Você não me acompanha?, sugeriu. Quem sabe, respondi atrevida. Olhares
são capazes de tudo, e o homem possuía uma dessas maneiras de devassar o mundo.
Olhou nos meus olhos e descobriu o que eu pensava, olhou o meu corpo e me
deixou nua. E eu que vinha tão vestida. Uma saia comprida, marrom, quase até os
pés; uma blusa branca, com alguns enfeites, um falso bordado muito sutil. O homem não deixou
de observá-lo e de plagiá-lo; ainda
um casaquinho aberto, de uma malha suave, café com leite. Ele me seguiu. E eu, em
frente. Vínhamos pela Prudente de Morais, os carros nos defrontavam. Entrei
então numa transversal, na direção da Visconde de Pirajá. Nuinha. As outras
pessoas pensavam nos seus problemas naquela tarde de quinta-feira, não tiveram tempo de prestar atenção em mim..
Como a perseguição era lenta tive tempo de lembrar,
enquanto escapava, a conversa que tivera com uma amiga na semana anterior. Ela
falava do filho. Estava preocupada porque o rapaz chegava a casa trazendo as
calcinhas das namoradas. Por que a preocupação?, perguntei. Não fica bem, foi o
que falou. Minha amiga é muito católica. Acho que pensava nas más vibrações que as
calcinhas alheias lhe trariam ao lar. Deixa o rapaz se divertir, falei.
Diversão?, ela franziu o cenho. Vai dizer que você, pelo menos uma vez, não
gostaria de chegar a casa sem calcinha?, perguntei com o olhar de prazer. Não,
nada disso, pelo menos é o que penso, sei que você tem outra doutrina, chegou a
dizer. Continuamos o nosso diálogo. Não brigamos por causa disso. Conversamos
outras coisas e tomamos café.
A lembrança era fruto do olhar larápio do homem. Isso mesmo,
larápio. Há quanto não ouço a palavra. Mas ser escritor é isso, enumerar
palavras, e algumas tão antigas. Só o tal ladrão sabia o que de mim levava. Mas
não perdi o brilho. Entrei na Visconde de Pirajá e segui na direção da Garcia
D’ávila. Mas parei no meio do caminho. Encontrei a livraria da Travessa. A
sensação de nudez, então, diminuiu. Misturei-me aos livros. Tornei-me uma
personagem apenas observada por leitores atentos. Sabem vocês que os livros são
transparentes? Mas apenas para poucos. Deparei com Proust e seu Em busca do
tempo perdido. Senti que o tempo passava e eu envelhecia. Não aparentava, mas
envelhecia. Voltou-me a cabeça a coleção de calcinhas do filho de minha amiga.
Vai ver o garoto quer manter a infância, um desejo inconsciente, não quer o tempo a passar. Avistei o homem que me despira na Prudente. Era ele mesmo ou tudo
literatura, imaginação? A bancada principal exibia muitos romances. Alguns
sérios; outros escritos por mulheres que tentavam escapar do rótulo de
mulherzinha. Mas será que existem romances sérios?, perguntei a mim naquela
hora. Tive um namorado que dizia com a voz tonitroante: só leio livros técnicos. Livros técnicos são tão
sérios assim? Por delicadeza guardei a pergunta. Por delicadeza, deixei que me
tirasse a roupa. O sexo não é um livro técnico, pensei também na ocasião. Por
mais que existam livros que ensinam sua técnica. Na maioria das vezes, somos
arrastados pelo desejo. Em busca do tempo perdido, e o tempo passava, e
já eram quatro da tarde. O homem da Prudente se aproximou do balcão de poesia.Edições portuguesas. Trocava-me por um poema. Talvez eterno. Os poemas não
envelhecem. Alguém grita “falo a língua de Camões” faz quatrocentos anos e
Camões continua da mesma idade; ora jovem e aventureiro ora cego. Arrastei as
mãos sobre várias brochuras, uma francesa, seria a nova edição de Madame Bovary?
Eu, Madame Bovary? O título me servia direitinho. Mas havia Proust, e eu
envelhecia. Por favor, leva-me ao teu quarto, faz como o filho de minha amiga,
rouba-me a calcinha.
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