sábado, maio 24, 2014

Borboleta

“Faça de conta que você é uma borboleta. Melhor ainda, uma fadinha borboleta. Mova os braços. Na verdade, eles são asas. Alce voo. Você se equilibra em pleno ar presa apenas pelo meu sexo. Vamos, não ponha força. Você é tão leve, mais leve do que o ar. Quanto mais bate as asas, tanto mais goza. Sopra o vento, um vento morno que eleva a borboleta. Goza mais, isso, as asas a se moverem, sempre as asas. Goza, goza, goza mais, goza melhor.”

Eu obedecia o seu hábil sussurrar em meu ouvido. No início, ele levantara-me nua e me encostara a uma das paredes da sala. Seu pênis deslizou fácil para dentro de mim. A seguir, recuou um passo, negou-me o apoio à parede, trouxe-me junto a seu tórax. Pude sentir o pulsar de seu coração sobre meus seios nus. Suas palavras me inflavam. Abri os braços, ou melhor, as asas, e as movi com sofreguidão. Era uma borboleta tentando soltar-se da armadilha de mel. Ao mesmo tempo que tentava levantar voo, percebia o céu maior. Já solta de seu tronco, descobri-me aérea, as asas finas mas resistentes. E a promessa de gozo maior, esse fio tão tênue, equilibrava-me. Equilíbrio precário, verdade. Logo eu, tão mínima, a desafiar as rigorosas leis da física. No final, explodi. Uma explosão em céu de diamantes. Era ainda eu um ser alado? Sei que girava em meio a cores gelatinosas atravessadas por lâmina solar de fim do dia. E gritava. E era a pura felicidade. Jamais gozara em tamanhas altitudes.

“Não me solte, não me solte, voarei cada vez mais alto...”, ainda fui capaz de dizer.

Então, o cálice de amor.

Tudo aquilo começou mais cedo. Eu e três amigas estávamos no Ilha Linda Sul, o restaurante mais sofisticado da orla de M. Ficamos numa das mesas junto à mureta que separa o restaurante do passeio. Era o melhor modo de sermos percebidas pela plateia do diário espetáculo. E para uma segunda-feira à noite, até que a plateia era grande. Nossas roupas sempre a ressaltar os corpos sarados. E roupas mínimas. Mas eu, como sempre, jamais conseguia o menor short. As amigas ultrapassavam-me em ousadia. Entretanto, o que se há de fazer? Mesmo assim caí nas graças de um homem. Ele chegou tarde, com outros dois amigos. Sentou-se a princípio de costas para mim, duas mesas adiante. Levantei e disse que iria ao toalete. Minhas amigas permaneceram conversando. Caminhei lentamente, ultrapassei a mesa onde ele estava, imaginei-o olhando-me o bumbum. Ele deslumbrou-se ao ver-me nua ao toalete. Tudo através do pensamento, tenho certeza. Os homens agem assim após verem uma mulher como eu passar em direção ao toalete. Na volta, antes de cruzar sua mesa, fechei os olhos. Quando faltavam três passos até onde ele sentava, abri os olhos bem devagar, revelava-me, mostrava todo o meu ardor. E ia nua, como antes em sua imaginação. Percebeu o meu ardil. Eu era uma sereia fisgada, sem chance alguma de remissão. Roubou-me o short, atirou longe o meu top. Poucos minutos se passaram para que um dos garçons me trouxesse o bilhete. Não foi, como jamais poderia ser, um pedido vulgar. À orquídea, a luz precisa ser perfeita. Não eram apenas palavras, era toda a iluminação que eu precisava.

Seguiu-se o desenlace. Ele desceu ao passeio. Eu o segui após três intermináveis minutos. Ao dobrar à esquina, em direção ao estacionamento, esperou-me. Assim que o ladeei perguntou o meu preço.

“É por amor”, expressei-me com frieza. Aliás, um paradoxo.

“Amor?”, queria a confirmação.

“Amor”, assegurei.

Andamos juntos até o automóvel. Abriu a porta dando-me a passagem.

“Por amor?”, insistiu.

“Uma prova?”, perguntei.

“Pode ser”, revelou-se ainda incrédulo.

Como diz o povaréu, moeda grande... Então me despi, deixei em suas mãos o pequeno short. Mirou-o com certa admiração. Depois o posou no banco traseiro. Ligou o automóvel. Partimos.

Ao entrarmos pela garagem, no seu edifício, alto o edifício, “precisa do short?”, perguntou.

“Preferia que não”, respondi, as pernas ainda cruzadas, tão alvas.

Lá em cima, a história da fadinha, a fadinha-borboleta.

“Bata as asas, isso, as asas, mova-as com carinho, nada de força, é a leveza que ajuda a alçar o voo, você goza melhor nas alturas.”

Eu presa apenas pela ponta do sexo dele, um acróbata.

“Não deixe que escape”, gemi.

Meus braços, asas inteiras. Minha pele branca, lisa, pano nenhum a pesar-me o corpo.

Quando percebi, nas alturas, entre nuvens e alguma estrela a cintilar esporádica, gozava, gozava e mais gozava, gozava solta, levitava, alturas do empíreo, como aprendi com o poeta. Os braços ainda asas... Mas estava só, sozinha. E nua. Borboleta soprada por vento brando.

O cálice (era licor ou amor?) trouxe-me de volta à terra. E os braços tão nus, os braços tão asas. As três amigas nuas, onde? Onde o restaurante? E sonhos, e mais sonhos...

domingo, maio 18, 2014

Fio de adaga

Sempre gostei de andar composta, com todas as roupas necessárias para me sentir elegante. Outro dia, ao sair com uma amiga (fomos a uma festa, uma espécie de coquetel com jantar), reparei que uma das mulheres era muito assediada pelos homens. Perguntei à amiga:

“Por que ela tem tantos homens à sua volta? Nem é tão bonita.”

“Adivinha.”

“Está usando um vestido curtinho.”

“Se fosse só isso”, afirmou.

“O que mais?”, estava interessada porque não via motivo para tal assédio. “Ela é uma pessoa importante, profissionalmente?”, completei.

“Nada disso, Isabel”, respondeu-me a companheira de festa, “ela só está usando o vestidinho.”

“Como só o vestidinho?”, insisti enquanto segurava uma taça de vinho servida por um dos garçons.

“Ela não usa nada além do vestido”, esclareceu a amiga.

A única coisa que eu pude fazer foi rir.

“E não é só ela”, continuou, “outras também gostam de aparecer.”

“Que desvalorização”, observei, “nada pior para nós mulheres.”

“Isabel, muitas agem assim porque homem está difícil hoje em dia.”

“Mas é se rebaixar muito.”

“Será?”, indagou minha amiga.

“Você quer dizer que também joga no mesmo time?”

“Hoje, não. Estou vestidíssima, assim como você. Mas já saí sem. Não tem nada demais. E é bom porque os homens quando percebem não nos largam.”

“Mas você fica mal falada entre eles.”

“Depende”, salientou, “caso seja uma festa onde pouca gente nos conheça, não há problema. O ideal é que seja uma dessas comemorações que acontecem bem tarde, depois de meia-noite.”

“Quando os homens descobrem, eles não ficam loucos para trepar com você?”

“Ficam, mas a gente precisa segurar a barra um pouco, fingir que está tudo normal, conversar assuntos que nada tenham a ver com sexo, coisas desse tipo.”

“Aí eles ficam ainda mais excitados...”

“Viu como você também sabe das coisas?”

“Sei. Mas prefiro estar vestidinha. Caso alguém goste de mim, deve ser desse jeito”, ressaltei.

“Ótimo, então, prepare-se, porque já vi um homem lindo olhando para cá.”

“Outra coisa que não concordo é sair com um homem no mesmo dia que o conheço.”

“Isso depende de cada uma. Eu já não sei se isso é bom.”

“Você sai sem conhecer a pessoa?”

“Sempre achei que os convidados dessas festas são muito selecionados. Também deixo alguém de sobreaviso.”

“Sobreaviso?”, eu quis saber.

“Isso mesmo, para o caso de acontecer alguma coisa de ruim comigo”, ela disse.

“E como a pessoa poderá saber que algo saiu errado?”

“Ah, Isabel, sempre há um grau de imprevisibilidade, mas isso ainda não aconteceu comigo.”

“Desculpe, foi apenas um palpite.”

Alguém começou a tocar piano. Várias pessoas movimentaram-se pelo salão, esticaram o pescoço, procuravam ver de onde vinha a música.

Minha amiga distanciou-se com a desculpa de procurar alguém. Misturei-me às pessoas e logo apareceu o homem que me espreitava. Sorri, dissimulada. Deixei que lançasse toda a sua sedução. Não é bom revelar nossos desejos às amigas, logo falam para alguém. O segredo é fazer as coisas em silêncio, só a gente a sentir o prazer. O coquetel continuou, outras pessoas chegaram, algumas se foram, e, no final, o homem me perguntou se poderíamos conversar em outro lugar. Eu o segui. Quis saber se aprecio fotografias.

“Se a fotografada for eu, adoro”, dei a senha.

Saímos da festa no automóvel dele. No rádio, uma orquestra tocava Mahler, um arrepio. Trafegamos pelos bairros nobres da cidade, até pararmos na Gávea, uma casa de dois andares, com muros altos, dois cães enormes.

“Não tenha medo, são amigos, sabem distinguir pessoas belas, sobretudo mulheres.”

Toda vez que ele falava, sua voz soava como música. E eu sentia arrepio sobre arrepio, ero o mesmo de já estar nua, suas mãos a deslizar sobre a minha pele. Pensei na amiga já distante e no que a noite reservava-me.

“Você bebe?”, perguntou assim que entramos numa sala grandiosa, quadros nas paredes, móveis pesados de madeira nobre.

“Sim, gosto de bebida gelada, um Martini, com uma cereja ou mesmo uma uva mergulhada nele.”

“Ok, já sei do que você está falando. Aqui tenho muitas bebidas, quase todas, não se acanhe. E também tenho frutas.”

Voltou com uma taça pequena, uma primor a bebida.

“Reparei que você admira Mahler.”

“Apenas conheço alguns acordes”, tentei ser humilde.

Meu admirador era grande, um pouco acima do peso, mas vestia um terno que lhe dava elegância. Ofereceu-me a melhor das poltronas, foi buscar uns acepipes.

“Estás confortável assim?”, tentou a segunda pessoa.

“Sabes conversar de modo culto...” afirmei ressaltando as reticências.

“É necessário que se conheça alguma coisa, não é só pelas mulheres, há o mundo, a diplomacia, ainda existe certa nobreza.”

“Como a beleza das orquídeas”, sugeri em voz baixa.

“Oh, as orquídeas, sabes do que é belo nesta vida.”

“Será?, sou tão tacanha.”

“Tacanha?”, sorriu, como se me pedisse explicações sobre a palavra.

Retirou-se durante alguns minutos para voltar com uma garrafa de vinho. Não consegui observar a procedência. Ele abriu. Bridamos. Após o primeiro gole, pude sentir o delicado aroma.

Conversamos de modo mais solto a partir dessa segunda bebida. Também trouxe uma tábua de queijos. Pouco a pouco aproximou-se e tocou um dos meus braços. Perguntou se podia fotografar-me.

“Claro”, assenti graciosa.

Pediu que eu escolhesse as poses. Sentei ora de modo sério ora de maneira divertida. Cruzei as pernas para um lado, para o outro e descobri no olhar dele o desejo de me fotografar nua. É lógico que não fez tal proposta. Não colocaria a noite em risco com uma atitude infantil. Continuei sentada, com a taça nas mãos, completada por ele pouco a pouco. Já que eu trajava roupas de festa, vestido comprido, com decote e algum brilho, colar e brincos, um echarpe para caso fizesse aquele friozinho de outono, ele respeitou a minha postura. Talvez, se usasse roupa curta, como mais cedo as mulheres da festa, ele já tivesse saltado sobre mim. A discrição de minha parte o deixava um tanto reservado.

Será que minha timidez impediria nosso mergulho no amor, momento que já nos rondava?

Fechei os olhos, ainda sentada na poltrona. Ouvi sua voz de barítono declamar um poema. Não se tratava de uma declamação afetada, mas fala coloquial, quase um dizer de amor. Cantava o amor e cuidado que este sentimento exige.


Enquanto descansa, dorme,
a mulher que amo, que me ama,
sigo neste exercício da ternura exata
e comum:

cuidar, de quando em quando,
que as treliças da janela
amenizem a manhã em sua rudeza de adaga,
ainda que doméstica lâmina.

E, assim, em volta da mulher que amo,
que me ama, vá o dia
como deve ser: o sol
necessário, um debrum.


A manhã ainda ia longe, mas o canto iluminou-me como o sol que traz o vigor da manhã. Sorri, ainda de modo tímido, olhos fechados. Foi então que senti o seu hálito próximo ao meu rosto, uma odor de vinho tinto misturado ao desejo, perfume que toda mulher há de saber...

Beijou-me, delicado. Suspirei. Deixei que sua boca invadisse a minha, que sua língua me tocasse, uma espécie de prólogo à madrugada que ainda havia de durar. A partir deste momento, coube a ele toda a ação. Tomou-me nos braços e levou-me para o quarto. Quando abri os olhos, estava no centro de uma cama imensa. Ainda vestido, ele olhava-me terno. Veio-me à mente as palavras da amiga, companheira de festa na noite recente. "Cada uma tem o seu vício, ainda que esconda-o." O dela era andar nua, ou de vestido muito curto, apenas. Quem sabe trazia também outros vícios não revelados? O meu é o de gritar na hora do sexo, dizer palavras descontroladas, perder-me em sons desconexos, grunhidos de apetite e gozo, como alguns animais realizando o desejo instintivo. Quando começou a tocar meu corpo, primeiro suspirei palavras de amor, depois lancei gritos breves, mais adiante berros em uníssono.

“Podes dizer tudo que quiseres, o que está mais oculto dentro de ti, a palavra reprimida, o desejo impossível”, sua voz expandia-se num entusiasmo crescente. Ele trabalhava sobre o meu corpo.

Pouco a pouco me despiu. Naquele momento, dei o sinal mais estrondoso:

"Rasga-me, rasga-me toda, todinha, viu. Penetra-me e rasga-me, arranca com violência a roupa que ainda me cobre."

Ele, como um bom amante, compreendeu minhas palavras. Eu, num enlevo, esperei seus movimentos de braços, de pernas, do pênis dentro de mim.

Já próximo ao final do ato, numa gradação impossível de ser contida, emiti uivos do gozo que se avizinhava. Meu recente amante incendiava-me, dizia que gritasse mais e mais.

Assim foi a minha noite. De mulher convidada a um coquetel, vestidíssima e recatada, a um fim de madrugada com a pele alva banhada em líquidos de amor, as fibras esgarçadas por um fio frio de adaga.


O poema presente neste conto pertence a Eucanaã Ferraz, e se chama: “Enquanto descansa, dorme...”

sábado, maio 10, 2014

A obra de arte e o enlouquecimento

A noite terminou na casa dele num colchão duro sobre o qual rolávamos de um lado para o outro. Mas ao chegar eu alertara que não transaria naquela primeira vez, precisava de um tempo para me adaptar. Não era mentira. Não é que eu queira posar de mulher difícil. Geralmente não consigo me soltar nem sentir prazer no primeiro encontro, às vezes nem mesmo no segundo. Mas aceitei ir até lá. Toques e beijos são bons prólogos para uma relação. E, quem sabe, dependia dele. Concordei em tirar a calça comprida e a blusa ficando de calcinha e sutiã. Ele reparou meu corpo, ressaltou minhas curvas e afirmou que não sou gorda nem magra. Em pouco tempo viramos uma espécie de brinquedo um do outro. Enquanto fazia carinho nas minhas costas, eu grudava ao seu tórax e procurava sua boca. Parti num afã para beijá-lo, mas reparei que ele era suave e preferia o beijo num ritmo mais vagaroso. Aos poucos, com a ponta dos dedos, foi descobrindo onde eu mais sentia prazer. Continuei a beijá-lo, a deixar molhados seus lábios, seu queixo. Quando procurei com a língua seu pescoço, ele mordiscou minha orelha esquerda e a manteve inteira dentro de sua boca, tocou nela de leve com a ponta da língua. Tremeliquei e fiquei toda arrepiada. Desatou meu sutiã e admirou meus seios, beijou os bicos e os manteve, um depois do outro, dentro de sua boca. Tremi dessa vez de modo intenso. Desceu as mãos pelo meu ventre, acariciou minha cintura nas laterais e puxou minha calcinha até o joelho. Daí em diante eu mesma a tirei. Estava nas mãos dele, podia fazer comigo o que bem desejasse. Rápido, não? Para quem pensara que não se soltaria de primeira... Me estiquei no colchão e disse baixinho ai vou perder a cabeça, não perde a sua não, por favor. Não se preocupe, falou, não vou gozar dentro não. E ficamos num movimento uniforme no começo, mas que foi se intensificando à medida que vinha o gozo, e vinha de um modo gostoso, como um pássaro que não tem medo de se aproximar e acaba por pousar sobre um dos nossos braços. Ai, vou gozar, gritei num frêmito incontrolável, mas não goza você não, por favor, deixa apenas eu perder a cabeça, insisti. Gozei com violência, e ele ficou a esperar que eu terminasse com toda aquela agitação. No final, ainda perguntei, você não gozou dentro não, não foi? Ele disse claro que não, você pediu eu obedeci. Foi a nossa primeira vez. Quando havíamos terminado e ainda estávamos enroscados um dentro do outro, ele perguntou você acredita que uma obra de arte pode levar a pessoa à loucura? Não sei, talvez, respondi, já pensei sobre isso, conheci um homem que atribuía a um filme espanhol a razão de sua infelicidade, depois que o viu nunca mais foi o mesmo, acho que você conseguiu fazer isso comigo, mas no sentido inverso, suas carícias foram um tipo de arte que me deixou louquinha, acrescentei falando devagar. Ele riu, compreendeu o que eu quis dizer. Mas percebi que, como sou professora de artes, não era essa a resposta que ele queria. O corpo e os movimentos não deixam de ser obras de arte, tentei concluir. Sentei na beira da cama e cruzei as pernas. Olhei sorrateira para ele como uma modelo nua que espera o trabalho do artista sobre o mármore.

Só sei que numa das noites que se seguiram perdi a cabeça de novo e me esqueci de pedir a ele que não perdesse a sua. Quando fui à minha ginecologista, levei uma tremenda bronca. Ela disse que não se pode deixar um estranho gozar dentro da gente. Falou que eu me portei de modo mais irresponsável do que muitas das minhas alunas adolescentes. Contei-lhe então sobre a obra de arte e o enlouquecimento, mas ela não me deu ouvido.

sábado, maio 03, 2014

Surpreso?

Ele falou sobre uma mulher que tivera. Mas a culpa foi minha, reconheço. Não sei por que sempre começo a puxar assunto sobre suas ex-namoradas. Ele diz que isso me dá tesão. Acontece quando brigamos, não aguento e afirmo que com sicrana ou beltrana ele não agiu daquela forma. Tanto agi que ela me chutou pra escanteio, declara solene. O motivo foi outro, replico, ninguém aguenta esse mulheril todo atrás de você. Silencia durante um tempinho. Então, continuo, tem mais uma coisa, aquela sua última namorada é feia que dói. Olha para mim surpreso, faz um movimento como se fosse falar algo, mas não vai adiante. Continuo, lembra aquele meu amigo?, aquele que apresentei a você no CCBB, ele estava comigo quando você apareceu com ela, até ele comentou, caramba, que mulher feia. Feia?, retruca, você é professora de artes, devia saber que o feio e o bonito são questões de ponto de vista, parece que nunca leu Kant. Isso não tem nada a ver com Kant, ela é feia, sim, chego a gritar. Estourando de raiva, acaba falando, você pode achá-la feia, mas fazia umas coisas melhor do que você, certa vez permitiu que eu tirasse o biquíni dela na praia, dentro d’água, e a deixasse nua durante um tempo enorme, você não teria coragem de se prestar a isso, terminou e esperou que eu retrucasse. Mas engoli a seco. O que eu poderia falar? Certa vez já ficara nua do lado de fora do apartamento dele por causa de uma discussão semelhante. Agora, porém, deixar que ele me roubasse o biquíni ao entrar para tomar banho de mar seria demais. Mas não suportei aquilo, acabei por lhe dizer, fico sim, tenho mais peito do que ela. Ah, realmente, nisso você tem razão, seus peitos são muito maiores, completou como se narrasse o desfecho duma piada.

No dia seguinte fomos à praia. Ele queria me testar. Vamos ver se você falou da boca pra fora ou se vai ter coragem mesmo, afirmou em tom de pergunta, duas vezes, enquanto dirigia. Chegamos à Barra, lá no final da praia, um tipo de reserva. Aqui está bom, apontei o local. Arrumamos nossas coisas, abrimos o guarda sol. Havia poucas pessoas na praia. Notei que ele estava excitado. Vamos entrar, ordenei. Como já fizera teatro, eu representava, encarnava na verdade outra pessoa, porque caso vivesse eu mesma, a Cris que todos conhecem, desmoronaria em tremeliques. Vamos, concordou. De repente, pareceu surpreso. Você vai de maiô? Sim, claro, como você gostaria que eu fosse?, fiz cara de inocente. De biquíni, assim só tiro a parte de baixo, fica mais discreto, você pode ficar horas dentro d’água que ninguém repara que lhe falta a peça inferior, assegurou. Peça inferior?, repeti e ri, nada disso, quero ficar nua por inteiro, você tira o meu maiô e traz para cá, guarda entre as hastes superiores da barraca, ok?, e mais uma coisinha, depois vai dar uma volta, tome uma cerveja num desses quiosques, quando cansar volte com o meu maiô, vou ficar esperando. Estou surpreso, falou. Surpreso?, você deveria pensar melhor ao me fazer propostas desse tipo, não falei que tenho mais coragem do que sua ex? E cá entre nós, afirmo e reafirmo, ela é feia que dói.