Tive um homem que também adorava a vida silenciosa. Em nosso
amor, não havia ruídos. Entendíamos um ao outro através de sorrisos e olhares.
Concordávamos com aquele verso de Bandeira: “os corpos se entendem, as almas não”.
Se elas, as almas, não se entendem, para que tanta conversa? Vivíamos numa
cumplicidade muda, envoltos em atitudes de nossos corpos. Atitudes compostas, na maioria das vezes, de carícias. Palavras, muito poucas, só o essencial. Fomos felizes. Mas como na vida nada é para sempre, ele se foi. Definitivamente. Abati-me a princípio; depois, recuperei-me. Não deixei, no entanto, de amar a vida
silenciosa.
Um dia desses saí para dar uma volta na orla da lagoa
Rodrigo de Freitas. Num trecho, onde muitos caminhavam, observei um homem. Ele
também se pôs a me apreciar. Continuei a marcha. Não demorei a chegar ao parque
da Catacumba, que era o meu destino. O homem me seguiu. Quando vou a passos
módicos, ali perto dos patinhos de aluguel, ele me aborda. Ou melhor, não foi uma abordagem comum, mas quase um desembarque. Como aquele na Normandia. Fiz sinal que concordava com sua
companhia, mas que permanecesse em silêncio. Não se ofendeu, continuou ao meu
lado. Sorriu. Quando fez menção de falar, cobri seus lábios com o indicador,
tomei o homem pelo braço e passamos a caminhar juntos.
Você é surda?, foi a pergunta natural que ele podia fazer.
Chegou até a ensaiar alguns gestos, uma espécie de mímica.
Fiz que não com uma das mãos.
Depois de uma volta inteira, paramos para
descansar. Sentei num banco e lhe fiz sinal de quem pede um lápis. Não tinha. Corri até o quiosque mais próximo e voltei com o bilhete
pronto. Caso quisesse, poderia permanecer ao meu lado. Mas nenhum
som de voz. Terminei escrevendo que ele parecia simpático, e não lhe escapava
uma ponta de beleza. Leu com atenção e demorou a entender meus meneios
literários.
Tomei-o mais uma vez pelo braço e continuamos a caminhada. Andamos
mais vinte minutos.
Não entendo por que você não fala, suspirou no final.
Nada melhor do que a amizade em meio ao silêncio, saquei outro
bilhete que já prepara no quiosque. Já sabia, pois, o que me aguardava.
Beijei-o e parti. Posso assegurar que foi um beijo quente.
Espere, como faço para ver você de novo?, ele quis saber.
Meneei os ombros e apontei a pista onde caminháramos.
No dia seguinte lá estava eu de novo na mesma orla da lagoa.
Foi só passar pelo ponto onde o encontrara na véspera, que meu recente
admirador já me aguardava.
Esqueci de dizer, seu nome é Sérgio. E para ele não pensar
que sou muda, não escondi o meu. Mas falei apenas isso.
Tomei-o de novo por um dos braços e fomos nós. Uma volta inteira.
Depois apontei as bicicletas da Bike Rio. Destravei uma e esperei por ele.
Saímos os dois. Eu ia à frente. Entrei pelo jardim de Alá e escapuli
para a orla marítima: Leblon, Ipanema, Arpoador, Copacabana. Sérgio sempre
atrás. Pedalávamos à velocidade moderada. Assim que chegamos ao Leme, desmontei e
aguardei por ele. Recostamos as bicicletas. Abracei Sérgio, puxei seu pescoço e
lhe dei um beijo na boca. Beijo demorado. Ele me apertou contra o seu corpo.
Ficamos ali uns vinte minutos. Depois subimos nas bikes e
retornamos ao Leblon. Deixamos as bicicletas na estação da João Lira. Caminhamos
então lado a lado até o final da praia. Abracei-o mais uma vez, beijei-o
longamente e parti.
Fiquei uma semana inteira sem sair de casa. Li Vício Inerente, de Thomas Pynchon.
Também aproveitei para escrever o conto "Filme", que postei alguns dias atrás.
Por falar em Pynchon, trata-se de um escritor muito
interessante. O livro que menciono é bastante extenso, como a maioria dos seus outros
livros. A história é ambientada numa Los Angeles pós-psicodélica, assim se
costuma dizer. A vida livre dos hippies está em declínio. O protagonista, que
vivera toda a liberdade daqueles anos, precisa trabalhar. Mas o seu trabalho é ser
um confuso detetive particular. Ele precisa da polícia e também acaba por auxiliá-la
nas investigações de alguns crimes. Há muita praia, maconha, amor livre e
surfistas que esperam ondas gigantescas. A principal cidade do oeste
americano é multicultural, com pessoas de todas as partes do mundo. E também é
muito musical. Deixei-me levar pela leitura envolvente, (vício inerente!) e só
saí de casa na quarta da semana seguinte.
Ao iniciar a marcha na orla da lagoa, sinto alguém me apertar o braço esquerdo. Olho sobressaltada e me deparo com Sérgio. Diz de um jato
que me procurou desesperadamente todos os dias em que não apareci. Pensou até que eu tivesse morrido. Pusemo-nos a caminhar. Eu, mergulhada no
costumeiro silêncio. Andamos bastante, pedalamos também. Quando fiz menção de
ir embora após beijá-lo, ele me segurou firme e falou:
Quero saber onde você mora. Com todo esse silêncio, não
dá para confiar.
Continuou agarrado a mim. Fomos então até o prédio onde moro, no
final do Leblon. Passamos pela portaria e entramos no elevador. Saltamos no quinto andar. Abri a porta do
apartamento e fiz um longo e convidativo gesto. Que entrasse. Apontei o sofá. Depois,
sempre no mais profundo silêncio, pedi que esperasse. Fui ao meu quarto por uns
instantes.
Quando voltei, ele estava ainda sentado no mesmo lugar. Prestava
atenção nos quadros, nos móveis até que... Sobressaltou-se quando me viu!
Eu era um nu de Mondigliani, ou mesmo de Picasso, na parede de museu
famoso. Fiquei estática a observar a expressão de Sérgio. Foram longos os segundos. Duraram metade de todo o século 20 e mais o início
do 21.
Depois? Deixei o meu corpo falar. Se o leitor não entende,
explico. Deixei o meu corpo nu falar.
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