Seria talvez possível que a um ponto da vida o mundo se
tornasse óbvio? Vinha pensando nessa questão após sair com um paciente. Acho
paciente uma palavra ruim, porque sou dentista e não acho quem senta na cadeira do meu consultório paciente. Mas deixemos isso de lado. Ia com ele pela
rua. Fora o último naquela quinta-feira à tarde. Queríamos o café da livraria. Um ambiente agradável, acolhedor. Ele pediu que fôssemos antes ao caixa
eletrônico. Entramos numa agência do banco, na Treze de Maio. Esperei a certa
distância. Assim que saíram as notas da máquina ele as pegou e guardou na
carteira. Ao chegar junto a mim, disse guarda essas pra você, é um presente. Entregou-me
duas notas de cem. Não, o que é isso, cheguei a recusar. Mas ele insistiu compre
uma coisa bonita, Acabei segurando as notas. Fico aborrecida
com isso, sabia?, falei. É pra ajudar a pagar o condomínio, ele disse e começou a rir. Lembrei que uma ou duas semanas antes havia comentado que um
paciente me paquerara e dissera que podia me ajudar a pagar o condomínio, pois
tinha muito dinheiro e não via oportunidade para gastá-lo, mas o homem insinuou
certo namoro comigo. No entanto, este, que estava ao meu lado naquele momento,
completou não quero nada em troca. Ri e acabei guardando o dinheiro na bolsa.
Sei, é certo que você não queira nada em troca, ironizei, depois completei ah,
você é fogo, viu, isso não vai ficar assim não, vamos ver o que posso fazer pra
devolver esse dinheiro. Pensei no tratamento dentário que ele fazia comigo. O
mundo não se torna tão óbvio, refleti. As notas na bolsa. Aceitei enfim a
gratificação. Assim que nos despedimos, no metrô, na estação Largo do Machado,
beijei-o e senti um arrepio. Enquanto andava ao ponto do ônibus o arrepio intensificou-se, tocou-me ao fundo o corpo. O óbvio está no
meu comportamento, pensei, como mulher sempre gostei de me sentir um pouco
prostituta. Psiu, silêncio, disse a mim mesma, ninguém pode saber disso. Falo por mim, nada sei sobre outras mulheres. Mas ressalto, o gosto de me sentir
prostituta não me ocupa totalmente, apenas um centímetro. Na verdade, procuro justificativas. Portanto, a aceitação das notas de dinheiro endossava a obviedade do mundo e me levava a entregar-me mais afoita aos afagos daquele homem.
Na sexta seguinte encontrei com ele no mesmo café. Não marcara consulta alguma para aquele dia. Deixei o horário para o encontro. Depois do café permiti que me roubasse a
roupa num hotel próximo. Quatro da
tarde. Eu a rolar numa cama larga. E o homem dentro de mim. O mundo tornara-se óbvio. Mas teria problema o óbvio? Acho que o não óbvio será, uma madrugada dessas, ele me abandonar pelada num ponto de ônibus. Que fantasia excitante! Quem me contou foi uma paciente. Isso mesmo, uma mulher. Viveu a experiência na própria pele. E duradouro o arrepio. Ai, tenho de
disfarçar. Talvez devesse mudar o nome dela. Meu paciente deu-me outros duzentos reais, o óbvio. Eliete, minha paciente, fez de graça!
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