Reparei a mulher de azul, piscou-me de novo. O que seria aquele sinal?, aparentemente eu não a conhecia. Levantou-se e deu a entender que iria ao toalete. Fez outro sinal. Preciso ir ao toalete, falei. Ele olhava a varanda. Levantei e segui a mulher.
Ele disse que sou sisuda. Sei o significado da
palavra, mas fui ao dicionário procurar seu sentido perfeito. Sisudo (os
dicionários são machistas, sempre o masculino) quem é muito sério,
circunspecto. Depois, acrescentou o homem, você precisa ser pelo menos um
tantinho transgressora. Ainda o dicionário. Transgredir: 1. ir além de,
atravessar; 2. Não seguir determinação de ordem, lei etc. Tinha de me comportar
de modo transgressor, isto é, extravagante, romper regras. O namoradinho de
ocasião me queria nua, só podia ser.
Conheci-o na praia, vestia eu o menor biquíni. Mas ele não
olhou meu bumbum, mas aos meus óculos grandes, redondo, a face, naquele momento,
sem sorriso. Veio conversar. No primeiro contato, principalmente quando se
trata de um estranho, não dou conversa, finjo mesmo que a pessoa não existe. Mas
insistiu o homem. Um, dois, três dias, sempre comprimentos, uma semana, semana
e meia e minhas resistências vencidas. Por isso, sisuda. Pagou-me um sorvete.
Que ridículo, eu precisava que me pagasse algo? Quase não aceitei, mas, para
ser polida, engoli a casquinha com duas bolas.
Semana seguinte. Se você tem interesse em mim, sou sisuda,
não tenho como mudar. Pouco a pouco, acostumou-se. Vamos esta noite, sugeriu um
dia na praia. Nesta não posso. Fiz mistério, amanhã, taça de ouro para a
conquista.
Na noite seguinte, às vinte e uma horas, a sisuda, minissaia
preta, blusa branca de mangas compridas com adereços em renda e botas que subiam
aos joelhos, esperava o namorado na varanda. Enquanto isso, lembrava Adélia,
amiga a quem contara o caso. Eu é que devia ter conhecido esse homem, não ia me
chamar de sisuda nem transgressora, você conhece minhas peripécias. Ah, sim, Adélia tinha vasta fama, nem sempre positiva, entre tantas aventuras constava que,
certa vez na praia, deixara o biquíni embaraçado nas mãos ágeis de um
recente conhecido!
Quando o homem chegou, desci e fui a ele. Beijou-me e, muito
gentil, abriu a porta do carro para que eu entrasse. Sobre minhas roupas, nada
comentou, pelo menos naquele momento. Guiou até a orla e estacionou numa
transversal. Caminhamos lado a lado, e entramos no Ilhote. Às 21h30 o restaurante já estava fervilhando, o vozerio alegre se espalhava pela varanda.
Quando entramos, várias pessoas olharam minha saia curta, as botas negras também causavam frisson. Estava pagando para ver como seria a noite. Sentamos
quase no meio do restaurante, no lado de dentro. Ele, pelo que pude perceber,
adora chamar atenção, nada de cantos, quis o lugar mais chamativo. Tinha uma
mulher bonita ao seu lado, era para ser visto, admirado, invejado. Eu me metamorfoseara
em sorrisos. Quando o garçom veio perguntar o que iríamos beber, o namorado deu-me
o privilégio da escolha. Sabia eu beber vinho? Já tomara algumas taças, as
pessoas diziam que os melhores são os franceses. Quem sabe. O homem recebeu com
interesse o meu desejo. E o garçom não demorou a aparecer com a garrafa e duas
taças.
O que se pode conversar num tal momento, eu me perguntava,
não queria tomar a iniciativa, já o fizera quanto ao pedido da bebida. Ele olhava
o restaurante, queria mesmo ser observado, viera bem vestido, considerava-se
bem acompanhado. Geralmente os engenheiros não têm muitos assuntos quando estão
em companhia de mulheres, talvez refletisse, qual seriam as minhas preferências?
Resolveu perguntar.
Preferências, repetiu a palavra, deixe-me ver, meu português
cuidadoso. Tomei a taça com a mão direita e bebi um gole do vinho antes de
responder.
Gosto de passear, de viajar.
Pensei que você gostasse de ler.
Gosto, sim, mas é um gosto particular. Ri pelo efeito que a
frase causou. Não gosto da opinião de alguns homens de que a maioria
das mulheres nada tem na cabeça, atitude machista e indelicada. Cheguei a mover-me na cadeira, mas não comentei o pensamento com o namorado.
Certa vez passei uma temporada em São Paulo, pesquisa sobre o solo, petróleo no litoral, como aqui. Ia aos bares, só havia
homens. Aqui, pelo menos, há mulheres, e muito bonitas. Pareceu sem jeito,
apontou a mim mas não deixou de mover os braços como se mostrasse as outras que
frequentavam o local.
Uma gafe, as palavras dele, mas quem não as comete? Adélia e suas peripécias, suas gafes, a amiga era puro corpo, esses
homens vem com muitas histórias para terminar a noite em cima da gente, por
isso nada de muitas delongas. Será que eu deveria pensar do mesmo modo?, melhor
os detalhes, as delongas, as pequenas histórias, como um livro bem elaborado, diálogos
e descrições, expressões faciais, sustos e deslumbramentos. Por isso talvez
chamasse-me sisuda, pouco ou nada transgressora. A voz do homem despertou-me.
Existem pessoas de todos os tipos, a gente conhece durante
as viagens. Falava dos amigos, dos conhecidos, mas não se referia às mulheres.
Lógico que não falaria de mulheres, nada mais deselegante do que trazer outra mulher
para junto da que o acompanha, tanto mais no momento de conquista, não o faria, os homens
podem não ter muita cultura, mas não cometem esse tipo de gafe. Saíra com
outras mulheres, é claro, eu podia constatar. No restaurante, olhava a varanda, reparava a mesa só de mulheres, bem junto à mureta da calçada. Dali, podiam
ser mais paqueradas, mesmo por aqueles que iam do lado de fora, que vinham nos
carros; os homens às vezes paravam para vir falar com elas. Ele não era santo.
Sozinho, também não as dispensaria, imagine em outras cidades, hospedado em
hotéis, sozinho nos bares durante à noite, quantas e quantas na sua cama de
hotel. Contar-me-ia mil vantagens, mas nada sobre mulheres, é claro. Sairíamos
inúmeras vezes, um dia, de repente, iria embora, alguém o chamava em Curitiba,
Santos, ou Vitória. Há petróleo por toda a parte. Não voltaria, quanto a isso
tinha certeza. E não duvidava que tivesse mulher e filhos em outra cidade.
Você tem filhos, perguntei solene.
Seu olhar pareceu traí-lo. Filhos. Como ela descobrira?
Não, nem casado sou. Aliás, sou casado com o trabalho, riu
depois de fazer uma fisionomia de que parecia alguém a carregar pesado fardo.
Vamos pedir o jantar, sugeriu ao ver o garçom. Saiu-se bem do embaraço. Não ia
perguntar se era casado, não se faz tal pergunta, estraga a noite. A gente
aprende isso rápido.
Vamos de salmão ao molho de abacaxi?
Deve ser uma delícia, acompanhei.
Foi-se o garçom, em meio às outras mesas, uma mulher de
vestido azul olhou-me e piscou.
O vinho ia descendo na garrafa, descendo através de nossos
lábios, boca, garganta, circulava por nosso sangue tornando-nos soltinhos. Eu e
ele.
Sabe que me enganei quando disse que você era sisuda. Senti
que não gostou.
Nada, não precisa se preocupar. Acho que é por causa dos
óculos, deviam ser mais discretos.
Nada. Foi a primeira impressão, depois passa. Tenho um amigo
que não sai do hotel, nessas viagens, disse ele gratuitamente. Acho tão interessante
conhecer a cidade, ter contato com outras pessoas. Caso fosse como ele, não
teria conhecido você.
Não perdeu grande coisa, falei e caí na gargalhada.
Não fale assim, você é uma joia, e muito reluzente.
Cuidado, podem me sequestrar.
Não, não vou deixar.
Reparei a mulher de azul, piscou-me de novo. O que seria
aquele sinal?, aparentemente eu não a conhecia. Levantou-se e deu a entender
que iria ao toalete. Fez outro sinal. Preciso ir ao toalete, falei. Ele olhava
a varanda. Levantei e segui a mulher.
Você é a Vânia, não?, ela falou.
Sim. Mas não estou me lembrando de você.
Acho que faz muito tempo, trabalhei numa escola com você,
faz mais de dez anos, muita confusão naquele tempo.
Hum, já sabia de quem se tratava. Helena, o seu nome.
Abraçou-me.
Por que você não foi até a mesa onde estou?, perguntei,
curiosa.
Achei que não seria bom. Senti saudades da Vânia daquela
época, aproveitamos bem uma ou duas vezes.
Sim, aproveitamos, retruquei, mas já não tenho relações com
mulheres, você foi a única. E o homem está me chamando de sisuda. Disse e ri.
Sisuda? Helena caiu na gargalhada. Abraçou ainda uma vez. Tá
bom, vá então para os braços do namorado.
É a primeira vez que saímos, andou me azarando na praia,
vários dias.
Antes que saísse, puxou-me para junto de si e beijou-me a
boca. Não tive como impedir. Seu beijo era doce e, antes que eu partisse, puxou
um dos botões de minha blusa e enfiou um pequeno papel dentro do meu sutiã. Era um número de telefone.
Depois que se foi, olhei-me no espelho, ajeitei-me, retoquei
o batom. Meu coração ia aos saltos.
Voltei à mesa, creio ter conseguido manter as aparências,
nada acontecera, era eu a mulher mais calma do mundo.
Comemos com vontade o salmão. A garrafa de vinho chegou ao
final. Que tal uma dose de licor?, ainda sugeriu. Dali em diante, perdemo-nos
em conversas banais. Ainda falava sobre o trabalho.
Você não sente falta de livrarias em M?, perguntei.
Pareceu não entender, a enxurrada de casos que vivera pelo
Brasil e pelo mundo soterrava-lhe a visão.
Vocês, que trabalham com petróleo, são pessoas importantes,
não?, meu lugar comum, toquei sua mão por sobre a mesa.
Não trabalhamos com petróleo apenas, mas com energia. E é
ela que move o mundo.
Quando saímos, ele estava eufórico. Todo homem quando
está a ponto de levar uma mulher para cama pela primeira vez vem nas nuvens.
Ao chegar ao passeio, ainda olhei para dentro do restaurante, Helena piscou-me mais uma vez. Senti o papel com o seu número me fazer cosquinha na ponta de um dos seios.
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