Recebi carta de um ex-namorado. Isso mesmo, uma carta,
quem diria. Veio manuscrita, letra bem desenhada, autêntica obra de arte. Diz
sentir saudades de mim. Que privilégio, saudade, algo difícil de explicar, de
traduzir, inclusive palavra existente apenas em português. Deve ser verdade. Os
portugueses foram longe, deixaram muita gente atrás de si, mulheres, filhos,
amantes, muitos jamais retornaram. Não desejo avançar, atravessar todas as
fronteiras, dar a volta ao globo terrestre, como fizeram os portugueses, quero
apenas a carta, sua letra cursiva, a história de amor que comporta, amor e
fantasia. O homem me faz alguns pedidos. Está sempre a me imaginar bela, apesar
dos anos. Arrepio-me ante suas palavras. Caso não tivéssemos vivido várias aventuras, surpreender-me-ia. O que deseja? Transcrevo suas palavras.
Você costuma estar só,
costuma viver o prazer de uma tarde de outono, escuta a música silenciosa
presente no ar, percorre os cômodos, senta à uma poltrona na sala com um livro
à mão, lê uma boa história, sonha com os personagens. Portanto, peço a você que
faça uma representação. Torne-se uma personagem durante alguns instantes, pelo
menos para mim. Dispa-se, isso mesmo, tire toda a roupa, todinha, nada sobre o
corpo. Ponha-se a caminhar pela casa, como alguém que procura algo. Você
lembra-se de uma bolsa a tiracolo, preta e de verniz, pequena a bolsa, uma
gracinha. Vai ao encontro dela, deve estar num dos armários. Você possui tantas
coisas, guarda os objetos queridos, mesmo os não mais em uso. Encontra a bolsa,
lembra-se de uma saída noturna, você carregava a pequena bolsa, quase um
bibelô. Você a põe pendurada ao ombro. Não esqueçamos, você está nua. A seguir,
observa os pés. Não é possível portar uma bolsa tão mimosa e vestir pantufas. Vai
até o outro armário e olha os sapatos, as sandálias, os de saltos mais altos.
São tantos. Escolhe um deles, que reflete a mesma cor e brilho da bolsa, quem
sabe foram comprados juntos. Deixa as pantufas ao lado da cama e calça o sapato
de meio salto, quase clássico. Olha-se no espelho, vê-se refletida, corpo
inteiro, a bolsa e o sapato. Caminha pela casa, dirige-se de novo à sala. Está
pronta para sair. Um passeio, uma festa especial, não sei, convite de um
admirador. Mas ainda não é a hora, é possível sentar-se e aguardar, ler uma
página de revista antes. Chega-se ao sofá, senta, deixa a bolsa ao lado, toma
nas mãos a revista, há várias na mesa de centro. Abre, percorre as primeiras
páginas, cruza as pernas. Sente certo frisson, prazer talvez sentido poucas
vezes, experiência nova, você nua, dentro de casa, arrepio a lhe correr o
ventre. Cruza a perna na direção oposta, agora a direita sobre a esquerda. O
sapato destaca-se. Após um quarto de hora, deixa a revista, levanta-se, ajeita
a bolsa a tiracolo, dá alguns passos até à porta, é a hora, barulho de motor lá
fora. Vai você, aventura. Mas pode andar mais um pouquinho pela casa. Faça de
conta que ainda não terminou de se aprontar. As mulheres são mais demoradas,
esmeram-se. Senta-se novamente, sente pequena ardência que pouco a pouco vai crescendo,
até tornar-se um sol que a excita, como o sol de uma manhã de verão, uma
espécie de prazer, um prazer quase indescritível (na praia, o calor deste sol
se ameniza com um mergulho). Mas na sala, totalmente nua, bolsa a
tiracolo, sobre um sapato de meio salto, você tenta se conter, quer deixar o
momento de prazer para mais tarde, junto
ao namorado que a espera dentro do carro, diante do portão. Como se chama mesmo
o prazer que é caro às mulheres? Ah, sim, você sabe tão bem, as mulheres querem
sempre mais...
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