quarta-feira, novembro 09, 2011

A gente nunca sabe o que tem lá dentro

O bar onde ele trabalhava era na rua Duvivier. Eu fazia faxina num apartamento do prédio em frente todas as quintas-feiras. A patroa era boa para mim, me pagava para fazer todo o serviço mais dez reais do que costumavam pagar e ainda me dava o dinheiro da passagem. Sempre quando eu chegava, tinha de passar no bar para pegar o sanduíche que ela deixava encomendado todos os dias. Ele me olhava, sorria e parecia querer dizer alguma coisa depois que me entregava a embalagem. Nesta última quinta, acabou falando:

“Você pega o ônibus do metrô, não? Vi na semana passada quando foi embora, quase peguei o mesmo ônibus.”

Nada respondi, apenas sorri gentilmente e segui o meu caminho.

Na hora de eu ir embora, lá estava ele no ponto. Aproximou-se:

“Hoje vou no mesmo ônibus, vamos juntos.”

Não falei nada. Esperamos por uns bons quinze minutos. O ônibus chegou e parou. Entramos. De início ele não conseguiu ficar perto de mim porque o ônibus estava muito cheio. Mas aos poucos acabou se aproximando e começou a puxar conversa.

“Sabe, acho você muito simpática, pena que não temos tempo pra conversar.”

“É, sou muito ocupada, e não posso ficar por aí conversando com qualquer pessoa.”

O ônibus deu um solavanco e arrancou. Nos seguramos, acabei por dar um encontrão nele.

“Desculpe”, disse eu.

“Não tem problema, não há nada demais num esbarrão, foi até gostoso.”

“Como um esbarrão pode ser gostoso?”, eu começava a aceitar a conversa, mesmo aparentando não querer.

“Principalmente se a pessoa que esbarra for simpática, sabia? Dá até pra arranjar namorada assim.”

“Você quer arranjar namorada através de um esbarrão?”, fingi surpresa.

“Já arranjei namorada numa carona de guarda-chuva.”

“Como foi?”, demonstrei interesse.

“Foi em Mesquita. Saltei na estação na hora que caiu uma tremenda chuva. Uma moça desprotegida estava ficando toda molhada. Então, perguntei: 'quer uma carona de guarda-chuva?' Ela aceitou.”

“Como você fez pra namorar com ela?”

Ele pareceu mostrar entusiasmo, enquanto isso o ônibus fazia a curva, outras pessoas se espremiam; falou, afinal:

“Encontrei a moça num sábado, ao acaso, fui ao clube local e ela estava na festa. Como já tinha dado a carona, foi fácil conversar com ela.”

“Estão namorando até hoje?”

“Não, pra falar a verdade foi só naquela noite, e foi bom.”

“O que mais?”

“Não conheço você bem pra dizer o que aconteceu a mais.”

Tive de rir das palavras dele.

“Você tem namorado?”, perguntou.

“Eu? Tenho um marido que às vezes é metido a valentão.”

“Viche, pensei que você fosse solteira, estou metendo a mão em cumbuca.”

“O que é meter a mão em cumbuca?”, perguntei.

“A gente nunca sabe o que tem lá dentro, pode ter bicho venenoso.

“Não tem veneno, não, fica tranquilo, se dei conversa é porque não tem veneno.”

O ônibus fez mais uma curva e parou na estação do metrô. Saltamos juntos, seguimos lado a lado a caminho do trem.

Na quinta seguinte, falei a ele assim que me passou o sanduíche:

“Minha patroa vai me deixar sair às quatro hoje, você pode encontrar comigo?”

“Às quatro? Acho que sim”, disse sem pensar.

“Então a gente se vê no ponto”, dei as costas e saí do bar.

Enquanto subia no elevador, pensei que deveria ter deixado o número do meu celular.

Trabalhei naquele dia com muita atenção a todos os detalhes. Como a patroa ia me liberar mais cedo, não queria decepcioná-la.

Ao sair pensei em passar no bar para ver se meu namoradinho ainda estava trabalhando, mas desisti, era dar muito na pinta. Segui para o ponto e esperei por ele.

Mas ele não apareceu.

Na quinta seguinte não fui trabalhar. A patroa ligou dizendo que não precisava de mim naquela semana. 

Apareci somente depois de quinze dias.

Ao passar pelo bar, não foi ele quem me atendeu. Pensei em perguntar pelo rapaz, mas não tive coragem. Quem sabe tinha ido embora?

Trabalhei com um peso no coração. Apesar de até ali só termos conversado uma vez, senti uma grande tristeza, tudo levava a crer que não mais nos encontraríamos.

Às seis horas saí e fui para o ponto. O tempo estava fechado, de repente começou a chover. A chuva foi aumentando até se transformar num terrível temporal. Corri procurando abrigo, mas em poucos minutos eu já estava toda encharcada. E para piorar a situação eu não tinha levado a sombrinha.

“Você precisa de ajuda?”, ouvi alguém perguntar. Quando virei o rosto, vi o rapaz que eu pensava ter perdido para sempre.

“Oi”, não consegui esconder um sorriso.

“Mas você está rindo de quê, toda molhada desse jeito?”

Senti vontade de correr para a chuva e me molhar um pouco mais. Fiz, porém, cara de inocente.

“Vem comigo que eu vou ajudar você a se secar”, falou.

Como ele também não tinha guarda-chuva, acabamos nos molhando ainda mais. Antes, ele ainda tentou comprar um com um homem que vendia na calçada. Mas todo o estoque havia terminado.

“Vamos correr, acho que a chuva vai piorar”, falou.

A chuva era tanta que não me deixava ver o que havia pela frente. Ainda assim atravessamos duas ruas para ir ao prédio onde ele dizia que podíamos nos abrigar. Percorremos mais duzentos metros tentando nos proteger sob as marquises, elas estavam cheias de gente que esperava uma possível estiagem. Mas a chuva era inclemente, castigava cada vez mais.

Entramos num prédio comercial. Ele se virou para mim dizendo que o seguisse. Subimos ao nono andar num elevador antigo mas bastante rápido. O rapaz dobrou à direita no corredor e  parou diante de uma das portas.

Era uma sala comercial, um estúdio fotográfico, desses que fazem fotos para documentos e para aniversários. Não havia ninguém lá dentro.

“Como você conseguiu este lugar?”, perguntei.

“Meu irmão trabalha aqui, hoje como não pode vir a Copacabana deixou a chave comigo para eu lhe fazer um favor.”

Apontou o banheiro.

“Você pode tentar se enxugar ali, veja se encontra uma toalha.”

Entrei e me olhei no espelho, que ficava ao lado da pia. Só então pude ver como estava ridícula molhada daquele jeito. A única toalha era pequena, de rosto. Mesmo assim tirei a roupa toda e comecei a me enxugar. Apareci na fresta da porta e disse:

“Não tenho o que vestir, a toalha daqui é muito pequena.”

“Deixa eu ver se encontro algum pano, ou outra toalha.”

Depois de algum tempo, voltou com uma espécie de manta. Também era estreita, mas servia para eu me cobrir. Enrolei o pano no meu corpo, ficou como um tomara que caia curto. Não me fiz de rogada, saí do banheiro assim mesmo, e com a toalha de rosto cobrindo o cabelo.

“Até que você ficou bem assim”, falou e sorriu.

“E você, não vai se enxugar?”, perguntei enquanto esticava minhas roupas sobre um dos sofás.

“Não sei, não há outro pano.”

“Olha, já que você me ajudou, vamos fazer assim”, me livrei da manta e a entreguei nas mãos dele. “Não quero que você fique doente por minha causa, sei que não vai ficar olhando o meu corpo.”

No começo ele pareceu se surpreender. Mas depois minha nudez passou a ser para ele a coisa mais natural do mundo.

Sentei numa das poltronas, cruzei as pernas e tentei cobrir os seios com um dos braços. Olhei para ele enquanto se enxugava. Falou:

“Acho que aqui tem pó de café, vou fazer um pouco pra gente.”

Antes que ele se dirigisse à minúscula cozinha, eu disse: “senta aqui do meu lado; deixa que depois eu faço o café.”

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