Entrei no apartamento dele, segui o curto corredor, logo
estávamos na sala. Um sofá de dois lugares, a mesa, três cadeiras, um pequeno
aparelho de som e, na parede, um quadro a grafite, um homem numa cidade, talvez
Amsterdã, o casario, um canal e pessoas passando ao fundo. Que tipo de música você
gosta?, perguntou. Alguma de ritmo lendo, instrumentos perfazendo notas longas,
ou coisa parecida, falei. Sentei-me no pequeno estofado, a música não demorou a
inundar o ambiente. Ele desapareceu para voltar após menos de um minuto com a
garrafa de vinho. Duas taças, o tira-rolhas, dois pequenos pratos. Arrumou tudo
sobre a mesa. Havia um livro sobre ela, numa das pontas. Afastou-o para um suporte
lateral, desdobrou a toalha que – só então reparei – ficara enrolada num dos
cantos, como um logo canudo. Não quer conhecer o restante do apartamento?,
perguntou enquanto abria a garrafa. Temos tempo, pronunciei em voz baixa as
duas palavras. Experimente, ele pediu. Provei o vinho, aprovei com breve
sorriso. Completou um pouquinho mais a taça, brindamos e bebemos os primeiros
goles.
O apartamento do namorado trouxe-me à
memória um homem com quem me relacionei fazia alguns anos. Tudo era muito parecido.
Será que não era o mesmo, que voltava e eu, desligada que sou, não reparava?
Nada disso, a cidade era outra, o bairro à beira-mar. E naquele tempo aconteceu
algo engraçado. Sim, uma coisa divertida. Eu, que não sou de muitos sorrisos, principalmente
no começo de um namoro, perguntara ao homem se poderia tirar a blusa. Na época,
mesmo com o mar próximo, fazia um terrível calor, anoitecia, a hora em que
parecem refluir todos os raios do sol irradiados durante o dia. Claro, dissera.
Tirei a blusa e o top, sentei-me na poltrona, apenas de bermuda. Agora, não
fazia calor, e eu, de um tempo para cá, passei a ter crises de vexo. Sério,
depois dos trinta e cinco, uma mulher que sente vergonha é coisa rara. Mas o
que há de se fazer?
A música expandia-se com novos
instrumentos, não se ouvia voz, apenas o som de cordas e metais, talvez um jazz
um tanto mais animado. Ele sentou-se ao meu lado. Você sabe recitar poemas, sugeriu,
bem perto dos meus ouvidos. Têm livros de poesia?, perguntei olhando em volta, encontrei
uma pequena pilha deles sobre a mesinha lateral, onde também havia uma
luminária. Tomou nas mãos alguns deles, Rimbaud, Carlos Drummond, Bandeira,
Florbela Espanca, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos. Ulisses, de Joyce. Nossa,
acho que vou ler este, peguei o grosso volume, é prosa mas cheio de poesia. Riu.
Você tem um charme e tanto ao falar assim, acrescentou. Não, não é charme, ou o
charme não é meu, mas da literatura. Folheei o começo do Joyce. O homem foi acho
que à cozinha, voltou com dois tipos de queijo, uma garrafa de água mineral,
abaixou o volume da música. Você sabe que eu morria de vergonha de ler em voz
alta, na época da escola?, encarei-o depois da minha confidência. As meninas
eram as mais atiradas no meu tempo de escola, disse ele. Ah, sim, atiradas, mas
em outro sentido, intervi. Riu mais uma vez, gostou da insinuação, mas não
tinha maldade no pensamento. Morria de vergonha, verdade, continuei, depois me
tornei atirada, como você diz; mas, agora, depois dos trinta, sinto vergonha de
novo, não para ler umas páginas do Ulisses, é claro.
“Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu
no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual
repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba [arregalei os olhos instintivamente e
olhei para o namorado]. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente
atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:
– Introibo
ad altare Dei.
Parado,
ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:
– Suba,
Kinch! Suba, seu temível jesuíta!”
Pronunciei a última frase com entonação teatral.
O namorado arregalou os olhos, como se dissesse continue, continue. Mergulhei
nas páginas seguintes. Durante vários minutos, enveredei pela trilha do autor
dublinense.
“Toda Irlanda é lavada pela corrente do golfo
– disse Stephen enquanto deixava pingar mel em uma fatia de pão.”
Após essas últimas palavras da leitura,
olhei a mesa, como se procurasse o pão com algum mel para derramar sobre. Genial,
genial mesmo, revelou-se entusiasmado, me vi no teatro, a maior viagem, acrescentou, seu vocabulário não correspondia notadamente ao de Joyce.
Está ótimo, continuou, adorei, e olha que as atrizes não se sentem envergonhadas. Levantou-se e foi cortar umas fatias de pão.
Você quer mesmo o mel?, quis saber. Quem sabe, irônica, deixei o livro de lado.
Depois de duas rodelas da baguete, do queijo com mel, e de eu ter bebido uma taça de vinho quase inteira, ele veio sentar-se ao meu lado. Você disse que se tornou envergonhada, não é mesmo? Talvez, respondi, sucinta. As mulheres são assim mesmo, sentenciou. Eu não teria tanta certeza, conheço uma que chega à casa do namorado e, a primeira coisa que faz, é ficar pelada. Ela não lê versos de poemas?, ele, sarcástico. Talvez leia, ou melhor, pode ser que peça para o homem ler, mas a literatura do corpo dela. Literatura do corpo, repetiu, não deve ser tão bela como a de Joyce. Não sei, eu não teria tanta certeza, finalizei. Naquele momento, senti sua mão apertar-me os seios nus, seus lábios procurarem os meus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário