segunda-feira, dezembro 08, 2014

Ladrão de vestidos!

Eu usava um vestido bem leve, de verão. Lembrei a observação que um amigo fizera certa vez. Disse que, ao ver as mulheres com roupa curta e leve, imaginava que muitas delas nada usavam por baixo do vestido. Ri e devolvi o que faria uma mulher andar sem calcinha? Ele falou que havia muita coisa em jogo, como sensações mais profundas. Perguntei então  se ele entendia sobre gozo feminino. Apenas sorriu e mudou de assunto. Isso acontece muito. Os homens pensam que as mulheres funcionam assim como eles; na maioria das vezes, no entanto, o que provoca tesão neles não produz o mesmo efeito em nós, mulheres. Eu usava o tal vestido leve e andava pela Visconde de Pirajá. Muitas pessoas olhavam as vitrinas, outras iam apressadas aos pontos de ônibus, e era possível também adivinhar turistas, sempre em férias no Rio, andando de um lado a outro como alguém que não quer nada, ou quer experimentar a novidade que já não descobre no seu local de vida. Confesso, apesar do vestido leve, poucos homens olharam para mim. Não é que eu já não seja bela ou que já vá entrada nos anos. As pessoas têm tantas coisas bonitas para apreciar, que olhar qualquer mulher passante torna-se algo comum. Sentei num café, ali num início de galeria comercial, logo depois da livraria da Travessa. A garçonete trouxe o enorme  cardápio. Quanto mais diminuem as xícaras de café, mais aumentam o tamanho dos cardápios. Cruzei as pernas, olhei para dentro da cafeteria e vi um homem, que eu conhecera certa vez, tomando o seu café. Não me reconheceu de imediato, ou não quis demonstrar, talvez discrição exagerada. Ele, num outro dia, puxara conversa comigo na livraria da Travessa. Falara muito sobre um livro de poesia que organizou, reunindo diversos poetas. Era ele mesmo, tomava seu café num dos cantos da loja. Quando conversamos, o tal homem me paquerou descaradamente, fez até um convite para irmos a outro lugar. Como eu não podia, disse que deixássemos para o dia seguinte, quando estaria livre. Ele insistiu, insistiu muito para sairmos na mesma noite. Mas recusei, na ocasião eu tinha realmente um compromisso. Deixei o meu número, mas ele não telefonou. Há homens que perdem uma boa mulher porque não tem a paciência necessária. No fundo da cafeteria, ele não deu mostras de que se lembrava de mim. Nem eu daria a ele o sabor de dizer que não esquecera sua fisionomia. A garçonete trouxe um expresso com um biscoitinho, e eu me pus a saborear o café. Ajeitei o vestido, sua fragilidade poderia denunciar meu corpo ou algum tipo de atitude que eu não queria naquele momento. Cruzei as pernas na direção oposta, sem que ninguém observasse. Foi então que uma moça me veio pedir um autógrafo. Autógrafo?, repeti. Ela me reconhecera, comprara dois livros meus e dizia gostar muito de minhas histórias. Autografei numa espécie de caderneta, que ela trazia na bolsa. Gosto muito daquele conto em que você espera o ônibus, de madrugada, num lugar quase deserto e você diz que o vento fustigava as pessoas e levantava os vestidos. Ah, soprei, sei qual o conto, mas não sou eu não, é uma personagem. Ela riu. Disse que toda personagem tem um pouco da autora. Nisso você tem razão, um autor também é todos os seus personagens, mas há alguns que gostaríamos de ver distantes. Como aquele que lhe roubou o vestido!, ela acrescentou. Tratava-se de outro conto, que todos vocês já devem ter lido. Cuidado, acabei por dizer, embora não devo alertar você a respeito dos perigos da literatura. A senhora acha a literatura perigosa?, ela parecia ansiosa. Depende, sabe, não se deve pôr em prática o que se lê nos livros, isso é romantismo exagerado e antigo. Ela ouviu, guardou a pequena caderneta na bolsa, virou-se para mim, agradeceu e despediu-se. Quando estava prestes a partir, concluiu gosto muito de literatura, de todos os estilos, mas o que você escreve me dá imenso prazer, sobretudo quando estou sozinha. Ela se foi. Fiquei a pensar o que é ter prazer e o que é estar sozinha. Ah, meu vestido leve, na verdade parecido com o da personagem que resolve ficar nua num ponto de ônibus, de madrugada. Ela achava que não passaria ônibus algum àquela hora. Como não passou. Mas passou um ladrão de vestidos!

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