quinta-feira, novembro 13, 2014

Pezinho

Eu sabia que Newton gostava de circular de carro pelas madrugadas de M. à cata de mendigas que dormiam pelas calçadas. O homem tinha tara por mendigas. Elas, apesar de escoladas no perigo das ruas, não conseguiam escapar. Ele as segurava com força, amarrava-as caso necessário e as colocava na mala do carro. De início pensavam que seriam mortas. Mas quando percebiam que o mesmo homem desatava os nós que lhes prendiam braços e pernas, dentro de uma suíte de motel, tranquilizavam-se. Ainda desconfiadas não se mexiam quando o desconhecido, com toda delicadeza do mundo, as banhava em água quente. Já na cama, tudo mudava de figura. Newton proporcionava enorme prazer a todas.

Aos poucos as mendigas da cidade passaram a arrepiar-se ao ver o automóvel do amante aproximar-se. Já não resistiam. A única exigência que ele fazia é que haviam de ir dentro da mala. Uma vez que ainda exalavam o odor fedorento das ruas, não poderiam ser transportadas no banco do carona. Algumas, em má matemática, contavam nos dedos os dias que haviam passado desde a última trepada com o magnífico amante. Newton as tratava como rainhas muito desejadas. Ninguém, no entanto, falava sobre isso na cidade.

As mulheres sempre são ardilosas. Eu, mais ainda. O segredo chegou, enfim, aos meus ouvidos. Primeiro achei que fosse invenção. No entanto, logo descobri a verdade. Bastou-me um dia seguir Newton em uma de suas saídas. Embora sempre apaixonada por ele, jamais consegui sua atenção. A partir do que pude observar, resolvi tornar-me uma das mendigas, na cidade. Ao menos durante algumas horas na semana.

Fazer-se de mendiga não é tarefa fácil. A rua é um lugar perigoso. Há homens que não livram a cara de mulher alguma, nem da mendiga mais maltrapilha. Tive de fugir deles várias vezes. Nem sempre consegui. Numa ocasião, depois de intensa resistência, tive de me largar nas mãos de um desconhecido. Temi contrair doença maligna. E o homem, no final, não me deixou vestida. Tive de rebolar para conseguir chegar nua em casa. Como meu objetivo era Newton, aceitei privações e perigos.

Passaram-se algumas semanas desde que me deitara ao relento num colchonete, pela primeira vez. O local, mais tranquilo do que os outros, era uma esquina no setor azul, da cidade. Sabia que Newton tinha bom faro. Vi o seu automóvel rondar várias vezes o bairro. Fiz de conta que me escondia. Afinal, numa noite sem lua, caí nas mãos do homem. Fingindo, esbocei grande resistência. Ele amarrou-me os punhos e me jogou na mala do carro, como costumava fazer com as outras. Bati-me, fiz barulho. Tudo em vão. Como eu desejava, descobri-me no motel, assim como as outras.

Newton é um político influente na região, foi eleito duas vezes prefeito e exerce o segundo mandato de deputado estadual. Eu fora secretária de educação num dos seus mandatos de prefeito. Disfarcei-me ao máximo para não ser desmascarada. Ele jamais vira mendiga tão enegrecida, tão fedida como eu.

Já cheirosa e envolta em seda, trepei com ele. O homem levou-me ao delírio.

Dali em diante, preparei-me para que o encontro se repetisse outras vezes. Mas Newton demorou a voltar. Vivi com mendiga durante várias semanas, atravessei várias madrugadas sob o sereno do outono e tive de escapar tantas outras vezes de homens inescrupulosos. Deparei novamente com o desconhecido que me despira, sobre quem já falei.

Na segunda vez que Newton me tirou da rua, numa noite fria, consegui conversar com ele. Dizia não gostar de assunto com as mendigas, nada tinham a acrescentar, apenas as fodia. Representei o estereótipo da mulher rude, mas com alguma inteligência.

“Você seria capaz de casar com uma mendiga?”, perguntei.

Ele disse que não. “As esposas são muito limpas”, falou e caiu na gargalhada.

“Você não gostaria de levar uma mendiga com você, quando vai à capital como deputado?”

“Só se for uma mulher muito especial, na capital há também mendigas interessantes.”

Minha esperança foi por água abaixo. Trepei com ele uma segunda e terceira vez. Quando me deixou na rua, no final da madrugada, prometi a mim que não mais representaria aquele papel.

Passaram-se dois meses. Reparei cartazes nos muros da cidade com o desenho do rosto que era o meu quando me transformava em mendiga.

Já que não mais apareci, Newton procurava por mim. Havia um telefone abaixo do desenho, na verdade um retrato falado. Liguei ao número indicado. Um homem atendeu. Sou a mendiga que o deputado procura.

Não esperei doze horas. Um motorista particular me veio buscar no local que indiquei. Quando encontrei Newton, ele disse que se apaixonara por mim. Tive de rir.

“Não vai dizer que você quer casar com uma mendiga?”

“Casar, não”, afirmou categórico, “mas quero levar você ao Rio de Janeiro.”

No Rio, essas coisas acontecem em outro patamar. Trata-se de uma cidade perigosa. E o perigo excitava Newton. Ele constantemente me pedia para contar como fiz para me livrar dos homens que me assediavam. Eu inventava histórias. Ora dizia que escapara de todos, ora que um deles me deixara nua a madrugada inteira e me comera de modo exemplar. Contava como eu gozara. Depois Newton pedia que eu fizesse com ele da mesma forma. Certa vez contei do homem que, em M., me fizera voltar nua pra casa. Não calculava que tal assunto excitaria tanto a Newton. Pediu para fazer comigo do mesmo jeito.

“Mas o quê?, vamos trepar na rua?”, assustei-me.

Ele não quis saber. Trepamos na rua. Ele, um homem tão importante. Depois, deixou-me, do mesmo modo como o outro fizera.

"Ei, volte aqui."

Mas ele não voltou. Ou melhor, atirou-me algum dinheiro, três notas de cem. Eu, nua, com o dinheiro numa das mãos. Onde enfiaria as notas?

A cada encontro o homem oferecia-me uma quantidade maior de notas. Sou uma pessoa normal, gosto de dinheiro, portanto, a situação passou e me agradar. Logo arranjei um jeito de manter as notas e escapar ilesa, embora nua. Mulheres bonitas atraem sorte.

Um dia ele resolveu levar-me a Brasília.

“Newton, lá há mendigas à vontade, você não precisa me levar”, alertei.

Mas o homem me deu vestidos novos, maquiagem, tudo que eu precisava. E lá fui com ele. Sempre mudando o rosto. Sempre temendo ser desmascarada. Transamos no final da Asa Sul, sobre um gramado comprido. Ele deixou-me nua com dez notas de cem. Nunca pensei que a vida na capital federal fosse tão fácil.

Após certo tempo, Newton passou a se interessar pelas mendigas de Brasília. E não duvidei ao perceber no rosto de uma delas algum disfarce.

Na última vez em que me vesti de mendiga no Planalto Central, acercou-me um automóvel. Não era Newton. Mesmo assim não demorei a reconhecer o motorista. Era Mariano, marido de Pezinho, a deputada federal mais votada de M. Antes de casar com ela, ele fora um mendigo de verdade. Mesmo assim o homem não deixou de me reconhecer.

"Quero comer você, Elinete, a secretária de educação do prefeito Newton."

"Me coma à vontade, respondi convidativa, mas seja cavalheiro, a mendiga aqui quer uma trepada bem dada numa cama de hotel."

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