segunda-feira, julho 06, 2020

Sisuda

Reparei a mulher de azul, piscou-me de novo. O que seria aquele sinal?, aparentemente eu não a conhecia. Levantou-se e deu a entender que iria ao toalete. Fez outro sinal. Preciso ir ao toalete, falei. Ele olhava a varanda. Levantei e segui a mulher.


Ele disse que sou sisuda. Sei o significado da palavra, mas fui ao dicionário procurar seu sentido perfeito. Sisudo (os dicionários são machistas, sempre o masculino) quem é muito sério, circunspecto. Depois, acrescentou o homem, você precisa ser pelo menos um tantinho transgressora. Ainda o dicionário. Transgredir: 1. ir além de, atravessar; 2. Não seguir determinação de ordem, lei etc. Tinha de me comportar de modo transgressor, isto é, extravagante, romper regras. O namoradinho de ocasião me queria nua, só podia ser.

Conheci-o na praia, vestia eu o menor biquíni. Mas ele não olhou meu bumbum, mas aos meus óculos grandes, redondo, a face, naquele momento, sem sorriso. Veio conversar. No primeiro contato, principalmente quando se trata de um estranho, não dou conversa, finjo mesmo que a pessoa não existe. Mas insistiu o homem. Um, dois, três dias, sempre comprimentos, uma semana, semana e meia e minhas resistências vencidas. Por isso, sisuda. Pagou-me um sorvete. Que ridículo, eu precisava que me pagasse algo? Quase não aceitei, mas, para ser polida, engoli a casquinha com duas bolas.

Semana seguinte. Se você tem interesse em mim, sou sisuda, não tenho como mudar. Pouco a pouco, acostumou-se. Vamos esta noite, sugeriu um dia na praia. Nesta não posso. Fiz mistério, amanhã, taça de ouro para a conquista.

Na noite seguinte, às vinte e uma horas, a sisuda, minissaia preta, blusa branca de mangas compridas com adereços em renda e botas que subiam aos joelhos, esperava o namorado na varanda. Enquanto isso, lembrava Adélia, amiga a quem contara o caso. Eu é que devia ter conhecido esse homem, não ia me chamar de sisuda nem transgressora, você conhece minhas peripécias. Ah, sim, Adélia tinha vasta fama, nem sempre positiva, entre tantas aventuras constava que, certa vez na praia, deixara o biquíni embaraçado nas mãos ágeis de um recente conhecido!

Quando o homem chegou, desci e fui a ele. Beijou-me e, muito gentil, abriu a porta do carro para que eu entrasse. Sobre minhas roupas, nada comentou, pelo menos naquele momento. Guiou até a orla e estacionou numa transversal. Caminhamos lado a lado, e entramos no Ilhote. Às 21h30 o restaurante já estava fervilhando, o vozerio alegre se espalhava pela varanda. Quando entramos, várias pessoas olharam minha saia curta, as botas negras também causavam frisson. Estava pagando para ver como seria a noite. Sentamos quase no meio do restaurante, no lado de dentro. Ele, pelo que pude perceber, adora chamar atenção, nada de cantos, quis o lugar mais chamativo. Tinha uma mulher bonita ao seu lado, era para ser visto, admirado, invejado. Eu me metamorfoseara em sorrisos. Quando o garçom veio perguntar o que iríamos beber, o namorado deu-me o privilégio da escolha. Sabia eu beber vinho? Já tomara algumas taças, as pessoas diziam que os melhores são os franceses. Quem sabe. O homem recebeu com interesse o meu desejo. E o garçom não demorou a aparecer com a garrafa e duas taças.

O que se pode conversar num tal momento, eu me perguntava, não queria tomar a iniciativa, já o fizera quanto ao pedido da bebida. Ele olhava o restaurante, queria mesmo ser observado, viera bem vestido, considerava-se bem acompanhado. Geralmente os engenheiros não têm muitos assuntos quando estão em companhia de mulheres, talvez refletisse, qual seriam as minhas preferências? Resolveu perguntar.

Preferências, repetiu a palavra, deixe-me ver, meu português cuidadoso. Tomei a taça com a mão direita e bebi um gole do vinho antes de responder.

Gosto de passear, de viajar.

Pensei que você gostasse de ler.

Gosto, sim, mas é um gosto particular. Ri pelo efeito que a frase causou. Não gosto da opinião de alguns homens de que a maioria das mulheres nada tem na cabeça, atitude machista e indelicada. Cheguei a mover-me na cadeira, mas não comentei o pensamento com o namorado.

Certa vez passei uma temporada em São Paulo, pesquisa sobre o solo, petróleo no litoral, como aqui. Ia aos bares, só havia homens. Aqui, pelo menos, há mulheres, e muito bonitas. Pareceu sem jeito, apontou a mim mas não deixou de mover os braços como se mostrasse as outras que frequentavam o local.

Uma gafe, as palavras dele, mas quem não as comete? Adélia e suas peripécias, suas gafes, a amiga era puro corpo, esses homens vem com muitas histórias para terminar a noite em cima da gente, por isso nada de muitas delongas. Será que eu deveria pensar do mesmo modo?, melhor os detalhes, as delongas, as pequenas histórias, como um livro bem elaborado, diálogos e descrições, expressões faciais, sustos e deslumbramentos. Por isso talvez chamasse-me sisuda, pouco ou nada transgressora. A voz do homem despertou-me.

Existem pessoas de todos os tipos, a gente conhece durante as viagens. Falava dos amigos, dos conhecidos, mas não se referia às mulheres. Lógico que não falaria de mulheres, nada mais deselegante do que trazer outra mulher para junto da que o acompanha, tanto mais no momento de conquista, não o faria, os homens podem não ter muita cultura, mas não cometem esse tipo de gafe. Saíra com outras mulheres, é claro, eu podia constatar. No restaurante, olhava a varanda, reparava a mesa só de mulheres, bem junto à mureta da calçada. Dali, podiam ser mais paqueradas, mesmo por aqueles que iam do lado de fora, que vinham nos carros; os homens às vezes paravam para vir falar com elas. Ele não era santo. Sozinho, também não as dispensaria, imagine em outras cidades, hospedado em hotéis, sozinho nos bares durante à noite, quantas e quantas na sua cama de hotel. Contar-me-ia mil vantagens, mas nada sobre mulheres, é claro. Sairíamos inúmeras vezes, um dia, de repente, iria embora, alguém o chamava em Curitiba, Santos, ou Vitória. Há petróleo por toda a parte. Não voltaria, quanto a isso tinha certeza. E não duvidava que tivesse mulher e filhos em outra cidade.

Você tem filhos, perguntei solene.

Seu olhar pareceu traí-lo. Filhos. Como ela descobrira?

Não, nem casado sou. Aliás, sou casado com o trabalho, riu depois de fazer uma fisionomia de que parecia alguém a carregar pesado fardo. Vamos pedir o jantar, sugeriu ao ver o garçom. Saiu-se bem do embaraço. Não ia perguntar se era casado, não se faz tal pergunta, estraga a noite. A gente aprende isso rápido.

Vamos de salmão ao molho de abacaxi?

Deve ser uma delícia, acompanhei.

Foi-se o garçom, em meio às outras mesas, uma mulher de vestido azul olhou-me e piscou.

O vinho ia descendo na garrafa, descendo através de nossos lábios, boca, garganta, circulava por nosso sangue tornando-nos soltinhos. Eu e ele.

Sabe que me enganei quando disse que você era sisuda. Senti que não gostou.

Nada, não precisa se preocupar. Acho que é por causa dos óculos, deviam ser mais discretos.

Nada. Foi a primeira impressão, depois passa. Tenho um amigo que não sai do hotel, nessas viagens, disse ele gratuitamente. Acho tão interessante conhecer a cidade, ter contato com outras pessoas. Caso fosse como ele, não teria conhecido você.

Não perdeu grande coisa, falei e caí na gargalhada.

Não fale assim, você é uma joia, e muito reluzente.

Cuidado, podem me sequestrar.

Não, não vou deixar.

Reparei a mulher de azul, piscou-me de novo. O que seria aquele sinal?, aparentemente eu não a conhecia. Levantou-se e deu a entender que iria ao toalete. Fez outro sinal. Preciso ir ao toalete, falei. Ele olhava a varanda. Levantei e segui a mulher.

Você é a Vânia, não?, ela falou.

Sim. Mas não estou me lembrando de você.

Acho que faz muito tempo, trabalhei numa escola com você, faz mais de dez anos, muita confusão naquele tempo.

Hum, já sabia de quem se tratava. Helena, o seu nome. Abraçou-me.

Por que você não foi até a mesa onde estou?, perguntei, curiosa.

Achei que não seria bom. Senti saudades da Vânia daquela época, aproveitamos bem uma ou duas vezes.

Sim, aproveitamos, retruquei, mas já não tenho relações com mulheres, você foi a única. E o homem está me chamando de sisuda. Disse e ri.

Sisuda? Helena caiu na gargalhada. Abraçou ainda uma vez. Tá bom, vá então para os braços do namorado.

É a primeira vez que saímos, andou me azarando na praia, vários dias.

Antes que saísse, puxou-me para junto de si e beijou-me a boca. Não tive como impedir. Seu beijo era doce e, antes que eu partisse, puxou um dos botões de minha blusa e enfiou um pequeno papel dentro do meu sutiã. Era um número de telefone.

Depois que se foi, olhei-me no espelho, ajeitei-me, retoquei o batom. Meu coração ia aos saltos.

Voltei à mesa, creio ter conseguido manter as aparências, nada acontecera, era eu a mulher mais calma do mundo.

Comemos com vontade o salmão. A garrafa de vinho chegou ao final. Que tal uma dose de licor?, ainda sugeriu. Dali em diante, perdemo-nos em conversas banais. Ainda falava sobre o trabalho.

Você não sente falta de livrarias em M?, perguntei.

Pareceu não entender, a enxurrada de casos que vivera pelo Brasil e pelo mundo soterrava-lhe a visão.

Vocês, que trabalham com petróleo, são pessoas importantes, não?, meu lugar comum, toquei sua mão por sobre a mesa.

Não trabalhamos com petróleo apenas, mas com energia. E é ela que move o mundo.

Quando saímos, ele estava eufórico. Todo homem quando está a ponto de levar uma mulher para cama pela primeira vez vem nas nuvens.

Ao chegar ao passeio, ainda olhei para dentro do restaurante, Helena piscou-me mais uma vez. Senti o papel com o seu número me fazer cosquinha na ponta de um dos seios.

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