Na última quinta, à noite, recém-saída do escritório, caminhava
na Av. Paulista em direção a um ponto de ônibus. Vestia um vestido curto, tecido
leve, crepe de seda, trazia numa das mãos um agasalho de malha fina.
Embora fosse inverno, a temperatura não era baixa. Após atravessar a Augusta, na
mesma calçada do Conjunto Nacional, um homem veio em minha direção.
“Senhorita, não deseja passear um pouco, ir a um
restaurante, ou mesmo conversar?” Ele era bonito, cinquentão, vestia-se bem.
Tive vontade rir, pois ninguém se dirige a uma mulher dessa
maneira nos dias de hoje. Achei que poderia se tratar der uma brincadeira.
“Você está sorrindo, isso significa que gostou das minhas
palavras?”
“Não é nada disso. Será que você não percebe que mulher
direita não pode aceitar um convite desses?”
“Um convite para conversar, ou para comer algo, o que há de errado
nisso?”
“É um preceito básico que mesmo uma menina é capaz de saber,
não se deve conversar com estranhos.”
“Mas você está a conversar comigo”, também se pôs a rir.
“Faz tempo que não vejo alguém abordar uma mulher desse modo,
por isso o riso, por isso a conversa até agora.”
“Senhorita, não sou qualquer um, sou uma pessoa honesta,
tenho trabalho, e até alguma fama.”
“Mas tenho de ir, já não posso continuar, alguém me espera”,
menti enquanto chegávamos à guarita do ônibus.
“Uma pessoa do seu nível não deve frequentar transportes
coletivos, tanto mais a essa hora.”
Ri mais uma vez.
“Então, como volto para casa?”
“Alguém dotada de tal beleza deve andar de automóvel.” Fez
sinal a um táxi, que imediatamente parou. “Por favor, leve esta moça”, apontou
para mim e deixou uma nota de cinquenta na mão do motorista.
“Por favor, vou ficar ofendida, dispense o táxi”, pedi.
Ele hesitou, mas acabou deixando o motorista partir, não
reparei se pegou o dinheiro de volta.
“Só desejo tornar as coisas mais fáceis para você, falou.”
“Mas quem disse que as coisas são difíceis para mim?”,
arrisquei.
“Vejo tantas mulheres bonitas sozinhas, chego a pensar que a
solidão é uma grande dificuldade para todas vocês.”
“E você, não vive só? Pela sua conversa, deve ter como amigo
apenas o dinheiro”, provoquei.
“O dinheiro? Ah, sim, não deixa de ser um bom amigo.”
“Não é possível comprar todas as mulheres com dinheiro.”
“Claro, nem é isso que desejo em relação à senhorita, apenas
acho que a grande chance da vida é ser alguém sempre rodeada de amigos.”
Olhei pela primeira vez seu rosto e pude observar rugas em volta
dos olhos. O homem parecia mais velho visto assim tão de perto.
“Quer dizer que você me convida para um drink?”, arrisquei
de novo, já envolvida pela necessidade de continuar a conversa.
“Um drink, como se dizia nos velhos tempos”, completou.
A Augusta é uma rua de muitos restaurantes e bares, tem um
público jovem, muitos falam alto, bebem cerveja, discutem música, alguns levam
instrumentos musicais.
“Essa juventude é adorável”, falou. A seguir apontou um
restaurante mexicano. “Conhece este lugar?”
Confessei que jamais o havia observado.
“Vamos experimentar?”
O que eu podia conversar com um estranho às oito e meia da
noite, num dia de semana? Éramos duas pessoas sozinhas que subitamente estavam frente a frente, que tentavam algo que não sabiam verbalizar. Talvez ele, melhor do
que eu, soubesse de modo mais claro o que desejava naquele momento. Os homens
têm muitos ardis para conquistar as mulheres. Ao contrário, uma mulher sempre
espera o impossível, para depois constatar que foi burra demais. Não demora, e
acredita de novo. Eu acreditei.
“Há pessoas que são muito corpo, você não acha?”, o assunto
era perigoso, mas enveredei por ele ao observar mesas com homens e mulheres
esbanjando vitalidade, sentido prazer por estarem juntos uns aos outros, se
tocavam, falavam alto e transbordavam entusiasmo.
“Corpo?, você tem razão”, falou, enquanto isso o garçom
chegou com duas caipirinhas de tequila. “Você já esteve no Rio?”
“Tenho uns amigos lá, sempre me convidam, mas nunca fui”, respondi pesarosa.
“Lá é que eles sabem viver. Quando estive no Rio, mas
precisamente na zona sul, reparei que eles se vestem de modo mais simples do que aqui,
gostam de ressaltar o corpo; os rapazes musculosos, desses que não largam as academias,
andam sem camisa na orla marítima. As mulheres quase não usam sapatos altos”, interrompeu e deu uma ligeira olhada para os meus pés. “Às vezes, no verão, saem
da praia sete ou oito da noite e vão para um bar, pode-se ver uma porção de
mulheres enroladas em saídas de praia...”
“Cangas”, emendei.
“... isso, é esse o nome; os homens, de sunga, e
bebem até dez, onze da noite, é tudo uma grande festa."
“Vamos para lá?”, brinquei.
“Se você me convida, eu aceito, depois não vá fugir, viu?”
"Sempre quis ir ao Rio. Vou contar um segredinho. Sei
que não devia dizer isso, mas dois goles de caipirinhas já me tocam fogo. O segredinho: gosto de andar nua,” Pronunciei a última palavra de modo
quase inaudível, mas ele riu e completou a frase.
“Todas as mulheres gostam, mesmo que o neguem.”
“O Rio é favorável à nudez!”, soltei uma rápida
gargalhada.
Beliscamos alguns petiscos. Ele falou sobre um livro. Depois
descobri que era escritor.
“Sua profissão é ótima. Você conhece a natureza humana, pode
aplicar esse saber á vida prática”, testei minha ignorância.
“Há um autor que aborda esse tema. Ele diz que o romance é o
único local em que se pode observar o ser humano por inteiro. Mas não acredito,
dizer isso é uma grande bobagem. Todo personagem de romance é inventado, mesmo
que baseado em alguém. Não se pode saber se uma pessoa ‘real’ agiria do jeito
que escrevemos. Caso isso fosse verdade, o romancista teria vantagem sobre todas as outras pessoas. Mas não é assim
que acontece. Há muito romancista famoso cabeça de bagre.”
“Mas você está em vantagem sobre mim”, arrisquei mais uma
vez.
“Em vantagem, como assim?”, perguntou e procurou em volta
pelo garçom.
“Veja, você me abordou na rua, veio com uma conversa
estranha, conseguiu que eu o ouvisse e acabou me trazendo para este bar. Não se
trata de uma grande vantagem?”
“Pode ser, mas acho que há pessoas que não são romancistas e
conhecem as mulheres melhor do que eu. Não tenho tanta sorte assim”, virou e
pediu outra caipirinha. O garçom me olhou, mas apenas agradeci.
“Você tem muita sorte, sim, sou uma mulher muito especial.”
Riu e completou: “acredito piamente nisso, essa foi à
razão de eu ter falado com você naquele ponto de ônibus.”.
“Então, são os olhos de romancista”, atalhei.
“Confesso que vou pensar melhor sobre esse assunto, mas se tenho tal olhar, é inconsciente, jamais falei com alguém pensando no que escrevo,
ou tratando as pessoas como se fossem de papel. A natureza humana é muito
complicada. Num romance, fazemos simplificações.”
“Como um autor se torna clássico?”
“Clássico? Como assim?”, reiterou.
“Clássico da literatura, muito famoso, quero dizer.”
“Talvez seja devido ao que você falou, talvez seja porque se
trata daquele que conseguiu mais aproximar suas personagens da natureza humana.
Veja Shakespeare, um dramaturgo que foi mestre na criação de persoangens.”
“Então o romancista consegue ver mais longe do que as outras
pessoas...”, emendei.
“Veja bem, ficaram na história os escritores de melhor imaginação.”
“Você deve ser uma pessoa assim”, afirmei.
“Não é possível dizer isso sem ler os meus livros. Você os
leu?”
“Não. Mas pela sua conversa, já deduzi que você entende de
muita coisa.”
Ficamos durante algum tempo em silêncio. Terminei minha
bebida, mas não dei sinal de que desejava outra, temia pelo que viesse pela
frente. Tenho uma amiga que diz: 'caipirinha é bom porque logo sobe pelas
pernas'. Acho que pelas minhas já tinha subido havia muito tempo. Meu
interlocutor puxou novo assunto.
“Onde você mora?”
“No Itaim,”
Belo bairro, eu moro descendo a Brigadeiro, dá até para ir a
pé.
“É lá que você escreve seus livros?”
“Às vezes, sim, às vezes não.”
“Os escritores precisam de modelos, assim como os pintores?”,
aventurei-me.
“Claro que precisam, mas não da mesma forma. Os escritores
devem observar uma pessoa e dali para frente criar. Mas há uma coisa, a maioria
das pessoas vive de modo medíocre, não serve para serem personagens de
literatura, para isso é preciso alguém de fibra.”
“Acho que vou beber mais uma”, falei ainda duvidosa. Mas ele
logo chamou o garçom.
“A moça quer mais uma, por favor.”
“Será que saio daqui com as próprias pernas?”
“Claro, o que é gostoso deve ser saboreado; e se não sair, levo você em casa.”
O garçom voltou com outra tequila, de lima da pérsia. Como
eu já estava meio altinha, pude sentir o paladar em todos os seus matizes. Pude também
olhar o ambiente e as pessoas com mais detalhes, ouvir pronúncias, perceber com
mais vivacidade os traços em seus rostos, também olhei o meu interlocutor e
reparei que ele estava mais velho.
“Você tem esposa?”, tentava manter a seriedade.
“Já tive, faz tempo que vivo só.”
“E você gosta de viver só?”
“De certa forma não, mas um escritor nunca está totalmente
só, acho que ele sempre está rodeado de gente, tanto quando lê, tanto quando
escreve.”
“Mas não é gente de verdade”, falei depois de mais um gole.
“Não diga isso, para um escritor, embora os personagens
sejam criações, sejam de papel como eu já disse, eles são tão reais como todas
as outras pessoas. Será que Hamlet não é real?”
“E Capitu?”
“Uma moça certa vez me falou que viveríamos felizes sem
Capitu. Mas discordei, e provei a ela que a humanidade seria extremamente pobre
se Capitu não existisse. Depois de passados cem anos do lançamento de Dom Casmurro, ela é tão real como qualquer outra pessoa que tenha existido em
carne e osso. Quase todas essas estão esquecidas, Capitu vive, é eterna.”
“É mesmo, não tinha pensado nisso”, falei, “depois que finda
uma época e todos já morreram, os personagens de literatura sobrevivem, passam
a ser tão importantes quanto os personagens históricos.”
Saímos do bar em torno de meia-noite. Eu não estava bêbada,
mas alegre, sabia que tinha de acordar cedo no dia seguinte, mas não queria me
desfazer da companhia.
“E agora, para onde vamos?”, perguntou.
“E agora, para onde vamos?, repeti e caí na gargalhada.
Enquanto olhávamos um para o outro, reparei que meu vestido
era fino, transparente, insuficiente para a madrugada que avançava. Na verdade,
já não havia o vestido, eu estava nua, nuinha. Esperava que seu abraço me agasalhasse.HáHáhhhh