segunda-feira, junho 29, 2020

Todos os homens vão querer

O uso de máscara causa situações hilárias. Acho que é a palavra certa. Num dia desses vinha eu caminhando do supermercado, carregava uma pequena bolsa, quando um homem aproximou-se e disse você tem os lábios lindos. Como já estou acostumada com muitas azarações, principalmente depois de participar da tal telenovela, continuei meu caminho. Ao chegar ao apartamento, pouso as compras na cozinha, lavo as mãos e corro ao espelho que me mostra de corpo inteiro. Olho-me, demoradamente. Não foi brincadeira, meus lábios marcam a brancura da máscara. Esqueci e passei batom antes de vesti-la. Por falar em vestir, lembro-me da Tânia, faz faculdade de comunicação, quer tornar-se repórter de vídeo. Mas por que a lembrança? A mulher usa um batom dos mais vermelhos inventados até hoje, e adora minissaias. Tânia, você não vai poder apresentar o telejornal vestida desse jeito. Claro que sim, no jornal a câmera pega dos seios para cima, nada de pernas, quanto ao batom, bom, deixa que eu maneiro. Outra dia não foi difícil descobri-la na praia, difícil foi encontrar seu biquíni. Minúsculo. O batom sempre vermelho. Como você faz para tomar banho de mar?, o batom..., quis eu saber. Segredo. Outro segredo, apontou-me um rapaz, disse que ele praticava artes marciais. E daí?, perguntei. E daí, pense na arte que ele praticou comigo ontem à noite, ainda estou toda arrepiada. Tânia, as pessoas de TV precisam de seriedade, adverti. Estou deixando de sê-lo? Ela e sua linguagem às vezes vetusta. Olhe, vai ter a festa do beijo, todos que adoram beijar na boca estão convidados, inclusive você. Mas, agora, este vírus, interpelo. Vamos encontrar um modo, nem que seja a um metro e meio do namorado, aliás, todos são nossos namorados. Deixei Tânia sempre nua debaixo de um sol morno de junho e continuei minha caminhada. Volto ao espelho de casa, minha face brilhante. Não posso perder a alegria. Tiro a máscara, a face rosada, quase branca, os lábios desejados. As mulheres adoram andar nuas, diz-me sempre um amigo de longa data, veja o tamanho dos biquínis, a exiguidade das saias. Verdade, a máscara nos torna mais vestidas. Tenho súbita ideia: nua, vestida apenas pela máscara. Sou rápida na arte de despir-me. Passo mais batom, visto minha única peça. O espelho, ou melhor, eu nuazinha diante de mim. Meus lábios vermelhos, a máscara. Todos os homens vão querer trepar comigo.

domingo, junho 21, 2020

No dia seguinte

Fazia uma semana que eu conhecera o homem e já estava no apartamento dele, nua, ou melhor, de calcinha e sutiã. Ele me apertava, me beijava. alisava minha pele. Por favor, pedi humilde, não vamos transar hoje, tenho dificuldade quando saio com alguém recém-conhecido, vamos deixar para a amanhã ou depois. Sorriu, beijou meus lábios, ligeiro estalo, depois passou a língua como se quisesse um tipo de porta aberta, meu lábios nervosos, queria vencer-me os limites da boca. Dei-me livre ao beijo, com sofreguidão. Por que somos tão brutos no ato do amor? Talvez herança ancestral, lá do começo, quando abandonamos a floresta, ou a selva, não sei. Demorou-se no beijo. Ao recuar e olhar meu rosto, admiração, como a uma estátua (eu percebia), disse sim, a gente espera até amanhã, ou até o dia quando você se sentir solta, soltinha. O diminutivo me beliscou o ventre, uma pontadinha de desejo. Mas quero uma coisa hoje, continuou, vou roubar-te a calcinha. Suspirei. Estaria o caminho aberto? Não me deu tempo de responder, repare, vou ficar vestido, assegurou, você não precisa temer. A calcinha desceu minhas coxas, deslizou sobre os joelhos, pelos tornozelos, e escapou vencendo-me os calcanhares. Onde a guardou, tive vergonha de perguntar. Abraçou-me forte, mas não me olhou nua. Morro de vexo sem sutiã. Ele pareceu entender.


Engraçada eu, conheci o homem no bistrô do cinema, ele esperava a hora do filme, perguntei se não estudara na tal faculdade, ou se fazia alguma pós. Respondeu não, a universidade é a mesma, mas sou de outro departamento, letras, afirmou vagaroso. Ah, sim, fiz confusão, tentei dar uma ponta de charme, face de mulher desatenta. Há homens que adoram. Conversamos, depois veio a vez do filme. Assistimos juntos. Era domingo, tarde da noite. Deixou o número do telefone, no final. Também ofereci-me, inteira, quase os mesmos números, ordens diversas. Levo você, já é tarde. Não se deve aceitar carona de um desconhecido, hesitei em pensamentos. Mas isso é para quando se é muito jovem, ou criança. Já passei dos trinta, quase quarenta. Vai ficar fora de mão pra você, tentei ser polida. Não, nada disso, é o carro que vai nos levar.


Investida ousada de minha parte naquela noite, agora, envergonhada sobre a cama, pedia que deixasse o sexo para o dia seguinte.


Rolamos sobre os lençóis. Eu o beijava, um tanto animal. Caso ele tirasse a roupa, eu acabaria abrindo as pernas, mas não tirou. Surpreendeu-me ao dizer que podíamos nos beijar com mais suavidade, teríamos todo o tempo do mundo.


Mais tarde, já em casa, como sou louca, refleti, mal o conheci aceitei a carona, uma semana depois já na cama dele, homem conhecido na rua, ao acaso, sem que alguém me apresentasse. Poderia estar perdida. Trepar teria sido o de menos, pior fosse um sádico, ou mesmo louco. Tive sorte, porém. Ele era gentil. Fiz tudo ao contrário do que aconselhamos às nossas filhas, às pessoas mais jovens. Deu certo. Treparia com ele, como trepei, no dia seguinte.

segunda-feira, junho 15, 2020

A aventura de um beijo

Como falei numa outra história, o confinamento deu o que falar. Aproveitei para uma aventura externa, de madrugada e às ocultas, como narrei num conto anterior. Agora, já na fase de abertura, tenho saído meio sonsa, ido à praia, ou mesmo a um passeio. É engraçado, sempre surgiu a oportunidade de travar novas relações, às vezes, mesmo, um namoro informal, mas depois desse problema da contaminação, todos a usar máscaras, o que acontecerá com os relacionamentos? Será possível beijar?

Outro dia fui à orla marítima, entardecia. Poucas pessoas passeavam. Guardavam a distância regulamentar e usavam máscaras. Vai ser difícil arranjar namorado, vou ter de me contorcer diante da tela do computador, relação sem tempero, requentada pelo circuito dos chips. E de máscara, já não uso batom.

Num determinado ponto do passeio, logo depois que passei o Country, um homem (seus olhos!) veio falar comigo. Aquela velha história: acho que conheço você, não trabalhou não sei onde, não estava na festa de não sei quem? Acho que não, tive a delicadeza de dizer. A obrigatoriedade de usar máscaras, era o que nos faltava, falou. Sempre usamos máscaras, mas nunca nos demos conta, caí na asneira de dizer. O homem saltou de barriga na conversa.

“Oh, você é uma mulher interessante, o que é raro por essas bandas.”

 Quis rebater, mas achei melhor me calar, assim terminaria ali.

“Você tem estilo, essa sua máscara florida...” Não pôde notar a risadinha irônica.

Uma das coisas desagradáveis desses novos tempos é que não podemos mostrar nosso sorriso, qualquer que seja. Despedi-me e continuei a caminhar. Pararia no Ilhote, mas na parte interna, não desejava a exposição.

Apareceu-me Ilana, no fim da praia.

“Agora essa”, falou, “não podemos beijar, se já era difícil arranjar namorado em M, imagine agora”, Ilana e suas costumeiras reclamações.

“Não é possível a transmissão do Covid pelo sexo”, adiantei-me.

“Sério?”, pareceu surpresa, “que bom, será que os homens sabem disso?”

Quando acabou de falar, completei:

“Meu amor, quando os homens querem trepar, não há Corona vírus que impeça.”

Sorriu: “tomara que você tenha razão, vou encontrar umas amigas adiante, na varanda do Ilhote.”

Despediu-se e partiu. Reapareceu o homem.

“Não me apresentei, falou, me chamo Elton, estava esperando sua amiga ir embora.”

“Muito prazer, Célia.”

“Então, conheço você, sim, de uma festa, você não está se lembrando de mim? As pessoas lhe elogiam muito na cidade, dizem que é famosa.”

“Eu, famosa?”, tive de rir, “deve ser porque durante algum tempo escrevi no New Yorker.”

“Isso, o New Yorker, não é pra qualquer um, ou qualquer uma. Vamos beber ou comer algo?”, ofereceu.

Queria ir sozinha ao Ilhote, mas o homem era tão bonito, acabei aceitando. Enquanto caminhávamos, perguntei-me: será que no passado recente já não nos esquentamos atrás de alguma árvore? Entramos no restaurante e ficamos na varanda. O garçom não demorou a surgir, com a amabilidade de sempre, não era dia de muito movimento. Elton pediu um chope de marca alemã, peculiar do local; eu, uma taça de vinho.

“Não, obrigada, não desejo comer por enquanto”, respondi à sua oferta para que eu olhasse o cardápio.

O começo de noite trazia um ventinho fresco, mas estava claro. Ainda bem que trouxe a echarpe.

“Faz algum tempo fui a uma festa numa mansão, acho que ficava na Lagoa, gostei muito, tinha piscina e tudo mais”, observou.

Lembrei-me, então, das festas organizadas por Maria Rita, tais acontecimentos provocavam frisson na cidade, vinham pessoas importantes, tanto daqui como de outros lugares. Mas não eram festas familiares.

“Ah, sim, eram boas as festas, participei também de algumas”, retruquei.

Sorriu, o garçom chegou com as bebidas.

“A epidemia tirou as pessoas das ruas, embora se possa sair atualmente; e quando vemos alguém caminhando, está usando máscara”, ele disse.

Era verdade, nós também as usávamos, mas as tiramos logo que entramos. Abaixara a sua à altura do queixo e deixou-a no local.

“Deve ser por pouco tempo”, tentei ser otimista.

“As festas ainda existem?”

“Não, já faz tempo que terminaram, boa época aquela; a organizadora mudou-se para São Paulo.”

“São Paulo?”, assustou-se.

“Entendo a surpresa, o espírito de Maria Rita combina melhor com o Rio.”

Tomei um gole de vinho, posei a taça sobre a mesa e olhei ao homem de soslaio. Ele não olhava para mim, mas passava a mão direita sobre um ponto da mesa, depois olhou para além dos limites do bar, como se procurasse alguém na rua.

Aquelas festas eram boas, homens bonitos, mulheres nuas, gente das empresas de petróleo, convidados selecionados. Nada de prostituição, mas muito divertimento.

“Lembro uma vez em que as mulheres vestiam biquínis. E era noite!”, observou.

“Normal, tudo acontecia muito à vontade, quase sempre era verão.”

Três mesas depois, próxima à entrada, estava Ilana. Olhou pra mim, deu um sorrisinho maldoso e fez pequeno sinal. Logo eu que disse não estar preocupada em sair com alguém estava bem ali, próxima a ela, com um homem de olhos azuis. Ilana também frequentara algumas das festas, mas era fofoqueira que só, e fazia o papel de mulher pudica. Na verdade, tudo encenação, ninguém mais fácil que ela na cidade, trepava até mesmo dentro de automóveis.

“Você escreve histórias”, trouxe-me de volta para junto de si, “histórias são sempre interessantes. Como elas surgem?”

“Difícil falar nisso. Sou uma autora que não sabe falar do que faz. Acho que surgem naturalmente.”

“Você tem talento”, afirmou, “muitos escritores dizem ter dificuldades diante da folha em branco.”

“Conversa, todo escritor escolheu a profissão porque tem o que dizer. Você quer sabe mesmo como descubro minhas histórias?”

“Adoraria”, seus olhos brilharam na minha direção, segurou a longa tulipa e bebeu mais um gole.

“Às vezes acordo de madrugada sentindo-me angustiada, acredita? Para aliviar a tal angústia, penso no que posso escrever no dia seguinte. Às vezes surgem ótimas histórias. Já aconteceu de acordar, pela manhã, e não lembrar a ideia da madrugada. Então, minha angústia é maior!”

Riu com intensidade, chegou a se balançar na cadeira.

“Você é engraçada, suas histórias devem ter humor.”

“Quem sabe, humor angustiante.”

“Numa cidade como M, você deve conhecer muita gente.”

“Às vezes finjo que não conheço, as pessoas me chamam por isso de besta.”

“Você tem amigas, amigos?”, estava curioso.

“Já tive mais. Hoje, quase sempre, prefiro sair sozinha.”

“Deve ser difícil aqui levar uma vida sozinha.”

“Verdade, melhor seria mudar para o Rio ou São Paulo, cidades onde é possível se viver no anonimato.”

Seu chope chegava ao fim, minha taça de vinho ia pela metade. O garçom aproximou-se e ele pediu mais um. Eu sentia a conversa um pouco travada, e não encontrava nele intenção maior do que ficar ali conversando durante boa parte da noite.

“Certa vez vi um filme sobre um professor de literatura. Ele fez amizade com um aluno. No final, o professor é abandonado pela mulher, perde o emprego e não tem onde morar. Mas encontra o então ex-aluno, ambos passam a andar juntos e sempre encontram motivos para contar histórias. Olham os apartamentos da vizinhança, imaginam seus habitantes e inventam infinitas histórias. Ao tal professor não importa a própria decadência. A literatura estava acima de tudo.”

“Acho que já vi o filme”, rebati, “se não vi, li em algum lugar, mas isso também é história. Na realidade, tal vida seria muito difícil, o homem seria um mendigo. No cinema e, nos maus livros, as coisas se resolvem.”

Pareceu decepcionado. Eu tirara a graça da sua narrativa, de seu pungente personagem. Tentei reverter a situação.

 “Sabe, um dia escrevi uma história em que havia uma mulher nua. Você gosta de mulheres nuas, não?, todos os homens gostam. Ela ia nua, de madrugada, aqui na praia. Acho que veio de casa nua dirigindo o próprio carro. Confesso a você, quando escrevi tive vontade de viver o mesmo; aliás, a história era um substituto ao meu desejo. Mas, imagine, caso eu resolvesse sair nua de casa. Poderia acabar em maus lençóis, ou sem lençol algum! Por isso a história. Entendeu?”

Ficamos conversando durante mais duas horas. Bebi duas taças, no final tomei um sorvete. Ele ficou nos chopes.

Ao sairmos do restaurante, colocamos nossas máscaras e voltamos ao nosso mundo. Ofereceu-me uma carona. Aceitei. Já na porta de casa, deixou-me o cartão, despediu-se e se foi.

Dá próxima vez, vamos à aventura de um beijo.

segunda-feira, junho 08, 2020

Minha amiga eu mesma

“Você é uma mulher muito elegante para dar aulas naquele tipo de escola.”

Escutei de um colega enquanto conversávamos, no começo do dia, numa das escolas onde leciono. O comentário versava sobre as más condições de trabalho no nosso meio profissional, mas senti que ele mostrava sua admiração por mim. Sorri, nada retruquei, nem sei o que fiz depois, devo ter ido até a sala dos professores pegar minhas coisas para a primeira aula.

Será que o tal colega me paquerava? Já não tenho homem faz tempo, minha vida é organizada, trabalho e tenho meus pequenos prazeres. Como já não sou jovem, admirei-me da iniciativa. Há tantas professoras de menos idade, bonitas e cheias de calor.

Faz alguns anos, quando trabalhei numa escola do litoral norte, vivi situações que me deixavam a mil por hora. A cidade era convidativa a muitas paqueras, à frequência à praia durante as horas vagas e a saídas noturnas a vários restaurantes e bares aconchegantes. Lembro que certa vez andava pela praia ao entardecer. Não sei o que me deu – a  acho que fui picada por um desejo recôndito –, tirei o top e passeei pela orla vestida apenas por uma camiseta larga. Um homem passou por mim e sentiu-se surpreso ao reparar meus seios nus!, chegou dar um sorrisinho com o canto da boca. Continuei minha caminhada como se aquela fosse a atitude mais normal do mundo. Na época tive uma amiga que era maluquinha, além de namorar vários homens ao mesmo tempo, ia à praia com um biquíni pequeníssimo, dizia adorar a praia da Joana, onde vez ou outra podia ficar com os seios de fora. Era solícita com todos que se aproximavam, dava seu número e, na maioria das vezes, marcava encontros. Gosto de tomar uma caipirinha, dizia, depois a gente vê o que acontece. E, segundo ela, só aconteciam coisas boas. Uma vez arranjei também um namorado. Você bebe uma taça de vinho?, perguntou. Claro, importado, ressaltei. Fomos a uma adega. Depois... Tenho vergonha de contar. Fiz coisas que ninguém imagina. Pude constatar que a tal amiga tinha razão. Mas nada falei a ela, não queria que me roubasse o namorado.

Volto à escola onde um colega chamou-me de mulher elegante. Fiquei interessada no tal. Quem sabe, seria tão bom a gente sair e passear, talvez uma taça de vinho. Mas levou um tempo enorme para eu estar com ele como gostaria. Toda vez que passávamos um pelo outro nos cumprimentávamos, sorríamos e seguíamos cada um seu caminho. As mulheres, no entanto, tem poderes especiais, não vai demorar ele cairá nas minhas malhas. Lógico que meus artifícios são discretos, mas o sucesso é garantido.

Você sabe, perto da minha casa abriu um bar de cervejas artesanais, uma delícia, disse eu a ele ontem. É mesmo, adoro cerveja artesanal. Caso você queira ir, eu acompanho você. Vamos marcar, então, vamos amanhã, pediu. Ok, ótimo, vamos sim.

Fiquei esperando, vestidinha, na porta de casa. Chegou de táxi, me beijou e fomos ao restaurante. Imaginem a noite mais animada do ano, pelo menos para nós dois. Não preciso dizer que não bebo muito, mas bastaram dois copos. Que calor. Lembrei a camiseta, os seios soltos por baixo, sorri para o homem. Ele, não custa, vai me ver nua!, pensei num momento. Ah, minha amiga professora lá no litoral norte, o namorado tinha uma Mercedes, e ela nua no banco do carona!

Quando a gente fala muito de amiga, quem sabe fala de si própria!