quarta-feira, novembro 13, 2013

Depois do filme, quem sabe

Tenho uma diarista que é fogo, não perde tempo, namora o tempo todo e obtém sempre vantagem dos homens que arranja. Ultimamente tem falado sobre a casa onde trabalha às quartas; um emprego, segundo ela, muito bom. O patrão dá-lhe dinheiro a mais e pede que não fale à esposa. É a mulher que cuida do salário.

“Cuidado, ele vai querer algo em troca”, alertei.

"Não sei, acho que sim, mas enquanto eu puder vou tirando vantagem."

Passaram-se duas semanas e fui eu que conheci um homem vinte anos mais velho que eu. Estava num café, onde uma amiga lançava um livro. O local, no Leblon, abrigava pessoas elegantes e discretas àquele entardecer. O homem comprou o livro, entregou a autora para que autografasse e permaneceu nas proximidades. Como havia um pequeno coquetel, acabamos conversando. Ele falou sobre a beleza dos poemas que o livro contém e sobre a referência a certos mitos, tema importante na vida atual e assunto imprescindível num dos ramos do conhecimento da vida moderna, a psicanálise. Escutei o homem, mas não me demorei ali, tinha um compromisso.

Dias depois o encontro ao acaso na Livraria da Travessa. Logo que me avistou, aproximou-se. Sorridente, ofertou-me um poema. Foi o primeiro presente, um poema decorado, encaixava-se perfeito ao momento.

Não sei dizer o motivo, mas caí nas águas dele e passamos a nos encontrar. O pretexto sempre era uma boa conversa. E os cafés, os melhores lugares. Continuou a me ofertar presentes. Trouxe uma caixinha. Desembrulhei e tirei a tampa. Uma máscara em miniatura. Trouxera-a de Veneza. Contou-me sobre a cidade.

Lembrei-me de minha diarista e os cem reais que o patrão oferecera-lhe. Aceitei os primeiros presentes. Mas depois comecei a querer desvencilhar-me do homem. A diarista continuou a contar a vantagem do dia. Na semana seguinte aos cem recebeu mais cento e cinquenta.

“Qualquer hora perco a empregada”, falei, "desse jeito você não vai precisar mais trabalhar."

“Não diz isso, dona Leila, não sou mulher à toa.”

Meu admirador convidou-me para o cinema. Marcamos em Botafogo, onde há um conjunto de salas que exibe filmes europeus. Sofisticado ele, não? Logo ao chegar, reparei uma pequena bolsa, colorida, que ele segurava. Beijou-me e fez que eu recebesse a prenda. Sorri, agradecida.

“Não precisa”, falei, “assim, tantos os presentes, não é justo.”

“Claro que é”, quase bradou o homem, “não posso encontrar uma mulher tão elegante, tão educada, sem retribuir o mimo”, completou.

Abri o tal mimo. Era uma pequena caixinha com outra caixinha dentro, e mais ainda outra; no final, uma bonequinha russa. Que charme, surpreendi-me. Ele apenas sorriu.

“Dona Leila”, eufórica, relatou a diarista na semana seguinte, “acho que o homem enlouqueceu, desta vez foram duzentos.”

“Duzentos?, e a mulher dele?”

“Da mulher, não sei, só posso dizer que o homem botou duzentos na minha mão."

“E você?”, eu curiosa.

“Eu? O que a senhora faria no meu lugar? Peguei o dinheiro e guardei na bolsa.”

“Olha que ele vai querer você pelada.”

“Será, dona Leila?”

”O que você acha, Júlia?”, eu, conclusiva.

Duas semanas depois voltou o meu admirador. Fizera uma viagem. Chegou com uma bolsa enorme, e dentro dela uma série de pacotes pequenos. Primeiro, bonequinhas de enfeite, bonequinhas russas. O homem é doido por bonecas. Vai ver que me acha uma delas. Havia também dois perfumes, três camisas com nome das cidades por onde andara, e no mais fundo da bolsa, dentro de outra caixinha, um anel.

“Não posso aceitar o anel”, falei um tanto precipitada.

“Não?, qual o motivo?”, ele parecia surpreso.

“Somos apenas amigos, não quero noivado”, afirmei resoluta.

“Não se trata de noivado, não lhe peço compromisso algum, é apenas um mimo, um enfeite para os dedos, é ouro da Suíça”, ressaltou, “ao ver a joia na vitrina não pensei que poderia frequentar outras mãos que não as suas”, insistia ele.

“Oh, você parece um poeta apaixonado”, repliquei.

“Quem sabe?, também escrevo poemas, lembra aquele recitado por mim num dos primeiros encontros? É de minha autoria, não quis fazer autopropaganda logo no início.”

“Ah, és também poeta?”, ressaltei a segunda pessoa.

Ele apenas inclinou o rosto e mostrou um rosto engraçado. Lembrei a máscara veneziana.

Experimentei o anel.

“Adivinhaste-me o tamanho”, exclamei.

“Dona Leila, já não posso mais”, voltou-me a diarista, “já chega a trezentos a oferta.”

“Que bom”, arregalei os olhos.

“A senhora acha mesmo?”

“Você não falou que aproveitaria enquanto houvesse chance? Pois aproveite.”

“Mas, Dona Leila, estou sentindo que devo obrigação ao homem?”

“Obrigação?”, franzi o cenho, “que obrigação?”

“Vou tirar a roupa pra ele.”

“Ele só quer ver?”, eu não estava surpresa.

“Sim, mas a senhora sabe, é só no início, depois vai o conteúdo.”

“Conteúdo?”, fiz que não entendi.

“O meu corpo, dona Leila, o homem é louco por minhas curvas.”

Nada disse a ela sobre o meu admirador. Escondi o anel para que não perguntasse nada.

Continuei a encontrar o namorado. Sim, àquela altura que outra palavra poderia dar ao relacionamento? Nosso namoro era constituído de passeios pela cidade, sessões de cinema e um ou outro jantar. Ele nada pedia, parecia ter todo o tempo do mundo para conquistar o prêmio.

Mas minha diarista marchava a passos largos. No outro dia contou-me que tirou a roupa para o homem.

“E se a mulher dele surpreende vocês dois?”, perguntei.

“Não há esse perigo, ela sempre chega muito tarde, ele é que trata de quase tudo, eu mal vejo a mulher.”

“Então, as coisas são fáceis para vocês”, insinuei.

“São, são realmente muito fáceis.”

Alguns dias depois fui ao cinema sozinha. Enquanto esperava a hora do filme, um homem jovem veio falar comigo.

“Oi, tudo bem?”, esperou que eu respondesse.

Baixei os olhos como se não quisesse dar atenção.

“Você estava olhando para mim”, falou, “pensei que me conhecesse de algum lugar.”

“Não, foi um equívoco”, alertei, “vi uma mulher atrás de você, pensei ser uma amiga, foi para ela que olhei.”

“Ah, sim... Como você está sozinha, achei que quisesse conversar um pouco.”

“Conversar?”, repeti sua palavra e sorri.

“Isso mesmo”, continuou, “às vezes as pessoas precisam conversar”.

Olhei o relógio e ameacei levantar-me. Queria ver o filme, não demoraria a começar.

“Quem precisa conversar sou eu”, enfim confessou, “achei você uma pessoa agradável, por isso me aproximei.”

Tirei da bolsa um cartão e o entreguei a ele.

“Outro dia, e, ainda um acréscimo, sou psicanalista, cobro caro.”

Ele foi embora, e eu entrei para ver o filme.

Não demorou minha diarista veio com uma história interessante.

“Dona Leila, ele vai alugar um apartamento pra mim.”

“Verdade?”, fingi surpresa, pois conheço os tipos.

“Verdade. Vai alugar no centro da cidade. Assim fico mais perto e ele pode me visitar sem riscos.”

“Quer dizer que vocês estão com medo da mulher dele?”

“Medo, medo, não. Mas fica mais conveniente, e já que é ele é quem vai pagar...”

Meu admirador reapareceu no final de semana. Marcamos um teatro. Após o espetáculo, fomos ao Mini Moc, um restaurante japonês, na Dias Ferreiras. Falei pela primeira vez sobre a minha diarista. Ele achou a mulher esperta e a história interessante.

“Não é apenas pelo fato de haver traição, mas porque há um pouco de prostituição nisso tudo”, opinei.

“É difícil dizer hoje o que não é prostituição. A sociedade em si é prostituta. Quem pagar mais, leva.”

“Mas aceitar tantos presentes”, exclamei, “não seria melhor obter as coisas com o trabalho?”, eu tinha essa dúvida.

“Minha querida”, iniciou, “o que acontece é o seguinte: o homem gostou dela, quer fazer um agrado. Os presentes são a materialização do seu amor. Assim eliminamos a prostituição.”

“Você em parte tem razão. Se pensamos que tudo é prostituição, não mais podemos dar presentes quando gostamos de alguém.”

“Isso mesmo, você pode dar o presente de forma desprendida, sem segundas intenções”, disse ele.

“Por falar nisso, você tem-me dado muitos presentes. Ganhei até mesmo um anel de noivado”, mostrei a mão direita.

Ele silenciou durante alguns segundos, talvez pensasse na minha diarista, talvez no patrão dela. Depois, mudamos de assunto. Conversamos sobre o recém-visto espetáculo.

Dois dias depois estou de novo sozinha no café do cinema. Lembram do homem jovem que veio falar comigo da outra vez? Apareceu de novo. Aproximou-se.

“Agora, já nos conhecemos”, falou.

 “Oi, como vai?”

“Vou bem. Quero-lhe fazer um convite.”

“Faça”, falei e continuei olhando minha revista.

“Que tal um chope depois do filme?”

“Chope?”, franzi a testa.

“É o modo de dizer, você entende, não?”, reparou.

“Ok, um chope”, sorri, coloquei a revista na bolsa. Só então reparei que devia ser mais jovem que eu dez ou quinze anos. “Você vai ao filme também?”

“Quem sabe”, olhou a fila, virou-se para o cartaz.

“Depois do filme, quem sabe”, foi a minha vez de falar.

Ele entendeu. Caminhou à bilheteria e comprou o ingresso.

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