quarta-feira, outubro 21, 2015

Não lhe dou inteira responsabilidade

“Não lhe dou inteira responsabilidade”, ela me disse.

Como, não?, pensei. Ela resolveu ficar nua dentro d’água e me deu o biquíni. Isso mesmo, a parte de baixo, para eu guardar. Não ficou totalmente nua, é claro, vestia o top.

“Com o top dá pra disfarçar”, falou Lena.

Lena já não é uma garota, acho que passa dos quarenta, quem sabe cinquenta, e o corpo de menina. Gosta de se mostrar, de namorar o perigo.

“Pra que essa brincadeira?”, eu, mais nervosa do que ela.

“Vá embora, depois conto, vem ele aí.”

Terminou de falar e voltou-se para o horizonte. Saí d’água, a praia frequentada por algumas pessoas locais, outros turistas, manhã de maio.

‘Não lhe dou inteira responsabilidade’, a voz dela ressoava na minha cabeça. Como, não?, seu biquíni nas minhas mãos, me encarregara de guardá-lo e depois devolver a ela quando fizesse um sinal. Caso eu mudasse de ideia, poderia ir embora e deixar Lena nua dentro d’água. Como não a responsabilidade? Ela confiava demais.

Percebi o homem chegando, aproximando-se, rodeando Lena, a mulher mais tranquila do mundo. Enfim, os dois começaram a conversar. Tive vontade de correr até ela e devolver o biquíni. Ele não notaria, as águas não estavam tão claras, mas Lena ia tão dona de si. Na certa, ralharia comigo, depois, me chamaria de precipitada.

‘Quando não tenho você pra me ajudar, enrolo o biquíni no punho, como uma pulseira. Eles não reparam que estou nua’, dissera certa vez.

Os dois entabularam uma conversa longa, não acabava mais. Então, aconteceu. Surgiu o Celso.

“Oi, como vai, não fala mais com os pobres?”, perguntou.

“Oi”, respondi olhando para o mar.

“Está esperando alguém?”, parecia cheio de desejo.

“Ninguém.”

“Ótimo, então hoje você não escapa, vem comigo pra uma bebida.”

“Não posso”, tremi. Era minha a responsabilidade.

“Como, não?”, insistiu, “você não está fazendo nada, e tenho uma fofoca pra te contar.”

Suspirei, ele sabia da minha queda pela vida das amigas.

“Sabe quem está com o Antônio?”

Aquilo dizia respeito a mim, e ele insistia.

“Você não vai querer saber?”, fez ar de malícia.

O Antônio fora meu namorado, me trocou por outra, eu ainda sentia uma ponta por ele.

“Quem é ela?”, eu, curiosa.

“Só se você for comigo tomar uma bebida.”

“Não posso, estou encarregada de uma tarefa.”

“Mas tarefa aqui na praia?, do que se trata?”

Não podia dizer que guardava o biquíni de uma amiga enquanto ela se aventurava nua com um desconhecido.

“Ai, que cidade mais entediante”, cheguei a exclamar.

“Que tal a bebida?", ele devolveu, "a revelação vai tirar você do tédio.”

Olha lá a Lena, mostrei ao Celso, ela é que está certa, sempre rindo e sempre se dando bem.

“A Lena é especial”, acrescentou.

Isso, a Lena é especial, pensei. Se é especial, terá a solução quando reparar que desapareci com o biquíni dela. E, além do mais, ainda gosto do Antônio, sussurrei a mim mesma, preciso ter ele de volta.

“Ok, onde a bebida?”

“Em Rio das Ostras.”

“Tão longe”, suspirei, “não pode ser aqui perto?”

“São só quinze quilômetros, e também quero te mostrar uma coisa."

Celso trabalha com incrustações de pedras semipreciosas em tecido.

"Estou preparando uma coleção que vai fazer o maior sucesso, quem sabe dou a você um presente?", ele incentivava.

Lena, espere por mim, daqui a pouco volto de Rio das Ostras, lhe falei em pensamento. Não lhe dou inteira responsabilidade, você mesma disse, Lena, por isso não sou a responsável.

Celso parou na Joana, a praia estava deserta, apenas o quiosque  e o funcionário. Bebemos uma, duas, três cervejas. Contou do Antônio, da namorada do Antônio, de que não me seria difícil ter o Antônio de volta.

Quando fomos até sua casa, não muito longe dali (ela ficava numa elevação de onde se podia ver o mar, uma beleza), ele trouxe uma série de biquínis para a nova estação, alguns com cada pérola que parecia diamante.

"Se você quiser, faço uma aplicação nesse seu biquíni, mas só devolvo amanhã."

"Espere um pouquinho".

Fui ao banheiro e vesti o biquíni de Lena.

"Que legal, você é prevenida mesmo, viu. Mas o que eu queria é que você fique nua", sugeriu.

Fiz uma pose e sorri.

A estada na casa do Celso naquele fim de tarde serviu pelo menos pra afastar o tédio que eu sentia desde cedo.

Quando voltamos, já era noite. Esse Celso é bom de cantada, concluí. Só não gostei quando falou sobre o biquíni da Lena, que eu usava pra voltar.

"Engraçado, esse teu biquíni reserva não me é estranho, acho que já esteve lá em casa", deu uma risadinha.

Arre. Todos os homens são iguais. Ele também já trepou com a Lena!

Só no dia seguinte consegui falar com minha amiga. Aliás, depois do que fiz, não sabia se ainda poderia me considerar sua amiga.

“Por que você afirmou, Lena, 'não lhe dou inteira responsabilidade'?”

“Nada de mais, apenas uma frase de Clarice Lispector. Pensei alto. Não liga não. Até que me caiu bem.”

"O quê?"

"A Clarice Lispector, ora; a Clarice Lispector e você!"

Nenhum comentário: