quinta-feira, novembro 20, 2014

Sonata para piano

Ela havia sentido uma ponta de prazer. E o pior é que ele notara. Na certa, não a perdoaria...

Ou melhor, queria contar essa história em terceira pessoa, mas a mulher era eu e, de verdade, já me havia aberto demais; ele, grudado às minhas costas; eu sem me poder mexer.

Ia num ônibus repleto, um fim de tarde. Todos sabem como é a condução nos arredores das grandes cidades. Em BH, então, nem se fala. Voltava do trabalho. Vestia jeans, uma blusa branca de mangas curtas, curtinhas mesmo, fazia calor, na cintura o tecido era larguinho, disfarçava qualquer ameaça de barriguinha. Estava em pé, as pessoas passavam rente às minhas costas. Observei algumas. Uma menina com a mãe, provavelmente voltava da escola; um rapaz carregando uma mochila; uma mulher jovem, de óculos, com aspecto de secretária; depois passou um homem negro, achei sua altura exagerada, vestia calça azul e camiseta marrom, sem gola, vinha de cara fechada. Daí em diante me perdi em pensamentos, preocupações diárias, uma lembrança ou outra que nos assalta quando reparamos algo na rua, um portão, o letreiro de uma loja, o cheiro de pão que vem de uma padaria. Ao saltar do ônibus, reparei que meu celular não estava na bolsa. Fiquei desconfiada do homem negro, grandalhão. Não sei por quê, mas sempre achamos que os ladrões têm cara de ladrões. Às vezes isso é um ledo engano. Mas cismei. Apesar de sempre dizer não ao preconceito, cismei que o negro roubara-me o telefone.

Passaram-se duas semanas e ia eu na mesma linha de ônibus. Quase as mesmas pessoas, o empurra-empurra de sempre. Assustei-me ao descobrir, entre os passageiros, o mesmo grandalhão suspeito. Agarrei a bolsa e tentei olhar um ponto neutro na paisagem. Não mais procurei o homem, não mais olhei pessoa alguma. Depois de saltar, reparei que faltavam vinte reais, apenas uma nota, eu a levava no bolso de trás da calça.

Nas semanas que se seguiram, viajei no mesmo itinerário, mas ele não apareceu. Eu olhava os passageiros em detalhes, procurava observar neles algo que revelasse suas personalidades. Não me queria preconceituosa de só achar o ladrão no corpo e na fisionomia do negro. Avistei uma senhora gorda, estava sentada num dos bancos além da metade do coletivo. Apesar de aparentar idade – entrava pelos quarenta, ou mesmo pelos cinquenta – seu rosto emanava felicidade, mantinha a aparência de adolescente, quase infantil, trazia sobre o colo duas bolsas de papel. Tentei em vão descobrir o motivo de toda aquela felicidade.

Duas semanas adiante, quando já não pensava no homem, avistei-o de novo. Num primeiro momento senti o corpo todo arrepiado. Não sei se de medo ou se por outro motivo. Lembrei que trazia uma nota de dez num dos bolsos da calça, mas dessa vez no dianteiro. Ainda pensei em, num movimento rápido, esconder o dinheiro na palma da mão. Assim fazemos na infância, quando sob as ordens de algum adulto vamos ao armazém da esquina comprar o ingrediente que falta para completar o prato do almoço. Mas acabei deixando o dinheiro no bolso, intocado. Senti o homem passar suave às minhas costas. Esforçava-se para não me espremer na barra do banco transversal, talvez tivesse certo pudor ao me esbarrar. Não o senti a me tocar o bolso em momento algum. Quando saltei, no entanto, a nota de dez me faltava.

“Era uma época em que eu não conseguia escrever e me sentia atormentada por aquela espécie inaudível de barulho.” A frase, copiei-a de um livro. Às vezes descubro uma frase que gostaria de ter escrito. Espero, então, o momento certo de usá-la. Mas emprego-a de modo disfarçado. Troco alguma palavra ou aplico-lhe um desvio, porém de modo que não lhe roube a graça original. Ela, a frase, representou exatamente o que eu sentia nos dias posteriores a que vira o tal homem, ou o tal ladrão, melhor dizer assim. Aquela espécie inaudível de barulho era a face sorrateira do homem que eu cismava encontrar no rosto de outros negros que me cruzavam o caminho. Os dias se demoravam. Eram tardes intermináveis. Eu sentava na poltrona da sala com um livro nas mãos. As listras de sol, que atravessavam a janela, avançavam com lentidão sobre o assoalho. Quando me atingiam os pés, eu já não encontrava nesse sol o calor necessário para aquecer meu espírito. O crepúsculo trazia o vento frio, que eu queria de um mar impossível.

Já na primavera, resolvi sair. Era setembro. Embarquei num ônibus em busca de uma biblioteca pública. Não demorei a chegar ao centro da cidade. As pessoas mergulhadas nos livros, o som inconfundível das bibliotecas, o mundo do silêncio. Na volta, mesmo de pé, agarrada a uma as vigas, vinha lendo o livro que apanhara de empréstimo. Foi então que ele apareceu. Entrou imenso, percorreu grande parte do corredor e parou bem atrás de mim. O ônibus, como sempre, pleno de pessoas. O homem estacado às minhas costas, bem seguro, bem posicionado. Lembrei que desta vez não trazia dinheiro no bolso. Melhor, nem bolsos tinha, viera de vestido, justo, que me deixava as pernas de fora. A primavera já incendiava boa parte das mulheres. O que ele me roubaria? Numa das mãos eu segurava uma pequena carteira. Dentro, duas notas de vinte, uma de cinco e duas moedas. Trazia também o cartão do banco e a identidade. Fechei o livro e sustentei sob o braço esquerdo todo o peso daquela história. Pensei em abrir a carteira e lhe entregar o dinheiro. Que me deixasse em paz, de volta à leitura. Mas fiquei apenas no pensamento. Depois, comecei a sentir certo calor. Não tenho vergonha de confessar. Enfim, descobri o que ele me queria roubar. Logo, ali, dentro do ônibus, em meio à multidão de sessenta passageiros, que escândalo... Suas mãos tatearem-me as coxas. Eu as sentia. Não tinha a mesma habilidade de quando praticava seus furtos. Cheguei a pensar em gritar, alertar quem estava à minha volta, quem me poderia ajudar? Mas nada fiz. Depois acabei achando melhor assim. Levava o seu objeto de desejo e eu mudava de bairro, ou de cidade. E não o encontraria mais. Apesar de ser atirada, nunca vivera tal experiência. Vinha com mescla de medo e mais de alguma coisa que, dias depois, descobrir ser prazer. No momento pensei, faço de conta quer sonho. E nos sonhos tudo é permitido... Ele avançava. Que não me levasse o vestido, que não me deixasse toda nua. Surpreendi-me quando o vi sobre passeio, acabado de descer. Ainda a multidão a me espremer, ainda suas mãos desajeitadas a tentar uma sonata por baixo do meu vestidinho.

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