quinta-feira, novembro 29, 2012
Crônica
Preciso escrever a minha crônica diária e enviá-la ao jornal,
mas me aconteceu algo inesperado. Estou nua, sentada numa cadeira de ferro e trancada numa sala comercial. Para manter a elegância e não
demonstrar vergonha ou temor, cruzo as pernas, a direita sobre a esquerda, os
seios cobertos pela metade por um dos meus braços como uma correia em
meia diagonal. Vejo-me em tal situação por causa do namorado. Ele me quer sempre nua; além disso, me pede que eu represente. Tenho de fazer de conta que sou
a pessoa mais vestida do mundo, dessa vez no escritório de um amigo seu às cinco e meia da tarde, no centro do Rio, um prédio de vinte e tantos andares em que há muitas outras salas onde trabalham advogados, médicos, dentistas, contadores etc. Tirei a roupa e dei nas mãos de meu namorado. Pediu licença e
foi guardá-la numa outra sala, ou num outro escritório, não sei bem. Abriu a porta e saiu. Ouvi sua voz quando falou com alguém que transitava no corredor. Talvez tenha ido à rua comprar um maço de
cigarros. Aqui, no lado de dentro, apenas as paredes, também nuas, e a cadeira que me serve de
assento. Aguardo, aliás, espero. Espero que ele volte. Lá fora o sol se põe, as cores da tarde se dissolvem num azul que pouco a pouco avança e se torna cada vez mais negro. Tenho até às oito para enviar a crônica ao jornal. Hoje quero escrever sobre a viagem de Sandrinha ao mar Báltico. Onde, porém, o meu namorado? Encontrei-o ao acaso faz trinta minutos, no café da esquina da Rodrigo Silva. Gisele, vamos ao escritório de um
amigo, sugeriu. Aceitei. Quando entramos, a sala vazia, nada do amigo. Não demorei a perceber o que meu namorado queria. Mas, Valdo,
a essa hora?, estou trabalhando, eu disse. É pra já, não vai demorar
nada, insistiu ele. Ok, concordei e fui tirando a roupa. Ei, volte aqui, não me vai fazer perder o compromisso, alertei. E lá foi ele porta
afora. Se não volta? Se lhe acontece alguma coisa? Uma síncope, ou mesmo um
assalto. A cidade está tão violenta, plena de perigos. Vai que ele tenha sido
sequestrado... E eu tenho de escrever e mandar a minha crônica. Oh, ato falho, pois
não estou pensando nele nem nos perigos que corre, mas em mim, no meu emprego, na minha crônica. Amanhã vocês saberão o desfecho dessa história, depois de amanhã a viagem de Sandrinha. Ainda bem que existem os smartphones, ainda
bem que, com um deles, sempre se dá um jeito.
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