Como falei numa outra história, o confinamento deu o que
falar. Aproveitei para uma aventura externa, de madrugada e às ocultas, como narrei
num conto anterior. Agora, já na fase de abertura, tenho saído meio sonsa, ido
à praia, ou mesmo a um passeio. É engraçado, sempre surgiu a oportunidade de
travar novas relações, às vezes, mesmo, um namoro informal, mas depois desse
problema da contaminação, todos a usar máscaras, o que acontecerá com os relacionamentos?
Será possível beijar?
Outro dia fui à orla marítima, entardecia. Poucas pessoas
passeavam. Guardavam a distância regulamentar e usavam máscaras. Vai ser
difícil arranjar namorado, vou ter de me contorcer diante da tela do
computador, relação sem tempero, requentada pelo circuito dos chips. E de
máscara, já não uso batom.
Num determinado ponto do passeio, logo depois que passei o
Country, um homem (seus olhos!) veio falar comigo. Aquela velha história: acho que conheço
você, não trabalhou não sei onde, não estava na festa de não sei quem? Acho que
não, tive a delicadeza de dizer. A obrigatoriedade de usar máscaras, era o que
nos faltava, falou. Sempre usamos máscaras, mas nunca nos demos conta, caí na
asneira de dizer. O homem saltou de barriga na conversa.
“Oh, você é uma mulher interessante, o que é raro por essas
bandas.”
Quis rebater, mas
achei melhor me calar, assim terminaria ali.
“Você tem estilo, essa sua máscara florida...” Não pôde
notar a risadinha irônica.
Uma das coisas desagradáveis desses novos tempos é que não
podemos mostrar nosso sorriso, qualquer que seja. Despedi-me e continuei a
caminhar. Pararia no Ilhote, mas na parte interna, não desejava a exposição.
Apareceu-me Ilana, no fim da praia.
“Agora essa”, falou, “não podemos beijar, se já era difícil
arranjar namorado em M, imagine agora”, Ilana e suas costumeiras reclamações.
“Não é possível a transmissão do Covid pelo sexo”, adiantei-me.
“Sério?”, pareceu surpresa, “que bom, será que os homens
sabem disso?”
Quando acabou de falar, completei:
“Meu amor, quando os homens querem trepar, não há Corona
vírus que impeça.”
Sorriu: “tomara que você tenha razão, vou encontrar umas
amigas adiante, na varanda do Ilhote.”
Despediu-se e partiu. Reapareceu o homem.
“Não me apresentei, falou, me chamo Elton, estava esperando
sua amiga ir embora.”
“Muito prazer, Célia.”
“Então, conheço você, sim, de uma festa, você não está se
lembrando de mim? As pessoas lhe elogiam muito na cidade, dizem que é famosa.”
“Eu, famosa?”, tive de rir, “deve ser porque durante algum
tempo escrevi no New Yorker.”
“Isso, o New Yorker, não é pra qualquer um, ou qualquer uma.
Vamos beber ou comer algo?”, ofereceu.
Queria ir sozinha ao Ilhote, mas o homem era tão bonito,
acabei aceitando. Enquanto caminhávamos, perguntei-me: será que no passado
recente já não nos esquentamos atrás de alguma árvore? Entramos no restaurante e
ficamos na varanda. O garçom não demorou a surgir, com a amabilidade de sempre,
não era dia de muito movimento. Elton pediu um chope de marca alemã, peculiar
do local; eu, uma taça de vinho.
“Não, obrigada, não desejo comer por enquanto”, respondi à
sua oferta para que eu olhasse o cardápio.
O começo de noite trazia um ventinho fresco, mas estava
claro. Ainda bem que trouxe a echarpe.
“Faz algum tempo fui a uma festa numa mansão, acho que
ficava na Lagoa, gostei muito, tinha piscina e tudo mais”, observou.
Lembrei-me, então, das festas organizadas por Maria Rita, tais
acontecimentos provocavam frisson na cidade, vinham pessoas importantes, tanto
daqui como de outros lugares. Mas não eram festas familiares.
“Ah, sim, eram boas as festas, participei também de algumas”,
retruquei.
Sorriu, o garçom chegou com as bebidas.
“A epidemia tirou as pessoas das ruas, embora se possa sair
atualmente; e quando vemos alguém caminhando, está usando máscara”, ele disse.
Era verdade, nós também as usávamos, mas as tiramos logo que
entramos. Abaixara a sua à altura do queixo e deixou-a no local.
“Deve ser por pouco tempo”, tentei ser otimista.
“As festas ainda existem?”
“Não, já faz tempo que terminaram, boa época aquela; a
organizadora mudou-se para São Paulo.”
“São Paulo?”, assustou-se.
“Entendo a surpresa, o espírito de Maria Rita combina melhor
com o Rio.”
Tomei um gole de vinho, posei a taça sobre a mesa e olhei ao
homem de soslaio. Ele não olhava para mim, mas passava a mão direita sobre um
ponto da mesa, depois olhou para além dos limites do bar, como se procurasse alguém na rua.
Aquelas festas eram boas, homens bonitos, mulheres nuas, gente
das empresas de petróleo, convidados selecionados. Nada de prostituição, mas
muito divertimento.
“Lembro uma vez em que as mulheres vestiam biquínis. E era
noite!”, observou.
“Normal, tudo acontecia muito à vontade, quase sempre era
verão.”
Três mesas depois, próxima à entrada, estava Ilana. Olhou
pra mim, deu um sorrisinho maldoso e fez pequeno sinal. Logo eu que disse não
estar preocupada em sair com alguém estava bem ali, próxima a ela, com um homem
de olhos azuis. Ilana também frequentara algumas das festas, mas era fofoqueira
que só, e fazia o papel de mulher pudica. Na verdade, tudo encenação, ninguém
mais fácil que ela na cidade, trepava até mesmo dentro de automóveis.
“Você escreve histórias”, trouxe-me de volta para junto de
si, “histórias são sempre interessantes. Como elas surgem?”
“Difícil falar nisso. Sou uma autora que não sabe falar do
que faz. Acho que surgem naturalmente.”
“Você tem talento”, afirmou, “muitos escritores dizem ter
dificuldades diante da folha em branco.”
“Conversa, todo escritor escolheu a profissão porque tem o
que dizer. Você quer sabe mesmo como descubro minhas histórias?”
“Adoraria”, seus olhos brilharam na minha direção, segurou a
longa tulipa e bebeu mais um gole.
“Às vezes acordo de madrugada sentindo-me angustiada,
acredita? Para aliviar a tal angústia, penso no que posso escrever no dia
seguinte. Às vezes surgem ótimas histórias. Já aconteceu de acordar, pela
manhã, e não lembrar a ideia da madrugada. Então, minha angústia é maior!”
Riu com intensidade, chegou a se balançar na cadeira.
“Você é engraçada, suas histórias devem ter humor.”
“Quem sabe, humor angustiante.”
“Numa cidade como M, você deve conhecer muita gente.”
“Às vezes finjo que não conheço, as pessoas me chamam por
isso de besta.”
“Você tem amigas, amigos?”, estava curioso.
“Já tive mais. Hoje, quase sempre, prefiro sair sozinha.”
“Deve ser difícil aqui levar uma vida sozinha.”
“Verdade, melhor seria mudar para o Rio ou São Paulo, cidades
onde é possível se viver no anonimato.”
Seu chope chegava ao fim, minha taça de vinho ia pela
metade. O garçom aproximou-se e ele pediu mais um. Eu sentia a conversa um
pouco travada, e não encontrava nele intenção maior do que ficar ali conversando
durante boa parte da noite.
“Certa vez vi um filme sobre um professor de literatura. Ele
fez amizade com um aluno. No final, o professor é abandonado pela mulher, perde
o emprego e não tem onde morar. Mas encontra o então ex-aluno, ambos passam a
andar juntos e sempre encontram motivos para contar histórias. Olham os
apartamentos da vizinhança, imaginam seus habitantes e inventam infinitas
histórias. Ao tal professor não importa a própria decadência. A literatura estava acima de tudo.”
“Acho que já vi o filme”, rebati, “se não vi, li em algum
lugar, mas isso também é história. Na realidade, tal vida seria muito difícil,
o homem seria um mendigo. No cinema e, nos maus livros, as coisas se resolvem.”
Pareceu decepcionado. Eu tirara a graça da sua narrativa, de
seu pungente personagem. Tentei reverter a situação.
“Sabe, um dia escrevi
uma história em que havia uma mulher nua. Você gosta de mulheres nuas, não?,
todos os homens gostam. Ela ia nua, de madrugada, aqui na praia. Acho que veio
de casa nua dirigindo o próprio carro. Confesso a você, quando escrevi tive
vontade de viver o mesmo; aliás, a história era um substituto ao meu desejo. Mas,
imagine, caso eu resolvesse sair nua de casa. Poderia acabar em maus lençóis,
ou sem lençol algum! Por isso a história. Entendeu?”
Ficamos conversando durante mais duas horas. Bebi duas
taças, no final tomei um sorvete. Ele ficou nos chopes.
Ao sairmos do restaurante, colocamos nossas máscaras e voltamos ao nosso
mundo. Ofereceu-me uma carona. Aceitei. Já na porta de casa, deixou-me o
cartão, despediu-se e se foi.
Dá próxima vez, vamos à aventura de um beijo.
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