quinta-feira, maio 25, 2006

Nua em Itaúna

Descubro o estreito túnel que me leva à sua porta. Ouço sons indecifráveis, vejo luzes abatidas em pequenos lilases, sinto ameaças veladas aos irregulares passos de meus pés. Não domino o arfar de meus pulmões. A penumbra que me oculta é frágil, pode partir-se a qualquer momento. Temo algo maior, talvez farol que se intercale a meu caminho, algo que dissipe a noite que me envolve e me lance contra muro ofuscado pela luz, a ponto de não me permitir esconderijo algum. Temo por minha total nudez revelada. O espaço que me separa de meu destino é fenda incerta e abstrata, que ora me aponta a direção, ora a desvia...

Tudo começou quando percebi aquele homem forte e saudável que estava hospedado em um dos chalés. Descobri-o só, em plenas férias de verão. As mulheres que também aproveitavam o mês de janeiro ali em Itaúna, naquela pequena pousada perto das dunas e do mar sempre agitado, tiveram, da mesma forma que eu, súbita excitação. Será que ele seria adepto do amor pelas mulheres? Era a pergunta que não deixavam de fazer, embora sempre sem a resposta desejada. Ele acordava cedo. Quem o espreitava, podia vê-lo saindo em direção à praia. Depois de cerca de trinta ou quarenta minutos, voltava gotejando água salgada, perfumado pela maresia, com os cabelos pretos molhados. Era hora de as pessoas irem ao café da manhã. A pousada não era grande, mas comportava bem uns doze pequenos chalés. No mais, havia o prédio principal, em que ficavam a administração e o restaurante; mais abaixo, num pequeno declive, havia a piscina, onde as pessoas se banhavam na maioria das vezes ao entardecer. Duas famílias com algumas crianças, rapazes com namoradas, ele - o homem desejado -, e, no mais, mulheres em grupo; por fim, eu, sozinha, em um dos pequenos chalés, que para mim não deixava de ser imenso; éramos todos os habitantes provisórios daquele lugar. Levara livros, CDs, tudo para um descanso de quinze dias, mas a chegada daquele desconhecido foi vento fugidio que, a princípio, levantou-me os véus para, em seguida, levá-los de forma irremediável. Cruzei com ele algumas vezes, ora na praia, ora no restaurante, ora na piscina. Voltou-me o olhar, porém, apenas uma vez e pareceu não demonstrar interesse.

Numa das tardes, encontrava-me à beira da piscina. Lia uma revista qualquer. Três mulheres, das que estavam em grupo, apareceram de repente. Vinham apenas de biquíni. Voltavam da praia e, pelo modo extravagante como se comportavam, pareciam ter se excedido na bebida. Uma, inclusive, se mostrava ligeiramente trôpega. Duas delas, talvez devido à caminhada pelas dunas, logo se sentaram em cadeiras reclinadas, no lado contrário ao que eu estava, enquanto a mais alegre, ou mais bêbada, abriu o chuveiro e tomou um rápido banho; tinha a intenção de livrar o corpo da água salgada; em seguida, mergulhou na piscina. Após alguns minutos os olhares delas, surpresos, se voltaram para o pequeno portão gradeado que ficava à entrada do caminho que vinha dar ali. Era ele que se aproximava. O homem só, desejado por todas, inclusive por mim. Cumprimentou-nos respeitosamente e tencionava seguir em frente, em direção talvez a seu aposento. Elas entreolharam-se; a que se encontrava dentro d'água não deixou de emitir algum tipo de gracejo. Fiz como se nada tivesse acontecendo, continuei minha leitura. Ele parou. Pareceu entender o que ela tanto desejava. Então, para romper o embaraço, ouviu-se a voz de uma delas: " você joga cartas?". Ele assentiu. Elas imediatamente o convidaram e combinaram jogo para depois do jantar. Sueli, assim chamava-se a que nadava, convidou-o para entrar na água. Num primeiro momento, ele hesitou, mas, depois, dirigiu-se ao chuveiro, tirou do corpo a água salgada e a areia que trazia nas pernas; em seguida mergulhou. Enquanto as duas, que permaneciam nas espreguiçadeiras, entreolharam-se indagativas, a da piscina aproximou-se quando ele voltou à tona. Eu fingia ler a revista, tentava demonstrar pouco interesse, mas vez ou outra, de soslaio, olhava para dentro d'água. Estabeleceram algum tipo de conversa. Ele percebeu que a mulher não estava em seu estado normal. Mexia-se muito, falava mais alto e o agarrava pelos braços a todo momento. Súbito, ouvimos a voz dela: "já sei que vou perder, jogo cartas muito mal, é melhor nos distrairmos com outra coisa". Ela já estava quase agarrada a ele, mas, de modo inesperado, soltou-se e mergulhou fazendo barulho e espirrando água. Quando reapareceu, a água escorria pelo seus cabelos pretos e, no contra-fluxo dos raios de sol do entardecer, o rosto dela espelhou alguma beleza. Creio que tal detalhe não passou despercebido a ele. Numa fala um tanto tresloucada, Sueli deu prosseguimento: "se jogarmos a valer, vou perder mesmo, então vou lhe pagar agora". As duas amigas se entreolharam novamente; esperavam um gesto louco daquela que era a mais atirada. Num movimento rápido, soltou os laçarotes do biquíni e o entregou nas mãos do homem com as seguintes palavras: "toma, fica de presente para você, pagamento, já que vou perder no jogo de cartas". O homem olhou para mim um tanto embaraçado, sem saber o que fazer. A única coisa que conseguiu proferir foi: " é melhor você cuidar da sua amiga". Olhei na direção das outras duas que, vendo meu constrangimento e percebendo que eu nada tinha a ver com aquela situação, se precipitaram dentro da água em socorro à mulher nua. Vestiram-na, pediram desculpas e a levaram para dentro. Prometeram que, se ela estivesse melhor, apareceriam para jogar cartas. Também me convidaram.

O jogo de cartas transcorreu dentro da normalidade. Acabáramos de jantar e sentamo-nos a uma das mesas da sala que antecedia o restaurante. Sueli, a nua da piscina, chegou atrasada, mas misturou-se ao grupo e participou das partidas; agia como se nada tivesse acontecido. Nenhuma das amigas tampouco referiu-se ao episódio. Como éramos cinco, revezávamo-nos nas parcerias. Quando formei dupla com ele, sempre que colocava a dama em jogo lançava-lhe olhar desafiador. Não sei se queria muito, mas o que pretendia era que ele me percebesse a lançar-me, também nua, mas de forma mais discreta; senha de encontro tardio. Com o correr das horas, para não incomodarmos o silêncio local, alguém sugeriu que continuássemos as partidas no aposento das mulheres. Houve consenso, apenas eu não quis continuar. Aleguei cansaço. As outras lamentaram, mas não insistiram. Enfim, todas, em companhia do amigo recente, dirigiram-se ao novo local, enquanto eu retornei ao meu chalé.

Abri uma das janelas e procurei entre as árvores distinguir o mar lá embaixo. Respirei fundo. Ar morno misturado com maresia invadiu meus pulmões provocando-me enorme excitação. O coração bateu mais acelerado. Uma energia repentina tomou-me. Senti vontade de descer as dunas e caminhar à beira-mar. Não pensei duas vezes, do jeito que estava, saí. Encostei a porta e desci a rampa.

Não tardou e eu já caminhava com os pés dentro d'água. O mar rugia ora ameaçador ora arrefecido. Espuma clara e ligeira tocava-me as pernas e se dissipava, como que tragada pelas areias brancas. As águas mornas em braços espessos me acariciavam vez ou outra as coxas; respingos prateavam-me a pele e a pouca roupa. O céu coberto de estrelas destacava-se na noite de poucas luzes. Na praia, não havia viva alma. Até que não resisti. Não perderia um banho noturno, acompanhada apenas pela paisagem anterior à nossa chegada, à chegada do primeiro humano. Ouvia e sentia na pele o vento sedutor, sopro quente bafejando a expansão marinha nos extremos limites de meu corpo, ardendo-me o desejo. Despi-me. Larguei as roupas, livres, sobre a areia. Depois mergulhei e me pus - sempre nadei bem - em direção às ondas. Apesar da iluminação precária das estrelas, entendia-me bem na sombra noturna e na bruma natural. Nadei até onde pôde meu fôlego. Sentia o mar envolver-me como homem vigoroso que me acarinhava, começando com sutilezas e indo até ponto mais íngreme. Minha pele deslizava pelas águas escuras que poriam medo a qualquer das criaturas, mas a mim era seio natural, berço protetor. Eu era sereia impossível de se perder na vastidão do mar, sentia-me em morada original, que atingia as barras do infinito. Procurava estar sensível ao roçar das águas sobre meu corpo, sobre meus poucos pêlos, sobre meus cabelos. Então compreendi como as criaturas marinhas são prenhes de gozo e jamais abandonam o mar. Meu corpo era termômetro natural, sensível à mínima nuança de frio e calor. Águas geladas que me passavam entre as pernas alternavam-se com águas quentes, provocando-me excitação e me levando a gozo irrefreável, a gozo quase que sem fim. Extasiada, lamentei que, em breve, as sombras se dissipariam, e não poderia, nua, atrasar-me no retorno.

Quando de volta subi a rampa e penetrei nos domínios da habitação humana, reparei que todos dormiam. Ruídos, somente os de pequenos bichos noturnos e, ao longe, ainda o rugir do mar. Não parei à minha porta, desejava porta alheia. Sentia que era o momento. Encostei-me junto a seu chalé. Minha respiração era ofegante, meu coração ia aos saltos. O corpo ainda molhado, o cabelo respingando. As roupas? Deixara-as de propósito na praia. Agora já teriam sido levadas pela maré que subia. A mesma que me empurrava na direção do primeiro homem. Permaneci junto à porta. Talvez não soubesse ir além. Esperava.

Deságuo, ligeiro córrego a recender odor de rosas, à saída do estreito túnel que me leva à sua porta...

Não precisei bater...

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