Já era tarde, quase uma da madrugada. Havíamos conversado
muito, eu e minha amiga. Sua casa fica numa espécie de bosque, a três quadras
da praia. Surpreendo-me quando penso como foi possível à natureza produzir um
lugar tão arborizado próximo à praia. O tal bosque fica em R, cidade a vinte e
seis quilômetros de onde moro, litoral norte. Às vezes marcamos de passar à
noite juntas, bebendo um bom vinho, comendo queijos e conversando. Assunto não
falta. A vida muitas vezes é um tédio, diz, o que salva são as amizades, as
conversas e alguns namoros. Tem razão, principalmente quando fala em alguns
namoros, apenas alguns mesmo. Preciso descansar, falei, amanhã é domingo, a
gente pode passear, ou ir à praia. Ela sorriu. Bebemos o que restava da
garrafa, minha amiga ainda se aventurou a mais um pequeno pedaço de camembert.
Permanecemos alguns minutos em silêncio. Levantei vagarosa e comecei a recolher
taças e louça para levá-las à cozinha. Não se preocupe, amanhã a gente arruma,
vamos descansar. Sorri, abracei minha amiga, um abraço fraterno, pude sentir o
calor do seu corpo, um calor perfumado, quase doce, caso seja possível
defini-lo assim. Vou tomar uma ducha e vou me deitar, eu disse. Corri ao
banheiro, tirei a roupa, um vestidinho que me vinha até os joelhos, estampado,
justo ao corpo até a cintura com a parte inferior abrindo-se solto, nada
extravagante. Entrei na ducha, aproveitei e lavei minha calcinha. Saí do quarto
enrolada na toalha e entrei no quarto sempre reservado a mim durante as estadas
naquela casa confortável. Ia fresco o tempo. Vesti uma camiseta, emprestada por
ela, sempre me esqueço de levar roupas quando vou à sua casa, coloquei a
calcinha para secar no parapeito da janela. Olhei o céu estrelado e respirei
fundo.
Ao acordar, o sol já levantara e inundava nossas vidas. O terreno exterior da parte construída da casa recebia a visita de muitos pássaros, piados e cantos alegravam a manhã. Abri a janela e recebi em cheio o ventinho colorido e cheiroso da manhã. Minha amiga tinha jardim e horta, perfumes e aromas não nos abandonavam. Fui ao toalete, lavei o rosto, voltava ao quarto quando resolvi ir à sala. Jaziam sobre a mesa as sobras do nosso jantar. Recolhi pratos e talheres, fui à copa e coloquei tudo dentro da pia. Depois liguei a cafeteira. Todos ainda dormiam. Sem que eu esperasse, apareceu um homem jovem, mais ou menos dez anos a menos que eu. Oi, você por aqui, não se lembra de mim?, perguntou. Franzi o cenho numa tentativa de mergulhar no passado recente. Como já namorara tanta gente, confesso que não conseguia me lembrar dele. O cara do Mustang? Mustang?, repeti. Sim, da exposição de colecionadores, completou. Lembrei e sorri para não perder a graça. A tal exposição fora ótima, mas a noite não me aconteceu como uma das melhores, bebi demais e não recordava o que fiz. Ao amanhecer, estava nua, num quarto, nos braços do homem que ia ali à minha frente naquele instante. Você conhece a Adélia?, perguntei. Sou filho dela, permaneceu estático, admirando-me. Como podia acontecer aquilo, a Adélia tinha um filho e eu já trepara com ele. Nem sei se só com ele, porque na noite do Mustang estava ele acompanhado de mais dois amigos. Daqui a pouco vai chegar o Marcos, disse gratuitamente. Marcos?, não sei quem é. Sabe sim, voltou à tona, é aquele meu amigo que veio no carro com a gente. Automóveis fascinantes, bebidas e mais bebidas, amigos, quarto de hotel, eu nua pela manhã, tudo muito confuso. Fingi que não me constrangia. Você contou alguma coisa sobre mim para sua mãe?, perguntei assustada. Nada, não conto pra minha mãe sobre a minha vida particular, afirmou peremptório. Ah, que bom, sorri, deixa eu te dar um beijo. Aproximei-me, abracei-o e beijei-lhe o rosto, nas duas faces. Correspondeu o abraço, cruzou as mãos sobre minhas costas e ficamos durante algum tempo no abraço, como se repousássemos. Depois deslizou as mãos sobre a camiseta até as minhas coxas e disse conheço esta camiseta, já foi minha, sabia? Você quer de volta?, perguntei provocadora. Quem sabe, riu. Ele era mais alto do que eu, a tal camiseta se transformara numa camisola sobre o meu corpo. Tomamos café juntos, comemos os pedaços de pão que restavam no cesto sobre a mesa. Depois, pediu licença, tinha um passeio para aquele dia, iria para o carro esperar o Marcos. Escreveu o número do telefone num pequeno pedaço de papel e fechou-o dentro da minha mão direita. Beijou-me, gosto de café, acariciou-me a cabeça, não esqueci a noite do Mustang, citou de novo o evento. Havia carros bonitos, quis eu completar. Não são os carros que me fazem lembrar a noite, sorriu e me abraçou mais uma vez. Despediu-se e se foi. Após sua partida, sentei-me no sofá, de onde estava era possível apreciar as árvores do jardim, vários pássaros continuava a festa. E eu não lembrava o que acontecera na tal noite. Ah, não vai ficar assim, reparei que, inconsciente, apertava numa das mãos o número do seu telefone.
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