Tenho tudo o que sonho, escreveu imediatamente à mãe, pronta
a registrar mais um dado. Mas é claro que não contaria o principal. Gostara da
nova cidade, do namorado que lhe surgira ao acaso, mas não queria falar sobre
isso. A mãe já ficaria feliz ao saber que ela estava bem, que andava satisfeita
com a vida. Os pormenores na nova cidade, as descobertas que fazia no dia a dia,
não precisava relatar. Tinha muito o que contar, mas era necessário ser econômica,
não se estender nas palavras como sempre lhe ocorria. Que facilidade para
escrever, contar histórias. O ritmo da
nova vida era alucinante. Tinha vontade de escrever cartas longas, descrever os
detalhes da cidade, da casa onde morava, o jardim, a rua, a alegria de alguns
jovens que moravam nas proximidades. Não se inibia no momento de compor o texto.
Mas, para a mãe, escreveu apenas mais algumas linhas e achou que estava bom
assim. O importante era mandar notícias, aproveitava para convidá-la a vir
passar alguns dias na cidade. Logo, porém, sentiu um sobressalto. E se a mãe
resolvesse vir e ficar muito tempo, ou mesmo não ir mais embora? Se lhe
atrapalhasse a vida? Estava tão feliz. Também não queria que soubesse do
namorado. Bem, nem mesmo ela própria sabia profundamente sobre ele. O homem seria mesmo seu namorado? Ah, que diferença fazem as
palavras. Não perguntara a ele se tinha outra mulher, ou mesmo se um dia as
tivera. Não eram perguntas que se faziam. Claro que um dia as tivera, pois era
bonito, trazia no rosto a marca de quem sabia conquistá-las. Elas, por conta
própria, deviam viver atrás dele. Tirariam a roupa antes de baterem à sua
porta. Sentia-se uma felizarda por ter caído nas graças de criatura tão
disputada. Quase se perdeu nesses pensamentos quando lhe veio à mente a imagem
da mãe. Era por causa dela, do que lhe escrevia, que pensara no namorado. Convidou-a a vir, mas de modo discreto, num pós scriptum. Caso ela aceitasse, passeariam pela cidade, tomariam um sorvete, e depois diria das
ocupações assumidas, dos compromissos, falaria que precisava deixá-la só durante
algumas horas do dia. A mãe entenderia, sempre fora inteligente. E quanto ao
namorado, agiria com naturalidade. Terminou de escrever, dobrou o papel e o
enfiou num envelope. No dia seguinte o levaria ao correio. Chegou à janela e
olhou a praça de fronte. Era uma paisagem atrativa, muitas pessoas passeavam,
algumas levavam os filhos, observou duas jovens conversando. Eram bonitas,
muito bonitas. A visão das duas trouxe-lhe à mente de novo a imagem do
namorado. Quem sabe não o roubariam dela? O que deveria fazer para mantê-lo
junto a si?, pensou enquanto permanecia como uma estátua, olhando na direção
das mulheres. Ora, se ele estava sempre por perto era porque gostava dela, era
porque se sentira atraído pelas suas qualidades. Ah, como era bom viver na
cidade grande, ninguém a incomodá-la, ninguém a lhe bisbilhotar a vida.
Lembrou-se de um namorado que tivera em sua cidadezinha. Tremia toda vez que
transavam. Mesmo que fosse num motel distante. Não gostava que a vissem
junto a ele. As mulheres mais velhas falavam logo em casamento. Depois ouviu
uma história contada pela tia. Dizia que os homens da cidade eram tarados.
Queriam as mulheres apenas para lhes roubar as roupas de baixo, depois mostravam
as calcinhas aos amigos, disputavam entre si com quantas haviam trepado e a quem
pertencera as peças. A tia falava e olhava de soslaio para ela. Levantava,
dizia que tinha de estudar e saía. Até que passara no concurso público, mudara
para o Rio, e fora morar em Ipanema. Da janela ainda olhava as outras jovens,
elas ainda conversavam, uma arte a da conversa. Tinha inveja, pois nãos tinha
amigas e achava que não sabia conversar. Mas para que amigas? Iriam roubar-lhe
o namorado. E tudo ia tão bem, era inacreditável. Com exceção de um ponto, isso
mesmo, pequenina nódoa que a fez refletir. Ele lhe falara sobre outra mulher, dissera que o fato sucederá a um amigo. Ela, no entanto, desconfiara, já contará histórias protagonizadas por si própria como se a atriz fosse uma amiga qualquer. Não se deve comentar sobre relacionamentos anteriores com a mulher que se
namora hoje. É um preceito básico. Uma conhecida, que estudara psicologia, lhe falara
muito sobre relacionamentos. Eles estão ótimos quando os dois se bastam,
afirmava. Nada de trazer outras pessoas para junto dos dois amantes. Como
trazer outra pessoa? Estamos sempre os dois juntos, e eram apenas palavras... Não
entendera a lição. As palavras proporcionam a presença, acrescentara a
psicóloga. Ah, sussurrara, as palavras então têm poder de materialidade. E o
pequeno deslize do namorado fora contar sobre outra mulher, tornara-a real
diante dela. E a história era de amargar. Nem queria lembrar. Mas a narrativa
vez ou outra lhe martelava a cabeça. Para se livrar da obsessão resolveu
escrever. Ele, o atual namorado, chegara em casa com a outra. Os dois bêbados.
Ou melhor, ela vinha mais bêbada do que ele. Depois de abrirem a porta do
apartamento, tirarem as roupas e se esparramarem na cama ele sugeriu à mulher
passar-lhe um creme, e logo onde. Vocês podem imaginar. As palavras, ainda da
narradora. A mulher permitiu o creme. Daí em diante foi uma festa. Ela de
bruços, na cama, ele por cima. Ela gemia, pedia que ficassem daquele modo
durante toda a noite. Fim da narrativa. Será que ele pediria o mesmo a ela?
Jamais havia bebido e percebera que ele se frustrava quando ela nada aceitava,
nem mesmo uma taça de vinho. O vinho é sagrado, ele dissera no primeiro
encontro. Ela resistira. Quem sabe, apenas uma taça, hoje à noite ou amanhã.
Mas e se ele viesse com a sugestão, o creme, ela também de bruços? Perderia o
namorado, a conta era certa. Continuou a olhar pela janela. As duas jovens que
antes conversavam já haviam desaparecido. Uma mulher trazia duas crianças pelos
braços, deveriam ser seus filhos, um menino e uma menina. Ambos arrastavam seus
brinquedos. A noite caía devagar. O céu rosado à oeste. Ali seria o mar? Não
fazia ideia. Era péssima para direções. Ah, lá vinha ele, o namorado,
sorridente, trazia uma sacola de supermercado. Quem sabe queijos e vinhos? Mas
ela não beberia. Tremeu involuntariamente. Sairia da janela. Não demonstraria
que o esperava. Não podia demonstrar ansiedade. Uma de suas armas. Não
demonstraria excesso de interesse. Apenas um beijo, e o sorriso frio. Estudara
inglês, aprendera etiqueta com os ingleses. E quanto às palavras, tomaria
cuidado, não eram um terreno tão seguro. Em língua alguma. E tinha mais uma coisa, esconderia a carta que escrevera à mãe. Não queria o relacionamento perturbado por outra pessoa. Melhor o silêncio. Melhor o mistério. Assim, tornava-se mais interessante.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário