terça-feira, outubro 11, 2011

Lancei-lhe um beijinho

Tudo começou quando atravessava a W 3 Norte numa terça de manhã. Trabalhava e resolvera sair para fumar. Lembrei que, do outro lado, há uma banca de jornal. Havia alguns dias desejava olhar uma revista de moda. Assim que pisei no passeio após terminar a travessia, um homem de dentro de um automóvel olhou para mim. Correspondi-lhe sorrateira. Qual não foi minha surpresa encontrá-lo minutos depois, na mesma banca de jornal, bem ao meu lado.

“Oi”, cumprimentou-me e sorriu.

“Oi”, respondi e continuei a olhar minha revista. Dei um trago no cigarro, tentava manter a tranquilidade.

“Lembra de mim?”, perguntou.

“Claro, lembro, sim”, falei sem lhe voltar os olhos.

“Não sei se posso deixar o carro ali, próximo à esquina, não tenho muito tempo”, acrescentou.

“Nem eu, deixei o trabalho para fumar e estou aqui já faz um tempinho.”

“Você trabalha por aqui?”

“Sim.”

“Onde?”

Apontei o TRT, adiante, no outro lado da rua. “E você?”, perguntei

“Não sou daqui, vou ficar mais dois ou três dias”, respondeu e hesitou se iria até o carro ou esperaria. “Na minha cidade, quando uma mulher corresponde ao olhar de um homem, ela oferece o número do telefone.”

“Ah, é isso”, devolvi a revista e fiquei ao seu lado, “você quer o meu número...”

“Na verdade queria conversar um pouco com você.”

“Anota o meu número, me telefone depois das três que a gente marca alguma coisa, ok?”, sorri meiga – minha amiga Ana diria que sorri bem piranha.

“Não quer entrar um pouco para conversarmos”, destravou as portas e esperou minha reação.

“Não posso, tenho de trabalhar, telefone depois das três”, fiz uma expressão provocante e lhe lancei um beijinho.

Acho que foi o meu vestido que o atraiu; apesar do tecido grosso, deixava os braços de fora e os seios salientes.

Às quatro e trinta ele já havia telefonado duas vezes. Eram seis horas quando deixei o prédio para, no ponto seguinte, entrar em seu carro.

"Vamos ao Lago Sul", sugeri, "ensino o caminho, é preciso entrar na terceira ponte."

Seu carro era novo e veloz, mas dirigia com muito cuidado.

"Sua cidade é muito agradável", suspirou quando já percorrêramos mais da metade do caminho.

"Não vou ficar nua pra você com tanta facilidade", falei e insinuei uma gargalhada.

Ele também riu.

"Aqui em Brasília, as mulheres reparam muito os homens", falou e deu uma piscadela enquanto voltava a cabeça para frente, em atenção ao trânsito.

"Você acha isso mesmo?"

"Tenho certeza", falou, "desde ontem mais de cinco mulheres sorriram para mim, e não é porque tenho cara de cômico."

"Quem sabe?", falei e continuei com a fisionomia irônica.

"É sério, as mulheres olham para os homens onde quer que se ande em Brasília."

"Só em Brasília?"

"No Rio não é tão fácil, principalmente na zona sul. Ali as mulheres gostam de se fazer de difícil."

"Ah, sempre o Rio. O Rio não é Brasil", afirmei.

"Como?"

"O Rio é outro país, não se parece com nada do que conhecemos, está mais próximo de Nova York do que de qualquer outra cidade brasileira. Entre aqui, isso, agora mantenha à direita, já estamos quase chegando."

Uma quadra depois entrávamos no centro gastronômico do Lago Sul, um lugar caro, porém bonito.

"Você gosta de que tipo de comida?", perguntou.

"Para falar a verdade, nem estou com fome, mas bebo alguma coisa."

"Ótima ideia, vamos beber,"

Fez a volta e estacionou.

Para uma terça-feira, até que o movimento era bom. Anoitecia e se podiam ver alguns prédios stuados do outro lado do lago. Aquela paisagem sempre me provocou alguma emoção. Brasília não tem o mar, mas dali é possível avistar, vez ou outra, alguns barcos, além disso, há o ancoradouro.

Ficamos em uma mesa externa, um toldo nos cobria, mas era possível ver as árvores que cercavam o restaurante.

"Em que você trabalha?", perguntei.

"Em que se pode trabalhar estando três dias em Brasília?"

"Você é uma espécie de lobista", falei.

"Um lobista num automóvel alugado?"

"De que eles andam?"

"Direto para o aeroporto, carros com motoristas."

"Você é um ilustre deputado desconhecido."

"Nem tanto, sou juiz, se é que você vai acreditar."

"Juiz?, de verdade?"

"Em carne e osso, TRF, de Sampa, vim resolver um problema de gabinete."

"De gabinete?"

"Isso, não posso me estender, é sigiloso."

"Então teremos que andar dentro da lei?", olhei e fiz-me de desentendida.

"Isso, na mais absoluta lei", completou.

"Juízes paqueram?"

"Por que não? Como você veio parar aqui?"

"Trabalho na justiça também, só que na do trabalho, você deve conhecer meu chefe."

"Não o conheço e prefiro falar de outro assunto."

"O que você acha do governo?" Eu quis saber sua opinião.

"Como qualquer outro, não há diferença, até as crises são as mesmas.

"Caso tenhamos que seguir estritamente a lei, você não invadirá a privacidade de uma mulher."

"Lógico que não."

"Então para que me chamou para sair?"

"Gostei de você, é muito bonita e parece inteligente."

"As mulheres que você conhece não são inteligentes?"

"Algumas sim, outras não, meio a meio."

"Aqui em Brasília, não posso falar por todas, mas a maioria é muito inteligente, até a minha secretária, aquela que fica em casa cozinhando, arrumando, lavando e passando, ela é muito inteligente."

"Ela leu Dostoiévski?"

"Ah, você e todos os homens, acaso ler Dostoiévski é sinônimo de inteligência?"

"O que seria então, para você?"

"Alguma coisa sobre física nuclear, ou a química dos corpos em decomposição, não sei..."

"Sua empregada sabe alguma coisa sobre isso?"

"Empregada não, secretária."

"Isso, secretária, ela sabe?"

"Não, mas não sustenta o marido e discute letras de música."

O garçom já nos esperava fazia tempo. Olhamos os cardápios e pedimos as bebidas.

Uma moça levantou-se e saiu seguida do namorado, acabavam de deixar o local, ela o beijou na boca, um beijo rápido, seu rosto demonstrava toda a felicidade do mundo, afastaram-se abraçados um ao outro; ela, sensualíssima, ia dentro de um vestido azul justo e muito curto.

"Tenho um vestido assim", falei ao meu acompanhante.

"Você não se sente mal usando uma roupa desse tipo?"

"Depende para onde se vá, é roupa para noite, então a gente se sente bem. Mas, por exemplo, para andar de dia nem pensar, vou me sentir nua."

"Caso você vá a São Paulo, pode escolher um presente, e, quem sabe, queira um vestido bem caro?"

"Jura?, adoro roupas caras, você vai ter uma despesa muito grande."

O garçom chegou com nossos coquetéis, todos muito bem preparados e coloridos. Sorvi um gole, adorei.
Ele pediu uma bebida que eu não conhecia, mas tinha algum composto que levava vodca russa. Durante alguns minutos ficamos em silêncio. Aproveitei para olhar em volta e observar o movimento. Numa mesa próxima duas mulheres e um homem bebiam chopes e contavam algum caso divertido. Uma das jovens tentava explicar algo que lhe acontecera, mas não consegui prestar atenção.

Outro garçom veio à nossa mesa e deixou um tipo de entrada, havia pães, pastas, frios e berinjela cortada bem fina. Meu recente enamorado pegou uma torrada e comeu com umas tirinhas da berinjela. Aproveitei para experimentar uma pasta.

A bebida me ajudou a pensar melhor sobre o dia e a noite que eu estava vivendo. Em situações normais, não se tem tanta sorte. Caso fosse verdade mesmo o que ele falava não é sempre que se namora um juiz, tanto mais alguém jovem como ele –, eu estaria ganhando um bilhete premiado. Tentava descobrir se deveria aproveitar tudo naquela mesma noite ou se haveria continuidade, mesmo se tivesse de viajar à sua cidade.

"Você é muito ocupado em São Paulo?", arrisquei.

"Todos nós, juízes, somos, o trabalho não termina e as pessoas ainda reclamam que a justiça é lenta."

"Portanto, é impossível visitar você em São Paulo."

"Impossível, não. Mas temos que marcar encontros à noite, e às vezes tarde."

"E onde posso ficar hospedada em São Paulo?"

"Na minha casa", falou como se fosse a dedução mais lógica do mundo.

"Que bom!", exclamei, "acho que tive muita sorte em conhecer você."

"Ah, não diga isso, sou uma pessoa comum, as pessoas costumam fantasiar muito, você está fazendo isso."

"Não, não é que não existam homens do seu nível para sair comigo", pigarreei proposital, "mas acho que foi ótimo conhecer você, e logo numa época em que não tenho outros compromissos."

"Você quer dizer, outros relacionamentos."

"Isso mesmo, adivinhou!"

"Você parece muito feliz."

"E realmente estou."

Comemos a entrada toda, e ainda pedimos um pequeno prato, filé de truta com molho à moda da casa, acho que tinha um tantinho de caramelo, nunca havia comido aquela refeição, mas estava uma delícia. Acho que o jantar contribuiu para nos relaxar ainda mais.

"O que você vai fazer depois de me deixar em casa?"

"Estou hospedado num daqueles hotéis altos, no setor hoteleiro norte, quer ir até lá ou quer que eu vá à sua casa?"

"Você iria mesmo à minha casa?", surpreendi-me com sua oferta.

"Por que não?"

"Olhe que não é grandes coisa, e nunca imaginei que um magistrado pudesse ir lá."

"Ah, esqueça isso, sou magistrado apenas quando estou no trabalho."

"Tem mais uma coisa", disse envergonhada, "você não vai me levar presa se eu fizer uma transgressãozinha?"

"Depende, caso haja algum atenuante, posso pensar."

"Ah, atenuante é o que não vai faltar!"

Beijei-lhe o rosto pela primeira vez. Horas depois, dias depois e meses depois, beijei-o muito mais. E fizemos outras tantas coisas... Mas conto numa outra hora.

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