quinta-feira, setembro 18, 2014

Que conquista, a minha

Antes eu procurava frases de efeitos para começar um conto. Sempre achei importante e imprescindível ter estilo. E as tais frases, como me davam prazer. Hoje já me sinto senhora de mim, isto é, do meu texto. Não mais necessito copiar literatura alheia. Durante a noite penso no que vivi no dia findo, coloco então certa ordem no caos. Quando acordo, vou direto ao computador. Não tenho dificuldades para transformar a brancura da folha numa obra de imaginação. Já depois de duas ou três frases, voo hábil, como a boa cozinheira que sou acrescento o tempero certo, nem mais nem menos, sutil apenas, nada que faça desandar o almoço, ou a janta, quem sabe.

Ah, meu patrão, como é encantador. Quando o conheci logo pensei vou conquistá-lo, não posso deixar que escape. Passava junto dele, quase a lhe roçar a pele, olhava-o de soslaio. Ele concentrado na leitura, na escrita, no trabalho. Essa vida de escritor é de arrepiar, o homem não pensa em outra coisa, lê e escreve o dia inteiro. Fui contratada como sua secretária. Vocês sabem como isso funciona. Faço de tudo, até mesmo o serviço doméstico. Visto uma bermuda de lycra, uma camisa de malha e mergulho no mar de tarefas que me espera. Sei que ele me olha de rabo de olho quando entro no seu escritório. Já o surpreendi uma ou duas vezes, ele bem sabe, mas o homem tem o poder do disfarce, consegue manter-se frio, distante. No começo pensei se ele me agarra?, grito ou corro? Um homem de seu quilate, porém, não vai partir para um expediente tão baixo, adivinho. Lógico que minhas manifestações de possível desespero também se encaixavam nas gavetas da representação, puro teatro. E demorou até acontecer alguma coisa entre nós. Há aquele toque de mãos, quando fingimos esquecer que estamos pele a pele. A mesma pele do ventre, das coxas, dos seios etc. Escorregamos durante alguns segundos no corpo alheio. Eu mesma afasto as mãos. Tenho a preocupação de não deixá-lo constrangido. Passam-se vários dias sem nos prestarmos a toques mais íntimos, apenas o trabalho, sorrisos e algum meneio meu de cabeça.

A iniciativa tem de ser minha, afirmaria a meus botões caso me fosse tal a roupa. Se deixar ao encargo dele, jamais teremos uma relação além da profissional. Passo a refletir sobre o que fazer, sobre como uma mulher pode conquistar um homem sem se mostrar ridícula. O amor? Não sei, amor como as pessoas o entendem parece enredo de telenovela, e meu patrão não é chegado a elas. Coloco-me em prontidão, descubro a possível trilha a seguir, observar-lhe as leituras. Qual o tipo de livro lê ele, qual o autor, qual o tipo de personagem feminina o interessa? Tem às mãos na maior parte do tempo os livros de Machado de Assis. Mas as mulheres de Machado são superiores aos homens, vencem na inteligência, na astúcia; quando não podem vencê-los abertamente se calam, reflito; com o tempo, percebe-se que ostentam o troféu da vitória. Portanto, não me posso colocar como uma das personagens machadianas, para tal empreitada precisaria de muita leitura, e isso levaria tempo. Descubro, entretanto, outra coisa, um possível caminho para as minhas intenções. Não se pode viver de tanta virtude, eis a verdade, quero dizer, não se pode viver de tanta seriedade. Entre numerosas personagens complexas, muitas virtuosas e outras nem tanto, encontro a vulgaridade. Não se trata de livro de Machado, mas obra traduzida do francês (oh, sempre os franceses), se não me engano um livro que logo depois de publicado foi levado às telas. Tomo o exemplar nas mãos e o folheio. Não passa muito tempo para eu descobrir que se trata de um caso de amor, ou seja, de relação sexual, melhor dizer assim. Um homem procura apartamento e, em meio à visita a um deles, encontra ao acaso uma mulher, que também busca onde morar. Não trocam palavras, apenas ligeiros gestos de cumprimento e de tolerância um com outro. Ambos partem, mas voltam duas ou três vezes, nos dias seguintes. Numa dessas visitas, acabam transando. Tudo acontece com naturalidade. São corpos que se atraem por si sós, ambos necessitam do calor recíproco. Na última visita, no entanto, há um pequeno pacote de manteiga. Acho que trazido pelo homem. Não preciso dizer a que a manteiga se presta. A mulher goza intensamente.

Deixo o livro de lado e continuo o meu serviço. Na manhã seguinte vou ao mercado. Entre as compras trago a manteiga, a mais cara, a mais bonita, a de nome atrativo, que dá asas à imaginação. Meu patrão olha o objeto sobre a mesa e, creio eu, não faz a ligação imediata com o assunto do livro encontrado por mim entre seus papéis. Come o lanche matinal e, apenas no final, olha para mim e sorri. Nesse sorriso, encontro uma ponta de malícia. Digo então... E curvo a cabeça. Começo a desfazer a mesa do café.

Duas horas depois, ao entrar no escritório para lhe levar um café puro, como sempre costumo fazer, ele pede a manteiga. O senhor quer também torradas?, pergunto sem malícia. Não, por favor, apenas a manteiga.

Não preciso dizer mais, confio na inteligência dos meus leitores.

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