Ela havia sentido uma ponta de prazer. E o pior é que ele notara. Na certa, não a perdoaria...
Ou melhor, queria contar essa história em terceira pessoa,
mas a mulher era eu e, de verdade, já me havia aberto demais; ele, grudado às
minhas costas; eu sem me poder mexer.
Ia num ônibus repleto, um fim de tarde. Todos sabem como é a
condução nos arredores das grandes cidades. Em BH, então, nem se fala. Voltava
do trabalho. Vestia jeans, uma blusa branca de mangas curtas, curtinhas mesmo,
fazia calor, na cintura o tecido era larguinho, disfarçava qualquer ameaça de
barriguinha. Estava em pé, as pessoas passavam rente às minhas costas. Observei
algumas. Uma menina com a mãe, provavelmente voltava da escola; um rapaz
carregando uma mochila; uma mulher jovem, de óculos, com aspecto de secretária; depois passou um homem negro, achei sua altura exagerada, vestia
calça azul e camiseta marrom, sem gola, vinha de cara fechada. Daí em diante me
perdi em pensamentos, preocupações diárias, uma lembrança ou outra que nos assalta quando reparamos algo na rua, um portão, o letreiro de uma loja, o cheiro
de pão que vem de uma padaria. Ao saltar do ônibus, reparei que meu celular não
estava na bolsa. Fiquei desconfiada do homem negro, grandalhão. Não sei por quê,
mas sempre achamos que os ladrões têm cara de ladrões. Às vezes isso é um ledo
engano. Mas cismei. Apesar de sempre dizer não ao preconceito, cismei que o
negro roubara-me o telefone.
Passaram-se duas semanas e ia eu na mesma linha de ônibus.
Quase as mesmas pessoas, o empurra-empurra de sempre. Assustei-me ao descobrir,
entre os passageiros, o mesmo grandalhão suspeito. Agarrei a bolsa e tentei
olhar um ponto neutro na paisagem. Não mais procurei o homem, não mais olhei
pessoa alguma. Depois de saltar, reparei que faltavam vinte reais, apenas uma
nota, eu a levava no bolso de trás da calça.
Nas semanas que se seguiram, viajei no mesmo itinerário, mas
ele não apareceu. Eu olhava os passageiros em detalhes, procurava observar
neles algo que revelasse suas personalidades. Não me queria preconceituosa de
só achar o ladrão no corpo e na fisionomia do negro. Avistei uma senhora gorda,
estava sentada num dos bancos além da metade do coletivo. Apesar de aparentar
idade – entrava pelos quarenta, ou mesmo pelos cinquenta – seu rosto emanava
felicidade, mantinha a aparência de adolescente, quase infantil, trazia sobre o
colo duas bolsas de papel. Tentei em vão
descobrir o motivo de toda aquela felicidade.
Duas semanas adiante, quando já não pensava no homem,
avistei-o de novo. Num primeiro momento senti o corpo todo arrepiado. Não sei
se de medo ou se por outro motivo. Lembrei que trazia uma nota de dez num dos
bolsos da calça, mas dessa vez no dianteiro. Ainda pensei em, num movimento
rápido, esconder o dinheiro na palma da mão. Assim fazemos na infância, quando sob as ordens de algum adulto vamos ao armazém da esquina comprar o ingrediente que falta para completar
o prato do almoço. Mas acabei deixando o dinheiro no bolso, intocado. Senti o
homem passar suave às minhas costas. Esforçava-se para não me espremer na barra
do banco transversal, talvez tivesse certo pudor ao me esbarrar. Não o senti a me tocar o bolso em momento algum. Quando saltei, no entanto, a nota de dez me
faltava.
“Era uma época em que eu não conseguia escrever e me sentia
atormentada por aquela espécie inaudível de barulho.” A frase, copiei-a de um
livro. Às vezes descubro uma frase que gostaria de ter escrito. Espero, então,
o momento certo de usá-la. Mas emprego-a de modo disfarçado. Troco alguma
palavra ou aplico-lhe um desvio, porém de modo que não lhe roube a graça
original. Ela, a frase, representou exatamente o que eu sentia nos dias
posteriores a que vira o tal homem, ou o tal ladrão, melhor dizer assim. Aquela
espécie inaudível de barulho era a face sorrateira do homem que eu cismava
encontrar no rosto de outros negros que me cruzavam o caminho. Os dias se
demoravam. Eram tardes intermináveis. Eu sentava na poltrona da sala com um
livro nas mãos. As listras de sol, que atravessavam a janela, avançavam com lentidão
sobre o assoalho. Quando me atingiam os pés, eu já não encontrava nesse sol o
calor necessário para aquecer meu espírito. O crepúsculo trazia o vento frio,
que eu queria de um mar impossível.
Já na primavera, resolvi sair. Era setembro. Embarquei num
ônibus em busca de uma biblioteca pública. Não demorei a chegar ao centro da
cidade. As pessoas mergulhadas nos livros, o som inconfundível das bibliotecas,
o mundo do silêncio. Na volta, mesmo de pé, agarrada a uma as vigas, vinha
lendo o livro que apanhara de empréstimo. Foi então que ele apareceu. Entrou
imenso, percorreu grande parte do corredor e parou bem atrás de mim. O ônibus,
como sempre, pleno de pessoas. O homem estacado às minhas costas, bem seguro,
bem posicionado. Lembrei que desta vez não trazia dinheiro no bolso. Melhor,
nem bolsos tinha, viera de vestido, justo, que me deixava as pernas de fora. A
primavera já incendiava boa parte das mulheres. O que ele me roubaria? Numa das
mãos eu segurava uma pequena carteira. Dentro, duas notas de vinte, uma de
cinco e duas moedas. Trazia também o cartão do banco e a identidade. Fechei o livro
e sustentei sob o braço esquerdo todo o peso daquela história. Pensei em
abrir a carteira e lhe entregar o dinheiro. Que me deixasse em paz, de
volta à leitura. Mas fiquei apenas no pensamento. Depois, comecei a sentir
certo calor. Não tenho vergonha de confessar. Enfim, descobri o que ele me
queria roubar. Logo, ali, dentro do ônibus, em meio à multidão de sessenta passageiros, que escândalo... Suas mãos tatearem-me as coxas. Eu as sentia. Não
tinha a mesma habilidade de quando praticava seus furtos. Cheguei a pensar em
gritar, alertar quem estava à minha volta, quem me poderia ajudar? Mas nada
fiz. Depois acabei achando melhor assim. Levava o seu objeto de desejo
e eu mudava de bairro, ou de cidade. E não o encontraria mais. Apesar de ser
atirada, nunca vivera tal experiência. Vinha com mescla de medo e mais de
alguma coisa que, dias depois, descobrir ser prazer. No momento pensei,
faço de conta quer sonho. E nos sonhos tudo é permitido... Ele avançava. Que
não me levasse o vestido, que não me deixasse toda nua. Surpreendi-me quando o vi sobre passeio, acabado
de descer. Ainda a multidão a me espremer, ainda suas mãos desajeitadas a
tentar uma sonata por baixo do meu vestidinho.
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