quinta-feira, dezembro 11, 2014

Roupa do corpo

Você não me acompanha?, sugeriu. Quem sabe, respondi atrevida. Olhares são capazes de tudo, e o homem possuía uma dessas maneiras de devassar o mundo. Olhou nos meus olhos e descobriu o que eu pensava, olhou o meu corpo e me deixou nua. E eu que vinha tão vestida. Uma saia comprida, marrom, quase até os pés; uma blusa branca, com alguns enfeites, um falso bordado muito sutil. O homem não deixou de observá-lo e de plagiá-lo; ainda um casaquinho aberto, de uma malha suave, café com leite. Ele me seguiu. E eu, em frente. Vínhamos pela Prudente de Morais, os carros nos defrontavam. Entrei então numa transversal, na direção da Visconde de Pirajá. Nuinha. As outras pessoas pensavam nos seus problemas naquela tarde de quinta-feira, não tiveram tempo de prestar atenção em mim..

Como a perseguição era lenta tive tempo de lembrar, enquanto escapava, a conversa que tivera com uma amiga na semana anterior. Ela falava do filho. Estava preocupada porque o rapaz chegava a casa trazendo as calcinhas das namoradas. Por que a preocupação?, perguntei. Não fica bem, foi o que falou. Minha amiga é muito católica. Acho que pensava nas más vibrações que as calcinhas alheias lhe trariam ao lar. Deixa o rapaz se divertir, falei. Diversão?, ela franziu o cenho. Vai dizer que você, pelo menos uma vez, não gostaria de chegar a casa sem calcinha?, perguntei com o olhar de prazer. Não, nada disso, pelo menos é o que penso, sei que você tem outra doutrina, chegou a dizer. Continuamos o nosso diálogo. Não brigamos por causa disso. Conversamos outras coisas e tomamos café.

A lembrança era fruto do olhar larápio do homem. Isso mesmo, larápio. Há quanto não ouço a palavra. Mas ser escritor é isso, enumerar palavras, e algumas tão antigas. Só o tal ladrão sabia o que de mim levava. Mas não perdi o brilho. Entrei na Visconde de Pirajá e segui na direção da Garcia D’ávila. Mas parei no meio do caminho. Encontrei a livraria da Travessa. A sensação de nudez, então, diminuiu. Misturei-me aos livros. Tornei-me uma personagem apenas observada por leitores atentos. Sabem vocês que os livros são transparentes? Mas apenas para poucos. Deparei com Proust e seu Em busca do tempo perdido. Senti que o tempo passava e eu envelhecia. Não aparentava, mas envelhecia. Voltou-me a cabeça a coleção de calcinhas do filho de minha amiga. Vai ver o garoto quer manter a infância, um desejo inconsciente, não quer o tempo a passar. Avistei o homem que me despira na Prudente. Era ele mesmo ou tudo literatura, imaginação? A bancada principal exibia muitos romances. Alguns sérios; outros escritos por mulheres que tentavam escapar do rótulo de mulherzinha. Mas será que existem romances sérios?, perguntei a mim naquela hora. Tive um namorado que dizia com a voz tonitroante: só leio livros técnicos. Livros técnicos são tão sérios assim? Por delicadeza guardei a pergunta. Por delicadeza, deixei que me tirasse a roupa. O sexo não é um livro técnico, pensei também na ocasião. Por mais que existam livros que ensinam sua técnica. Na maioria das vezes, somos arrastados pelo desejo. Em busca do tempo perdido, e o tempo passava, e já eram quatro da tarde. O homem da Prudente se aproximou do balcão de poesia.Edições portuguesas. Trocava-me por um poema. Talvez eterno. Os poemas não envelhecem. Alguém grita “falo a língua de Camões” faz quatrocentos anos e Camões continua da mesma idade; ora jovem e aventureiro ora cego. Arrastei as mãos sobre várias brochuras, uma francesa, seria a nova edição de Madame Bovary? Eu, Madame Bovary? O título me servia direitinho. Mas havia Proust, e eu envelhecia. Por favor, leva-me ao teu quarto, faz como o filho de minha amiga, rouba-me a calcinha.

O homem na verdade disfarçava. Arre aos poetas. Ele queria a mim. Aproximou-se. Teria ouvido o meu desejo? Vamos comigo, quem sabe um café, ofereceu. Vou, dei de responder, e não precisa me devolver a roupa do corpo.

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