quarta-feira, outubro 19, 2011

Tínhamos toda a tarde do mundo

Andava numa rua do Centro. Hora do almoço. Passei por um homem de ar jovial, embora aparentasse meia idade. Lancei-lhe um olhar furtivo. Seus olhos, porém, surpreenderam os meus. Continuei em frente sem apressar os passos. Será que ele me seguiria? Uma mulher não deve manter o olhar frontal, sobretudo dirigido a homens, significa convite. Depois de cruzar uma das transversais, assaltou-me a tentação de olhar para trás, queria saber se estava sendo seguida. Mas resisti, mantive a pose e a direção.

Mais adiante cruzei uma travessa onde há uma cafeteria. Cheguei junto à garçonete e pedi um expresso. Ao me voltar para sentar em uma das mesinhas, dei-me com ele. Não mexi os olhos, ficaram voltados à direita, paralisados, tentativa vã de disfarce.

Pedi um pastel de forno quando a garçonete atravessou o pequeno espaço entre as três mesas que dividem a pequena loja. Abri a bolsa e fiz de conta que ia pegar um livro. Na verdade, segurei o livro nas mãos. Não havia outro remédio. A capa vermelha, lustrosa; comecei a folheá-lo. Mantinha-me absorta, escondida em suas páginas. Voltou a moça com o salgado. Repousei o livro sobre a mesa e comecei a comer. Ainda havia meia xícara de café.

Não mais vi o homem. Seria o mesmo a quem eu olhara na rua, ou me enganava? Que pena, não o queria, mas era bom saber-me desejada, seguida, enfim, valorizada, mesmo em apuros. Comia voltada para a vitrine da loja em frente, loja de roupas masculinas. Bonitas as roupas. Enquanto observava o nome da loja, um homem entrou na cafeteria. Ele. Dessa vez acertei. Abaixei os olhos, rápida, mas ele surpreendeu o meu gesto sutil nos últimos instantes. Flagrada nua no inesperado entreabrir de uma porta. Não consegui evitar um meio sorriso. Não sei dizer se de gosto ou de pudor. A situação prolongou minha face febril. O homem tinha uma bonita pasta marrom, dessas de couro, devia ser cara a pasta.

A garçonete veio atendê-lo.

Como eu escaparia? Fácil, bastaria levantar e sair dali a passos rápidos. Mas meu desejo pesava duzentos quilos. Calma, Lúcia, coma com vagar o pastel, tome os últimos goles do café. Fixei-me mais uma vez numa página do livro. De que se trata mesmo esse livro? Acho que é de filosofia. Será que ele deseja saber o que leio? Será que me quer nua perenemente? Minha mão direita tremeu quando levei a xícara aos lábios pela última vez. Novamente trocamos olhares; o meu, porém, mais uma vez involuntário. Era bonito o homem, cabelo preto, peito estufado, camisa branca, devia ter a pele macia. Será que falará alguma coisa, um palpite sobre o tempo, sobre o sabor do café? Ou sua voz se perderá no anonimato das ruas apinhadas do Centro.

“Moça, moça!”

Para onde olho? Onde enfio a cabeça?

“Moça, no chão!”, apontava, não pôde completar porque levara à boca um pedaço enorme de pastel.

Abaixei os olhos. Ah, o marcador do meu livro. “Obrigada.”

Sorrimos. Estava aberta a porta. E fui eu que provocara. Na verdade, deixei a porta escancarada. Agora, era com ele. Bastaria entrar. Nenhum obstáculo. Tínhamos toda a cidade pela frente, tínhamos toda a tarde do mundo...

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