Enquanto não era atendida, abri um dos livros e comecei a folheá-lo. Era um romance de uma autora francesa cujo enredo parecia muito interessante;
descrevia um professor de ensino superior considerado um intelectual muito
em voga. Mas ele mantinha um caso com uma aluna da universidade onde lecionava.
A história não parecia marchar na direção a que costuma seguir esse tipo de
narrativa, e era ambientada no tempo da guerra de libertação da Argélia. O
personagem, embora francês, fazia coro aos os protestos que desejavam a colônia
africana livre. Outro livro, que eu tirara de uma estante de literatura
brasileira, tinha a capa muito bonita e acabamento gráfico requintado,
chamava-se Hotéis à beira da noite. O mais curioso é que o autor, apesar do nome estrangeiro, Per Johns, é escritor brasileiro. Era a primeira vez que eu descobria um livro seu. O
terceiro livro que eu carregava, e de modo mais discreto – não desejava que as
pessoas o percebessem comigo – era o da Margarida Nua. Como muitos devem saber,
Margarida alcançou muito sucesso nos últimos anos. Seus
livros, a princípio, foram classificados erroneamente como literatura erótica,
mas, depois, os leitores e a crítica chegaram à conclusão de que se trata de literatura. Suas histórias urbanas, de cunho existencialista, ora curtas, ora mais
extensas, abordam o prazer e a surpresa que a vida nos pode oferecer. Naquele livro, há uma história que adoro, é a da mulher que resolve passar
a noite nua numa praia deserta à espera do namorado. Ele tem a incumbência de lhe levar roupas, mas ela espera, espera, e ele... , bem, acho melhor não contar,
não quero estragar o prazer para quem ainda não conhece o livro.
O homem continuava a me olhar, conseguira uma
mesa a três passos de onde eu estava. A garçonete já o atendera e ele tomava um
café, apenas.
Pedi café com leite e um croissant. Enquanto aguardava, fixei-me nas páginas do livro.
Comecei a pensar sobre o fato de as personagens literárias tornarem-se tão
reais. No ato de qualquer leitura de ficção, jamais nos damos conta de que todas aquelas
pessoas envolvidas no enredo são criações
saídas da cabeça de um homem ou de uma mulher. As personagens da Margarida são
tão reais, que é difícil acreditar que elas não esbarrem vez ou outra com a
gente cidade afora. Hoje, Margarida Nua é a escritora que consegue de modo mais
eficaz criar, sobretudo, mulheres muito verossímeis.
O desconhecido esperou que nossos olhares se cruzassem,
então apontou para um dos livros que repousara sobre sua mesa. Era de Foucault,
uma edição de capa vermelha, da Martins Fontes, muito bonita por sinal, que eu
sempre admirei e ainda desejo comprar. Acabou por me oferecer o livro fazendo um movimento com a cabeça. Acho que notou o meu interesse pelo filósofo francês
porque observou que me demorei no olhar ao ver o livro junto a ele. Fiz uma
fisionomia reticente e continuei a folhear um dos meus. Mas ele insistiu.
Achei que a recusa seria indelicada, melhor falar alguma coisa.
“Numa outra ocasião, agora estou ocupada com este aqui”,
apontei o que eu tentava ler.
“Ah, contos da Margarida, são muito bons.”
Não sei se fiquei vermelha ou roxa, pensei que estava lendo
naquele momento o livro do Per Johns.
“Não se preocupe”, falou, “não precisa ficar envergonhada, as
histórias da Margarida são também foucaultianas, elas nos liberam dos grilhões das
convenções sociais, exatamente o que Foucault estuda”, falou enquanto mergulhava nos meus seios.
Ainda descontrolada, deixei escapar um “ah”, e depois voltei
os olhos para a página em que eu estava. Mas dali em diante já não foi possível
continuar lendo.
O homem permaneceu na sua mesa e não mais me dirigiu a
palavra. Tentei voltar à leitura, mas de outro livro, e não percebi quando o
desconhecido se foi. Poxa, ele bem que poderia ser mais insistente, aí, quem
sabe...
Caso contasse esse breve episódio a alguma amiga, ela
diria que eu não sei aproveitar as oportunidades. Mas ali, na Livraria Cultura,
achei que ele estava me paquerando apenas porque eu viera sem sutiã. Depois, ao
voltar para casa, acabei achando que não seria nada demais um homem admirar uma
mulher porque ela está sem sutiã. E eu, pelo menos, devia ter-me apresentado. Ele,
em contrapartida, faria o mesmo. Assim, as coisas teriam sido mais fáceis.
Fui embora um pouco triste. Vivo queixando-me de que sou uma
pessoa sozinha, quando surge alguém escondo-me. Sei que os contos da Margarida
não são de autoajuda, mas preciso ler mais o que ela escreve, acompanhar suas
personagens, tudo tão verdadeiro. Amanhã ou depois encontro de novo o
mesmo homem, então serei capaz de ter outros olhos para ele.
Quem sabe,
saio soltinha por aí.
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