segunda-feira, maio 25, 2015

Carta à mãe

Tenho tudo o que sonho, escreveu imediatamente à mãe, pronta a registrar mais um dado. Mas é claro que não contaria o principal. Gostara da nova cidade, do namorado que lhe surgira ao acaso, mas não queria falar sobre isso. A mãe já ficaria feliz ao saber que ela estava bem, que andava satisfeita com a vida. Os pormenores na nova cidade, as descobertas que fazia no dia a dia, não precisava relatar. Tinha muito o que contar, mas era necessário ser econômica, não se estender nas palavras como sempre lhe ocorria. Que facilidade para escrever, contar histórias. O ritmo da nova vida era alucinante. Tinha vontade de escrever cartas longas, descrever os detalhes da cidade, da casa onde morava, o jardim, a rua, a alegria de alguns jovens que moravam nas proximidades. Não se inibia no momento de compor o texto. Mas, para a mãe, escreveu apenas mais algumas linhas e achou que estava bom assim. O importante era mandar notícias, aproveitava para convidá-la a vir passar alguns dias na cidade. Logo, porém, sentiu um sobressalto. E se a mãe resolvesse vir e ficar muito tempo, ou mesmo não ir mais embora? Se lhe atrapalhasse a vida? Estava tão feliz. Também não queria que soubesse do namorado. Bem, nem mesmo ela própria sabia profundamente sobre ele. O homem seria mesmo seu namorado? Ah, que diferença fazem as palavras. Não perguntara a ele se tinha outra mulher, ou mesmo se um dia as tivera. Não eram perguntas que se faziam. Claro que um dia as tivera, pois era bonito, trazia no rosto a marca de quem sabia conquistá-las. Elas, por conta própria, deviam viver atrás dele. Tirariam a roupa antes de baterem à sua porta. Sentia-se uma felizarda por ter caído nas graças de criatura tão disputada. Quase se perdeu nesses pensamentos quando lhe veio à mente a imagem da mãe. Era por causa dela, do que lhe escrevia, que pensara no namorado. Convidou-a a vir, mas de modo discreto, num pós scriptum. Caso ela aceitasse, passeariam pela cidade, tomariam um sorvete, e depois diria das ocupações assumidas, dos compromissos, falaria que precisava deixá-la só durante algumas horas do dia. A mãe entenderia, sempre fora inteligente. E quanto ao namorado, agiria com naturalidade. Terminou de escrever, dobrou o papel e o enfiou num envelope. No dia seguinte o levaria ao correio. Chegou à janela e olhou a praça de fronte. Era uma paisagem atrativa, muitas pessoas passeavam, algumas levavam os filhos, observou duas jovens conversando. Eram bonitas, muito bonitas. A visão das duas trouxe-lhe à mente de novo a imagem do namorado. Quem sabe não o roubariam dela? O que deveria fazer para mantê-lo junto a si?, pensou enquanto permanecia como uma estátua, olhando na direção das mulheres. Ora, se ele estava sempre por perto era porque gostava dela, era porque se sentira atraído pelas suas qualidades. Ah, como era bom viver na cidade grande, ninguém a incomodá-la, ninguém a lhe bisbilhotar a vida. Lembrou-se de um namorado que tivera em sua cidadezinha. Tremia toda vez que transavam. Mesmo que fosse num motel distante. Não gostava que a vissem junto a ele. As mulheres mais velhas falavam logo em casamento. Depois ouviu uma história contada pela tia. Dizia que os homens da cidade eram tarados. Queriam as mulheres apenas para lhes roubar as roupas de baixo, depois mostravam as calcinhas aos amigos, disputavam entre si com quantas haviam trepado e a quem pertencera as peças. A tia falava e olhava de soslaio para ela. Levantava, dizia que tinha de estudar e saía. Até que passara no concurso público, mudara para o Rio, e fora morar em Ipanema. Da janela ainda olhava as outras jovens, elas ainda conversavam, uma arte a da conversa. Tinha inveja, pois nãos tinha amigas e achava que não sabia conversar. Mas para que amigas? Iriam roubar-lhe o namorado. E tudo ia tão bem, era inacreditável. Com exceção de um ponto, isso mesmo, pequenina nódoa que a fez refletir. Ele lhe falara sobre outra mulher, dissera que o fato sucederá a um amigo. Ela, no entanto, desconfiara, já contará histórias protagonizadas por si própria como se a atriz fosse uma amiga qualquer. Não se deve comentar sobre relacionamentos anteriores com a mulher que se namora hoje. É um preceito básico. Uma conhecida, que estudara psicologia, lhe falara muito sobre relacionamentos. Eles estão ótimos quando os dois se bastam, afirmava. Nada de trazer outras pessoas para junto dos dois amantes. Como trazer outra pessoa? Estamos sempre os dois juntos, e eram apenas palavras... Não entendera a lição. As palavras proporcionam a presença, acrescentara a psicóloga. Ah, sussurrara, as palavras então têm poder de materialidade. E o pequeno deslize do namorado fora contar sobre outra mulher, tornara-a real diante dela. E a história era de amargar. Nem queria lembrar. Mas a narrativa vez ou outra lhe martelava a cabeça. Para se livrar da obsessão resolveu escrever. Ele, o atual namorado, chegara em casa com a outra. Os dois bêbados. Ou melhor, ela vinha mais bêbada do que ele. Depois de abrirem a porta do apartamento, tirarem as roupas e se esparramarem na cama ele sugeriu à mulher passar-lhe um creme, e logo onde. Vocês podem imaginar. As palavras, ainda da narradora. A mulher permitiu o creme. Daí em diante foi uma festa. Ela de bruços, na cama, ele por cima. Ela gemia, pedia que ficassem daquele modo durante toda a noite. Fim da narrativa. Será que ele pediria o mesmo a ela? Jamais havia bebido e percebera que ele se frustrava quando ela nada aceitava, nem mesmo uma taça de vinho. O vinho é sagrado, ele dissera no primeiro encontro. Ela resistira. Quem sabe, apenas uma taça, hoje à noite ou amanhã. Mas e se ele viesse com a sugestão, o creme, ela também de bruços? Perderia o namorado, a conta era certa. Continuou a olhar pela janela. As duas jovens que antes conversavam já haviam desaparecido. Uma mulher trazia duas crianças pelos braços, deveriam ser seus filhos, um menino e uma menina. Ambos arrastavam seus brinquedos. A noite caía devagar. O céu rosado à oeste. Ali seria o mar? Não fazia ideia. Era péssima para direções. Ah, lá vinha ele, o namorado, sorridente, trazia uma sacola de supermercado. Quem sabe queijos e vinhos? Mas ela não beberia. Tremeu involuntariamente. Sairia da janela. Não demonstraria que o esperava. Não podia demonstrar ansiedade. Uma de suas armas. Não demonstraria excesso de interesse. Apenas um beijo, e o sorriso frio. Estudara inglês, aprendera etiqueta com os ingleses. E quanto às palavras, tomaria cuidado, não eram um terreno tão seguro. Em língua alguma. E tinha mais uma coisa, esconderia a carta que escrevera à mãe. Não queria o relacionamento perturbado por outra pessoa. Melhor o silêncio. Melhor o mistério. Assim, tornava-se mais interessante.

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