quarta-feira, julho 16, 2014

Descoberta nua

Também era bom que não viesse tantas vezes quantas queria: porque ela poderia se habituar à felicidade. Sim, porque em estado de graça se era muito feliz. Carlos, o marido, a estimulara à primeira vez. Vá, sim, no começo vais sentir um friozinho no estômago, mas com o passar do tempo te acabarás acostumando, depois desejarás sempre mais, é a verdadeira sensação de liberdade. E ele tinha razão. Na primeira vez, ao sair na noite escura de Glicério, o céu e as estrelas sobre sua cabeça, o vento morno do verão já maduro a roçar-lhe o corpo como amante atrevido, ela parou durante alguns instantes e pensou em desistir, em correr de volta para dentro da casa. Mas o rio, que corria logo atrás do quintal, a saudava com uma espécie de voz suave, música sibilante ao saltar um obstáculo ou de tom mais grave ao dedilhar o limo das rochas milenares que lhe aparavam o caminho. Suas águas eram sempre as mesmas, pois sempre voltavam com as chuvas. Ela respirou fundo e se pôs avante, passou por entre as plantas dos fundos da casa, alisou um tronco e se viu à beira do rio. Você precisa saber, moro num lugar onde tem um rio que passa bem atrás da casa, durmo ouvindo as águas correrem, ela dissera a um amigo quando descera a M. O amigo sorrira, um dia vou até lá conferir, quero conhecer o seu rio, ele retrucara, como se quisesse beijá-la. Ela, porém, era casada, gostava do marido, não pretendia desapontá-lo. Ele, apesar de preguiçoso, descansado, isso era certo, tratava-a com intenso carinho. Enfim, gostava do afeto que ele lhe transmitia. Oh, Carlos, tomar banho nua no rio, mesmo à noite, não sei, acho que já passei da idade de cometer essas loucuras. O que há de mal nisso?, ele replicara, quando voltares para dentro de casa, teu corpo estará mais quente, propício ao amor prolongado. Vamos juntos, então, ela lhe sugerira. Uma mulher nua é bonito, mas um homem nu, tanto mais se banhando num rio, não há de ser tão agradável assim, ele lhe respondera. Não é agradável a você, mas a mim, e a todas as outras mulheres, não há de haver nada melhor. Ele sorrira. Ela, no entanto, saiu sozinha da casa. Ao tocar as águas que corriam, sentiu, de repente, certa friagem. Não calculava que a água estivesse tão gelada. E se adoecesse? Ninguém adoecia no verão, mesmo nua à noite. O ar estava quente, o pulmão respirava uma aragem confortável e pura, apenas a pele é que se arrepiava com a temperatura baixa da água. E sabia que, logo, quando estivesse com o corpo todo dentro d’água, acostumar-se-ia. Seu corpo sempre fora quente, capaz de transmitir certo calor a quem estivesse próximo, até mesmo certo desejo. Por isso, não lhe era difícil arranjar namorados. Se quisesse, poderia ter vários, todos loucos por deixá-la nua. Mas Carlos a queria nua a céu aberto. E lá estava ela agora, despira-se pelas próprias mãos, acatara o conselho do marido de sair nua de casa, de caminhar até a beira do rio e de banhar-se nele. Ele dissera-lhe que ela descobriria novas sensações. Mas, será que apareceria alguém? Nunca ouvira sons humanos nos arredores da casa. Apenas o coaxar de algum sapo, o uivo de um cão distante, ruídos de animais de nomes desconhecidos a ela. Agachada dentro d’água, o corpo, já quente, vencera a temperatura fria da água corrente. Começou a sentir intenso prazer, o prazer que o marido lhe anunciara. Quem sabe, com o auxílio das mãos... não, não era partidária de gozar tocando-se, do amor autossuficiente, naquele momento não precisava das mãos, o gozo vinha natural. Será que estava traindo Carlos? Não era possível. E fora ele que sugerira a boa nova. Ao voltar para casa, ele estaria esperando por ela, estaria ansioso para que ela descrevesse todas as sensações. E eram muitas. Acometia-lhe uma espécie de gozo, um prazer interminável, que a fazia demorar-se mais e mais, a não querer deixar as águas. Mais tarde, quando deixou a margem próxima aos fundos de sua casa, ela, instintivamente, cobriu os seios com o braço direito, reparou as gotículas sobre a pele, sobre os poucos pelos do mesmo braço. A outra mão lhe ia também pregada ao corpo, mais precisamente à altura do umbigo, ou entre o umbigo e o púbis. Chegou à porta e torceu a maçaneta. Temeu encontrá-la trancada. O que faria se não conseguisse abrir a porta? Talvez o marido quisesse lhe pregar uma peça e a deixasse pelada do lado de fora, ou mesmo a fizesse aguardar por algum tempo até ele vir abrir para, a seguir, abraçá-la. Talvez tivesse de voltar ao rio, ocultar-se até o pescoço dentro d’água. Mas haveria o amanhecer. E alguém a descobrir uma cabeça nua com o corpo vestido pelas águas que corriam ligeiras, fugidias... Mas torceu a maçaneta e a porta abriu. Tudo dentro de casa estava silencioso, silencioso e escuro. Não sabia quanto tempo passara desde o momento em que saíra para ir ao rio e aquele momento em que estava de volta. Não encontrou o marido, a princípio. Sentou-se numa das poltronas e cruzou as pernas. Passou a fazer parte das sombras da noite. Após quinze minutos, foi ao quarto. O marido estava deitado, dormia, dormia o sono dos justos. Pois trabalhara o dia inteiro, trabalhara duro. Não pôde esperar por ela. Não havia problema. Deixaria o amor com Carlos para o dia seguinte. Caminhou até o banheiro e tirou a terra dos pés com uma toalha de banho. Verificou se estava toda limpa, incólume. Deitou, então, ao lado dele, ainda nua. Esperaria. Que descansasse em paz. Esperaria o dia seguinte, e mais o outro dia, e mais outro além. Estava casada com o marido, é certo, fazia alguns anos, acostumara-se a ele, quase não ousava olhar homem desconhecido algum. Mas já não desprezaria as carícias das céleres águas do rio. Quem foi que disse que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio? Também era bom que não viesse tantas vezes quantas queria: poderia habituar-se à felicidade. E, habituar-se à felicidade, torná-la-ia mais egoísta.

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