quarta-feira, novembro 04, 2015

Só todos aqueles trastes

Alô, quem?, Glória? Olá, como vai?, quanto tempo. Quais as novidades? Tudo bem. Quem? Ah, por favor, não me fale no Antônio, não quero ouvir falar no nome dele. Por quê?, Ora, Glória, você sabe, namorei ele, vivi com ele por aquele tempo todo, mas não deu, terminei. Ele era bom, atencioso, legal, mas não sei, cansei, sabe? O quê? Ele deixou com você uma encomenda pra mim? Fala sério, Glória. Então, quer dizer que você está me telefonando pra isso? Não, claro, compreendo, você queria conversar comigo e aproveitou a oportunidade. Mas que encomenda é essa? Não abriu? Parece um tecido? Jura? Pode abrir, sim, abre e me fala o que é. Sim, aguardo, mas não demora, tenho de ir à ginástica. Isso, estou em forma, você precisa ver o meu corpinho. Pega sim, espero. [...] O quê, um vestido? Branco, estampado com flores azuis? Ah, sim, agora sei o que é. Um bilhete?, dentro do embrulho. Pode sim, lê pra mim, quero saber o que o engraçadinho do Antônio escreveu. “Você não me contou como fez pra voltar pra casa sem ele”. Só isso, Glória?, não entendeu? O quê?, sem o vestido?, está louca?, Glória, como eu ia andar nua por aí? Já ouviu falar em histórias assim? Ah, Glória, não queria tocar nesse assunto, é muito desagradável. Promete não falar pra ninguém? Sei que você é pessoa confiável, por isso o Antônio deixou esse vestido com você. Já não quero falar com ele, sabe, foi um episódio que desejo esquecer. Não sei se dá pra falar pelo telefone, acho que passo aí mais tarde. Apanho o vestido e conto pra você. Agora vou pra ginástica. Lá pelas cinco e meia está bom? Então tá, vou sim.

Ele é terrível, Glória, inventa cada coisa. Acho que as mulheres acabam gostando. No começo eu ficava meio temerosa, mas depois passei a gostar também. Sabe como é a cidade, não tem nada pra fazer. Ele me chamava pra sair de noite e me levava lá pro Pecado. Primeiro comíamos e bebíamos alguma coisa ali no Ilha Linda, depois me arrastava pra beira da praia. Eu dizia Antônio, temos minha casa, por que isso? Mas ele queria que eu tirasse a roupa ali mesmo. Não foram só essas coisas. A gente ia também pra Rio das Ostras, lá pra Joana, ao entardecer. Ele cismava de me deixar nua dentro d’água. Sabe, Glória, essas fantasias esquentavam o relacionamento. Então aconteceu. O caso do vestido. Que é o motivo de minha vinda aqui à sua casa. A gente já tinha terminado, mas às vezes eu encontrava com ele pra um café, ali perto da Silva Jardim. Ele me contava como estava e eu falava um pouco de mim. Antônio gostava de escutar sobre o meu atual casamento. Achava estranho eu ficar aqui na cidade e meu marido a maior parte do tempo lá na serra. No final, ele ia comigo até perto de casa, depois me deixava e ia pra faculdade, onde leciona à noite. Numa dessas tardes, quando me acompanhou até em casa, convidei ele pra subir. Não repara que está a maior bagunça, a casa cheia de trastes. Antes de entrarmos, ele ainda lembrou um episódio engraçado. Certa vez, quando éramos namorados, ele me pediu pra descer nua, ficar um pouquinho do lado de fora e depois voltar pra ele abrir a porta e me receber peladinha, como ele falava. Acabei correspondendo ao desejo dele. Lembra que você veio aqui embaixo nua?, ele disse. Você não esquece essa história, respondi. Subimos e ficamos lá durante algum tempo. Então ele me fez o mesmo pedido. Você vai nua lá embaixo? Tá maluco, rebati, aquilo tudo já passou. Então ele começou com certo ardil. Eu pago pra você tirar a roupa, falou. Pagar, não sou prostituta. Não se trata de prostituição, disse ele, apenas uma ajuda, e sei que hoje as pessoas sempre precisam de algum dinheiro; dou a você cem reais. Cem reais?, o que é isso?, está me comprando?, contra-argumentei. Não se trata de compra ou venda, apenas um presente; aumento o lance, vamos dizer, cento e cinquenta. Não, Antônio, esquece, não vou tirar a roupa. E por duzentos?, ele continuava. Me veio à cabeça que consegui esse corpinho com a ginástica, e que estava atrasada na mensalidade. O pensamento me deu um arrepio. E ele notou, viu que eu titubeava. Sei que você está precisando, aumento mais cinquenta. Tirou o dinheiro do bolso e colocou sobre a mesinha de entrada. Fiquei, então, olhando as cinco notas de cinquenta, depois virei pra ele. Fiz uma negativa com a cabeça. Mas acabei tirando o vestido. Por trezentos e cinquenta reais. A roupa toda, também a roupa de baixo. E foi essa a história. Fui pelada lá fora. Caminhei até o quintal. Ao voltar, reparei que ele tinha desaparecido. Levou com ele meu vestido, calcinha e sutiã. E eu naquela casa cheia de trastes, sem roupa alguma pra vestir, todas estavam em Glicério, onde moro. Você quer saber como fiz para sair dessa situação? Olha, pelo bilhete, acho que ele quer saber também! É verdade, não, eu não tinha em casa um mísero pano pra me enrolar, só todos aqueles trastes...

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