Antes eu procurava frases de efeitos para começar um conto.
Sempre achei importante e imprescindível ter estilo. E as tais frases, como me
davam prazer. Hoje já me sinto senhora de mim, isto é, do meu texto. Não mais
necessito copiar literatura alheia. Durante a noite penso no que vivi no dia
findo, coloco então certa ordem no caos. Quando acordo, vou direto ao
computador. Não tenho dificuldades para transformar a brancura da folha numa
obra de imaginação. Já depois de duas ou três frases, voo hábil, como a boa
cozinheira que sou acrescento o tempero certo, nem mais nem menos, sutil apenas,
nada que faça desandar o almoço, ou a janta, quem sabe.
Ah, meu patrão, como é encantador. Quando o conheci logo
pensei vou conquistá-lo, não posso deixar que escape. Passava junto dele, quase
a lhe roçar a pele, olhava-o de soslaio. Ele concentrado na leitura, na
escrita, no trabalho. Essa vida de escritor é de arrepiar, o homem não pensa em
outra coisa, lê e escreve o dia inteiro. Fui contratada como sua secretária.
Vocês sabem como isso funciona. Faço de tudo, até mesmo o serviço doméstico.
Visto uma bermuda de lycra, uma camisa de malha e mergulho no mar de tarefas que me espera. Sei que
ele me olha de rabo de olho quando entro no seu escritório. Já o surpreendi uma
ou duas vezes, ele bem sabe, mas o homem tem o poder do disfarce, consegue
manter-se frio, distante. No começo pensei se ele me agarra?, grito ou corro?
Um homem de seu quilate, porém, não vai partir para um expediente tão baixo,
adivinho. Lógico que minhas manifestações de possível desespero também se
encaixavam nas gavetas da representação, puro teatro. E demorou até acontecer
alguma coisa entre nós. Há aquele toque de mãos, quando fingimos esquecer que
estamos pele a pele. A mesma pele do ventre, das coxas, dos seios etc. Escorregamos
durante alguns segundos no corpo alheio. Eu mesma afasto as mãos. Tenho a
preocupação de não deixá-lo constrangido. Passam-se vários dias sem nos prestarmos
a toques mais íntimos, apenas o trabalho, sorrisos e algum meneio meu de
cabeça.
A iniciativa tem de ser minha, afirmaria a meus botões caso
me fosse tal a roupa. Se deixar ao encargo dele, jamais teremos uma relação
além da profissional. Passo a refletir sobre o que fazer, sobre como uma
mulher pode conquistar um homem sem se mostrar ridícula. O amor? Não sei, amor
como as pessoas o entendem parece enredo de telenovela, e meu patrão não é
chegado a elas. Coloco-me em prontidão, descubro a possível trilha a seguir,
observar-lhe as leituras. Qual o tipo de livro lê ele, qual o autor, qual o
tipo de personagem feminina o interessa? Tem às mãos na maior parte do tempo os
livros de Machado de Assis. Mas as mulheres de Machado são superiores aos
homens, vencem na inteligência, na astúcia; quando não podem vencê-los
abertamente se calam, reflito; com o tempo, percebe-se que ostentam o troféu da
vitória. Portanto, não me posso colocar como uma das personagens machadianas,
para tal empreitada precisaria de muita leitura, e isso levaria tempo. Descubro,
entretanto, outra coisa, um possível caminho para as minhas intenções. Não se
pode viver de tanta virtude, eis a verdade, quero dizer, não se pode viver de
tanta seriedade. Entre numerosas personagens complexas, muitas virtuosas e
outras nem tanto, encontro a vulgaridade. Não se trata de livro de Machado, mas
obra traduzida do francês (oh, sempre os franceses), se não me engano um livro
que logo depois de publicado foi levado às telas. Tomo o exemplar nas mãos e o
folheio. Não passa muito tempo para eu descobrir que se trata de um caso de
amor, ou seja, de relação sexual, melhor dizer assim. Um homem procura
apartamento e, em meio à visita a um deles, encontra ao acaso uma mulher, que
também busca onde morar. Não trocam palavras, apenas ligeiros gestos de
cumprimento e de tolerância um com outro. Ambos partem, mas voltam duas ou três
vezes, nos dias seguintes. Numa dessas visitas, acabam transando. Tudo acontece
com naturalidade. São corpos que se atraem por si sós, ambos necessitam do calor
recíproco. Na última visita, no entanto, há um pequeno pacote de manteiga. Acho
que trazido pelo homem. Não preciso dizer a que a manteiga se presta. A mulher goza
intensamente.
Deixo o livro de lado e continuo o meu serviço. Na manhã
seguinte vou ao mercado. Entre as compras trago a manteiga, a mais cara, a mais
bonita, a de nome atrativo, que dá asas à imaginação. Meu patrão olha o objeto
sobre a mesa e, creio eu, não faz a ligação imediata com o assunto do livro
encontrado por mim entre seus papéis. Come o lanche matinal e, apenas no final,
olha para mim e sorri. Nesse sorriso, encontro uma ponta de malícia. Digo
então... E curvo a cabeça. Começo a desfazer a mesa do café.
Duas horas depois, ao entrar no escritório para lhe levar um café puro, como sempre costumo fazer, ele pede a manteiga. O senhor quer
também torradas?, pergunto sem malícia. Não, por favor, apenas a manteiga.
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