Amor, já que acabamos de tomar o café da manhã, você me ajuda numa tarefa?
Diga, querida.
Um amigo me pediu para revisar um texto dele. É algo que lhe aconteceu há mais de vinte anos, escreveu o episódio por esses dias e deseja publicar.
O que você quer que eu faça?
Preciso que leia o texto e dê sua opinião, principalmente sobre o vocabulário. Ele abusa de algumas palavras que eram comuns há duas ou três décadas, como gírias e maneiras de dizer. Quero que você me diga se soam bem ou não. Veja, ele chama o amigo de bicho, a mulher amada de broto. Acho que estas eram gírias usadas pelo Roberto Carlos, não?
Ok, querida, deixa eu dar uma olhada.
Está aqui o conto, nestas folhas. Enquanto isso, fico aqui no sofá lendo o jornal, quero saber sobre os filmes da semana.
Opa, querida, teu amigo é um homem de sorte, encontrou uma mulher nua na praia às quatro e trinta da manhã de uma sexta-feira.
Ele jura de pés juntos que isso é verídico.
Por isso resolveu escrever.
O interessante, amor, é a história da camiseta.
Estou vendo, parece ser bem legal.
Legal, amor?
É, ele foi gentil com ela, você não acha, querida?
Você já chegou na parte que diz o que ele pede em troca?
Deixe-me ver. Ah, sim, cheguei agora. Ele vinha de uma festa, parou na orla, quis dar uma caminhada à beira mar e se deparou com uma mulher inteiramente nua.
Isso.
De início, fica perplexo. É essa a palavra com que você cismou, perplexo?
Mais ou menos, mas há outras.
Continuo, querida. Ele coloca o pensamento dela no texto, mas é ele quem narra a história.
Ele diz que é uma inovação, parece que alguns autores estão escrevendo assim.
Deixa ver se eu entendi. Embora seja um narrador masculino, de primeira pessoa, também aparecem no texto as inquietações da mulher, como: “ao ver que alguém se aproximava senti um calafrio, mas depois me acalmei, quem sabe eu estava com sorte?” Acho que deve ser colocada uma vírgula depois de aproximava, não?
Depende, querido, se ele deseja mostrar que a mulher está preocupada com a situação, ou mesmo nervosa, não precisa de pausa.
Ele pergunta se ela precisa de alguma coisa. É lógico que precisa, a mulher está nua.
Mas essa deixa, amor, é para ela poder se insinuar, assim talvez o conquiste e consiga o seu objetivo.
Ele pergunta por que ela está nua. Mas a mulher não responde, apenas sorri, como se fosse agruras da vida.
Agruras?
É o que está escrito, querida.
E o que acontece?
Vou adivinhar: eles namoram...
Mais ou menos.
É a maneira que ela encontrou para fisgá-lo.
Isso, querido, ela precisa dele.
Mas não quer trepar sobre as areias da praia, convida o homem para ir a sua casa, mas antes pede a camiseta dele.
Amor, ela não pode sair nua pelas ruas da cidade, não é mesmo?
Se fosse eu o homem, desconfiaria. Encontrar uma mulher nua nestas circunstâncias é esmola demais para que cego não possa enxergar.
Ele não é cego, querido. Que bom, encontrei um filme ótimo aqui no segundo caderno.
Ela desperta no homem intenso tesão. Abraça-o, faz carinho nele, beija-o, mas quer evitar o principal: que ele goze. Teme que depois do sexo o homem desista dela e vá embora. Não tarda a amanhecer e ele é sua única chance.
Como acaba, querido?
Você não disse que leu, Célia?
Li. Mas leio tanta coisa.
Não sei, não, ainda falta, mas acho que ele vai com ela.
Vai sim, amor, agora lembrei, os homens sempre vão com as mulheres. Você diz que resistiria, mas não deixaria a mulher pelada ali, tanto mais se estivesse só, o dia quase raiando, seria um achado.
É, dependendo das circunstâncias...
E então, amor, o texto está bom?
Acho que sim, não vejo nada de errado nas palavras que ele usa, tanto mais que o conto é ambientado nos anos de 1980.
Foram anos bons, éramos mais jovens.
Prefiro você agora, querida, mesmo com mais vinte e poucos anos de idade e vestidinha como está, Deixo a mulher nua para o seu amigo.
Certo, querido, vou fingir que acredito.
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