Onde é que já se viu um janeiro assim, mal começou este ano
de 2002 e já me aparece no consultório sete pacientes para atender num só dia.
Um mês que deveria ser de férias, já tão movimentado. Quem dera ter, ainda que
no futuro, uma época em que eu possa trabalhar com tranquilidade, atender as
pessoas de uma em uma hora e não ter de sair como uma louca na hora do almoço
para ir aos convênios entregar todos esses formulários. Quem sabe um dia
inventem um sistema para a gente enviar estas guias sem ter de sair do
consultório. Oh, acho que já estou querendo muito.
No meio de todo este desconforto, que é ter de sair de casa
no verão para trabalhar, ainda há quem marque e não apareça. Eu a esperar pelo
engraçadinho. Outro dia veio um senhor; pela aparência e pelas roupas parecia
ser muito distinto. Atendi à primeira vez; na segunda, ele veio? Não. Acho que eu
é que não deveria ter vindo, teria sido melhor uma piscina para me refrescar do
calor. Mas ele ligou, pediu desculpas e apareceu três dias depois. Trouxe um
ramalhete de flores, quis me dar um presente. Não lhe dei confiança. Não queria
o tal ramalhete. Que ele o desse para suas negas, não para mim. Mas é lógico
que não agi assim, aceitei as flores, agradeci e o atendi.
Ele passou a comparecer às consultas com pontualidade e não
faltou de novo. Na última vez, começou com uma conversa estranha. Disse que
tinha se separado e que vivia muito infeliz, muito melancólico, andava pela
cidade a esmo, sem tem com quem conversar, sem amigo ou amiga, sem ninguém.
A profissão de dentista é ingrata. As pessoas não vêm aqui
para cuidar apenas dos dentes. Elas querem falar sobre si mesmas, contar seus
sucessos e tentar suas intenções. O tal paciente, digamos que se chama Oswaldo,
passou a contar a sua história. Melhor era procurar uma psicóloga, pensei. Mas
eu não podia ser tão indelicada. Escutei-o, e cada vez seus relatos eram mais
diversos. Falou da mulher, disse que ela o atormentara a vida toda. Por mais
que fizesse por ela, de nada valia. “Uma ingrata”, afirmava, “uma ingrata que
não reconhecia o sustento da casa, os presentes que lhe dera, as viagens que fizeram
juntos.” Eu escutando todo aquele fraseado ensandecido. No final, ainda disse
que ela o traíra. Teria ele mesmo razão?
Num dia desses, ao acabar de atendê-lo o relógio já marcava
seis e trinta da tarde. Acho que adivinhou meu pensamento. “Você já vai embora,
será que podemos descer juntos?”, ele sugeriu. Eu quis dizer que não dava, que
tinha de arrumar o consultório, mas estava tão cansada que aceitei a sugestão.
Descemos juntos, e o caso não ficou só em pegar o elevador, saltar na portaria
e caminhar até o ponto do ônibus. Pelo meio do caminho, resolveu tomar um
refresco. “Vamos aqui ao lado, há uma lanchonete e faz tanto calor”, convidou.
Eu não quis me mostrar indelicada. Afinal, um refresco, vá lá, tomo-o e vou
embora. A parada no pequeno restaurante me custou uma hora e quinze minutos. O
homem continuou com aquele assunto, só falava da vida infeliz que tivera ao
lado da ex-mulher. “Mas agora estou livre”, chegava a levantar os braços ao
afirmar, “graças a Deus, ela não me perturba mais.”
Uma semana depois voltou ele ao consultório. Numa das mãos,
havia uma bolsa com um pacote, era um presente para mim. Quis dizer que não
precisava, não queria aceitar, receber presentes daquele homem me deixaria numa
situação desvantajosa, ele poderia pensar que eu aceitava sua cortesia e que
estava interessada nele. Mas acabei nada dizendo, meio sem jeito sorri e
agradeci.
Como vou fazer para me livrar dele?, perguntei a mim mesma.
Já sei, lembrei-me de uma história que ouvi de alguém ou li em algum livro. Conversaria
com ele abertamente.
Na próxima consulta, o homem me trouxe de novo outro
ramalhete. Acabei aceitando mas aproveitei a oportunidade e perguntei: “Vamos
conversar às claras, você tem interesse em mim?” É claro que se eu tivesse
interesse nele, não faria a pergunta, as coisas aconteceriam naturalmente. Uma
pergunta sempre pode estragar tudo. Mas como ele me era indiferente, a pergunta
vinha a calhar.
Ele me olhou, piscou os olhos. Acho que estava nervoso. “Não
queria falar nisso assim tão de repente”, respondeu.
Não retruquei, esperei alguns segundos, que se transformaram
em minutos, o que fez aquele espaço de tempo se tornar muito desconfortável.
“Vamos conversar sobre isso depois de você acabar de atender
as pessoas”, sugeriu.
Espertinho, pensei. Quer encontrar um jeito de sair mais uma
vez comigo.
“Ok, concordo”, afirmei, “mas vamos marcar para amanhã.”
Ele aceitou. Ficou muito feliz. Mal sabia que minha intenção
era lhe telefonar no dia seguinte, no meio da tarde, e desmarcar o encontro,
dizer pelo telefone que não desejava sair com ele. Para uma mulher,
conversar com um homem deste tipo num bar ou restaurante é muito desvantajoso,
a conversa pode não acabar bem. Eu diria que não tinha nenhuma intenção quanto
a ele e acabaríamos o assunto, mesmo que perdesse o paciente. Mas o dia foi
muito cheio. Era uma quinta-feira, e tive de atender oito pacientes. Esqueci
totalmente de ligar para o homem.
No final da tarde, quando atendia o último, alguém tocou a
campainha. Parei, tirei as luvas e abaixei a máscara, fui até a porta e abri. Era
ele. Veio encontrar comigo para sairmos juntos. E trouxe uma bolsa com um
pacote enorme. Outro presente.
E agora, o que faço? Como vou me livrar deste homem tão
insistente?
Mas, pensando bem, não sei, quem sabe ele seja uma boa pessoa, quem
sabe ele tenha razão...
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