, refletia eu nua,
preste a abrir a ducha. Imaginei-me saindo nua do banheiro, ou enrolada numa
curta toalha. Tais pensamentos, porém, não iriam se concretizar. O fato de
pedir para trocar de roupa já fora uma inciativa ousada. Ele me imaginaria
tirando o vestido, procurando por outro, ou mesmo me veria nua em pensamentos
ao ouvir o replicar da água da ducha no chão do boxe.
Quando saí do banheiro, corri ao quarto, fechei a porta e
comecei a me vestir. Escolhi uma camisa branca com uma estampa em inglês, no
lugar da saia optei por uma calça que me deixou com as canelas de fora. Ajeitei
o cabelo, esguichei rapidamente um perfume qualquer e voltei à sala. Meu amigo
lia seu livro.
“Desculpe, é que não aguentava mais o calor.”
Nada falou, apenas fez um gesto de aprovação com a cabeça.
Reparei o nome do livro que ele lia, era em francês: La panthére des neiges, de
Sylvan Tesson.
“Que chique, um livro em francês.”
“Sim, é um bom romance, ganhou um dos maiores prêmios de
língua francesa.”
“É interessante?”, perguntei.
“Sim, é sobre quatro pessoas que vijam ao Tibete: um
fotógrafo, sua companheira, um escritor e um ajudante com jeito de filósofo. Vão em busca de
uma pantera, como diz o título, pantera das neves, animal raro, praticamente em extinção, existente apenas naquela região. .
“Hum , deve ser interessante, Tibete, pantera, neve, tudo o
que não existe por aqui. Mas fale mais, estou gostando.”
“O objetivo é observar a pantera e fotografá-la. A trama do livro gira em torno dessa situação. Mas não se trata de uma narração sobre o mundo animal nem sobre
lugares exóticos. Na verdade, é uma filosofia de vida. Os personagens estão à
procura de lugares pelo mundo fora do circuito da mundialização. Por causa da
internet, pensamos que tudo e todos os lugares estão ao nosso alcance. Mas isso não é
verdade. Na maior parte do tempo os integrantes da expedição vivem situações
extremas. A temperatura é de menos 25 graus, a altitude em torno de 5000
metros. O melhor de tudo é descobrir como olhar o mundo ao redor, toda a riqueza que ele possui. A pantera não aparece com facilidade. Muitos exploradores permanecem o inverno inteiro à espera, mas não conseguem descobri-la. O narrador diz
que, depois dessa experiência, aprendeu a ver o mundo de modo diferente. Olhar de
modo disfarçado ou espionar, em francês, é guetter. Diz que, quando estiver de volta, num ou noutro café de Paris, saberá observar
o mundo de modo bem diverso de como fazia antes. O livro não narra uma história
sobre ecologia nem sobre animais, é lógico que há a necessidade de
preservá-los, mas o que fica é uma reflexão sobre o mundo e o modo de vida contemporâneos. Apesar de ser um romance, a viagem foi verdadeira. Além do livro com a aventura, há outro, publicado pelo fotógrafo, com as fotos da pantera e de outros animais da região.”
“E como acaba a história?”, cheguei a rir, confesso que
naquele momento não entendi a importância do assunto.
“Acaba como todo livro acaba, quando chega ao final”, meu
amigo entrou no meu jogo e deu uma sonora gargalhada.
“Se um dia você conseguir o livro de fotos, me empreste”,
pedi. “Vamos tomar um pouco mais de café e vamos ao hospital. Quando chegarmos
lá, acho que já será a hora de visitas.”
Poupemos o leitor da visita ao hospital. Todos já foram
visitar algum doente. Muita gente de branco, ou de verde claro (cor que adotaram nos últimos tempos para o pessoal da saúde), médicos, enfermeiras, funcionários diversos, corredores compridos, este higienizados (pelo menos na aparência), salas de espera, equipamentos para cada tipo de
enfermidade, camas com encosto levantado, grades, hastes sustentando o soro,
agulha nas veias. O que poderia criar imagens mais vivas? Ficamos com o doente
mais ou menos três quartos de hora. Agradeceu nossa visita, mas durante a maior parte do tempo ficou olhando suas mensagens no celular.
Na saída, olhei meu amigo e sugeri:
“Que tal comermos algo agora?, estou morrendo de fome.”
“Boa ideia, achei que você ia esquecer.”
“Nada disso, comer é uma das melhores coisas, conheço uma
ótima lanchonete, no Largo do Machado.”
Voltamos pela Pinheiro Machado e entramos na Laranjeiras, no
sentido de quem desce ao Aterro. Andamos lado a lado.
“Gostei dessa pantera aí do teu livro” falei e segurei sua
mão. “Precisamos conversar mais sobre ela.”
Manteve a mão segurando a minha. Como não quisesse me
perder, fechou os dedos, selando a relação.
Tive vontade de beijá-lo, um beijinho no rosto, bem ao lado dos lábios,
bastaria virar a face à esquerda e chegar um pouquinho mais. Tive medo que
viesse alguém, no caminho sempre circulavam muitas pessoas da escola, outros professore,
alunos, quem sabe alguém mais. Resisti ao desejo, torcendo-me dentro das roupas.
Soltamos as mãos apenas na lanchonete, quando tivemos de
pegar as esfirras e os refrescos que nos serviriam de lanche.
Daí em diante noites e mais noites, histórias e mais
histórias. A pantera.
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