Outro dia um amigo apareceu e me convidou para tomar um café. Aliás, não era bem amigo, mas colega de trabalho. Conversei com ele várias vezes sobre um projeto, ele achou muito interessante, depois me convidou para tomarmos um café numa cafeteria próxima. Disse a ele que seria melhor convidarmos outras pessoas, irmos juntos e conversarmos sobre o próprio projeto. Ele concordou, mas a ida ao café acabou não acontecendo.
Faz uma semana, o mesmo amigo estava no metrô, voltava para
casa. Encontrei-o na plataforma. Conversamos um pouquinho e embarcamos na mesma
composição. Quando estávamos quase chegando à estação onde devia saltar, quase
esqueci, foi ele quem me lembrou e, por fim, saltou junto comigo. O que você
vai fazer aqui, perguntei. Vou andar um pouco com você, convidar você a um
café, há um lugar ótimo aqui perto. Ele me convenceu a acompanhá-lo a uma
cafeteria. Entramos numa que fica na Santa Clara. Que lugar bonito, eu
tinha apenas passado pela rua e observado. Depois de sentarmos e fazermos
nossos pedidos a uma garçonete de gravatinha borboleta, olhei meu amigo e senti
uma ponta de prazer. Fazia muito tempo que eu não tinha um amigo homem, com
quem pudesse conversar e trocar ideias. Ele parecia estar gostando muito
da minha companhia. Depois que vieram nossos cafés e dois sanduíches, pensei
jamais saí sozinha com um homem depois que me casei, acho que estou traindo meu
marido.
Mudemos de parágrafo, para eu falar dele. Meu marido é uma
pessoa importante, gerente de uma agência do banco do Brasil. É lógico que não é santo, conhece muita gente, inclusive muitas mulheres. Mas é a profissão
dele, precisa encontrar quem compre os produtos do banco, como ele mesmo fala.
Às vezes viaja, fica vários dias fora, e não sei o que ele esta fazendo. Mas,
quanto a mim, não sei agir da mesma forma. Sou uma mulher fiel, jamais o traí.
Sei que toda mulher acha alguns homens atraentes. Mas o que meu marido me
proporciona, tenho certeza de que nenhum deles é capaz.
Meu amigo diante de mim, no café, sorria, sorria e bebia seu
expresso. Falava alguma coisa, poesia e romances, sei que as pessoas
dizem ah isso é literatura, não é verdade, mas o que é a verdade, ele
perguntava. O que é a verdade?, e eu não tinha pensado nisso. A verdade precisa
das palavras, ele continuava e ninguém melhor do que os escritores para
manipulá-las, sobre tudo os ficcionistas. A ficção não tem compromisso com a
verdade, por isso os romancistas se sentem bastantes confortáveis com suas
histórias, já os historiadores, os memorialistas, os escritores da área do
direito sentem vontade de inventar alguma coisa para acertar suas ideias, no
momento em que escrevem, porque nenhuma formulação linguística é capaz de dar
um sentido completo, apenas a do romancista, porque a formulação deste não tem
essa intenção. Comecei a lembrar das histórias contadas por meu marido,
histórias oriundas de suas viagens, muitas lacunas, etc. e tal e o que aconteceu
depois? Estamos esperando resposta dos superiores, ele diz. Mas jamais ouvi o complemento. Meu amigo falava da incerteza da linguagem, de que somos seres
incompletos porque a linguagem é incompleta. Nossa, vou enlouquecer, disse a
ele, isso me apavora. Ele segurou minha mão, tome mais um gole de café, o café
é a realidade fora da linguagem. Fiz o que me pediu. Ficamos a pensar, eu a
querer voltar para a minha realidade com todas as explicações e enunciados. Mas
seria possível? Toquei uma das mãos de meu amigo. Elas, tão suaves. Eu, meu
marido, meu amigo, somos todos construções linguísticas, porque nos tratamos
com as palavras. Impossível sair deste círculo. Talvez a saída seja quando nos
tocamos. Aí, a traição pode se tornar também uma construção linguística. Aliás,
pode nem ser mais traição, depende de como se conceitue o ato. Ah, meu amigo veio
para me embaralhar. Agora, já não sei onde a porta que dá para a rua.
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