segunda-feira, julho 29, 2013

Olha que quando fico bêbada tiro toda a roupa

O shopping sábado, logo após a hora do almoço, é um local agradável para quem está sozinha, sempre há muito para se observar nas vitrines, e as pessoas que transitam pelos corredores refrigerados ainda não incomodam, pois aparecem em pouca quantidade, pode-se até mesmo observar, de forma sorrateira, o que cada uma tem de interessante.

Eu caminhava pelo Iguatemi quando, de fronte a uma vitrine de vestidos, observei pelo espelhar do vidro um homem parado em meio ao corredor. Ele olhava o pulso, talvez se certificasse das horas e, quem sabe, lamentasse o atraso da pessoa que esperava. Dei alguns passos à esquerda e fiz de conta que apreciava o vestido marrom localizado mais ao fundo. O homem continuou no mesmo lugar, mas movimentara-se e se punha agora de costas. Calçava sapato social, vestia calça preta e camisa de mangas de tecido fino, de cor verde, seu cabelo era preto. Devia medir em torno de metro e oitenta. Pouco a pouco ele foi completando uma volta, quase no mesmo lugar, a seguir olhou para a vitrine onde eu hesitava. Da posição em que me encontrava pude observá-lo de frente de modo mais nítido. Ele não percebia que eu o espreitava. Lembrei-me de uma amiga que sempre diz: “o importante é ter bastantes amigos”. O tal homem, naquela tarde, bem que poderia aproximar-se e tentar comigo um início de diálogo, mas ele parecia preocupado. Olhou para um lado, para o outro e ainda uma vez mais se certificou das horas no pequeno relógio de pulso. Olhei-o de novo através do espelho e conclui que de nada adiantaria ficar numa espécie de jogo de gato e rato, ou de gata e rato. Sim, era eu a caçadora. Virei-me. Quando olhei seu rosto ele levantava a face, tentava esquecer o relógio, as horas. Naquele momento nossos olhares cruzaram-se, momentos suficientes para darmos conta da existência de um e de outro; eu, mais interessada, lhe sorri. Ele notou o campo aberto, só não avançaria se não quisesse.

Nos segundos que se passaram, lembrei-me de minha diarista, uma negra magra e nem tão bonita, mas assanhada que só. Outro dia disse que conhecera na condução um fotógrafo espanhol. Deu-lhe o número do telefone e passou a encontrá-lo quase todo o final de dia quando saía da minha casa. Foi-lhe fácil conversar, fazer amizade e quem sabe o que mais. Vai ver ele já até tem a foto dela nua. Segui para a praça de alimentação. O dado estava jogado.Caso ele quisesse arriscar, bastava seguir-me.

Sentei-me no Viena, pedi à garçonete café expresso e bolo de laranja. Olhei ao redor, mas não vi o homem. Que pena, não entendeu meus sinais, foi-se, logo num sábado, dia ideal para uma conversa, um namoro ou mesmo algo mais. As pessoas que estavam em volta comiam e bebiam sem observar umas às outras. Quem estava sozinho (ou sozinha), parecia mergulhado em si mesmo. Quem vinha em companhia mantinha a conversa alegre, de mútuo interesse. Vi um homem caminhando para a mesa ao lado, um adolescente o acompanhava. Talvez pai e filho, desses pais divorciados que saem com o filho aos sábados. Sentaram-se e começaram a tomar cada um sua coca-cola. Lá, além, ao lado de uma bombonier, quem vejo? O homem dos espelhos. Ele mesmo, ainda sozinho, tinha o ar preocupado. Alguém lhe faltara o compromisso? Esperava ainda por companhia? Pensei em chamar sua atenção, em despertar-lhe o interesse, mas eu estava longe, não ficaria bem fazer alvoroço. Tive uma amiga que se declarava aos homens. Mas no final o relacionamento não dava certo. Tudo que é muito fácil não é valorizado. Continuei sorvendo meu café e torcendo para que ele olhasse para onde eu estava. Que viesse para as minhas bandas. “Dona Márcia, por que a senhora não perguntou pelo menos as horas?”, diria minha diarista. “Quando percebo que alguém me interessa, pergunto logo as horas, mesmo que não tenha o relógio no pulso”, continuaria ela. Não percebi quando outro homem passou rente a mim. Ouvi apenas sua voz.

“Moça, posso sentar aqui?”, perguntou e olhou para a cadeira vazia, à minha frente.

“Sim, claro”, falei.

Não tinha a mesma elegância do meu admirador dos espelhos, mas também não era de se jogar fora.

“Está cheio o local”, falou enquanto segurava o garfo. Pôs-se a comer um salgado.

Apenas sorri. Quando acabei, ameacei levantar, ia pedir licença. Aconteceu, no entanto, o inesperado. Vi o namorado original. Sim, ele já era meu namorado, porque namorado vem de “estar em amor”, e era como me sentia naquele momento.

“Ei, venha até aqui”, gritei para ele, “guardei um lugar para você.”

Olhou para mim meio desconcertado. Sorri, e disse: “não está me reconhecendo, venha até aqui.”

O homem que sentara à minha frente, gentil, cedeu o lugar a ele.

“Não, não precisa”, cheguei a dizer. Mesmo assim levantou-se, observou um lugar na mesa ao lado e mudou-se para lá. O outro aproximou-se meio sem jeito: “é que espero uma pessoa, não estou reconhecendo você.”

“Espere por ela aqui, enquanto isso eu esclareço. Você não estudou engenharia na UNB?”

“Não, não sou eu. Estudei no Rio, na Puc.”

“Poxa, a PUC é boa, não? Desculpe se lhe incomodo. Acho que me enganei.”

“Não era você que estava olhando uma vitrine, no segundo andar?”

“Sim, era”, falei alegre, como se ele tivesse descoberto a pólvora.

“Estou reconhecendo.”

“Então, já nos conhecemos de algum lugar”, completei.

Ele deu uma meia risada. Pela primeira vez o vi livre da preocupação que estampava no rosto. Não demoraria para eu descobrir que ele esperava uma mulher.

“Às vezes as coisas não acontecem como a gente quer, não é mesmo?”, falei.

“É, isso mesmo”, fez menção de que iria pedir um café. Acabou decidindo-se por chocolate quente.

“Se atrapalho, me retiro”, fiz cara de que incomodava.

“Não, por favor, fique, não há problema algum. Acho que nada acontece por acaso.”

“Não?”, perguntei maliciosa.

“Acho que não”, ele logo teve a xícara de chocolate nas mãos.


Entramos no cinema. Ele nada mais falou sobre o seu encontro. Vimos o filme sobre o início da carreira de Renato Russo. Ele adorou. Quando o filme acabou, era outro homem.

“Bom, não é mesmo?”, perguntou. “Isso é fibra, alguém que acredita nos seus ideais e persiste”, falou como se o músico houvesse salvado o mundo.

“Gostei muito”, também afirmei, “e ele que era tão frágil.”

Passeamos pelos corredores, quase a esmo. Percebi que não queria ir embora, não desejava despedir-se.

“E agora?”, arrisquei.

“Você tem algum compromisso?”

“Tenho”, arrisquei e fiz uma expressão de que sentia pena.

“Ia convidar você para dar mais uma volta.”

“Ok, vou ver se consigo ficar mais tempo. Preciso fazer uma chamada”, recolhi-me a um canto menos movimentado do shopping e fingi que telefonava. Falei, gesticulei. Tudo representação. Depois voltei a ele. “Resolvido, vamos passear mais um pouco."

“Já ouviu falar de Kierkegaard?”, perguntou de repente.

“O filósofo?”

“Esse.”

“Na época de estudante, tive um professor de filosofia que era apaixonado por esse pensador. Dizia que foi o primeiro a introduzir o sujeito no conceito de ser, se não me engano.”

“Isso mesmo, é um filósofo apaixonante.”

“Por que ele agora?”, eu quis saber.

“Há um livro sobre ele na Cultura, queria comprar...”

“Vamos lá, então.”

Depois de feita a compra, quando saíamos da livraria, uma mulher jovem parou diante dele.

“Você? Agora?”, ele perguntou surpreso.

“O que tem? Por que não me esperou?”

Antes que respondesse, ela mesma continuou:

“Quem é ela?”, apontou para mim e esperou resposta.

Ele não respondeu. Os segundos que se seguiram pareceram eternos. A mulher deu as costas e entrou na livraria. Ele teve o intuito de segui-la. Antes que o fizesse, olhou-me indeciso.

“Não vá, ela telefonará para você amanhã ou depois”, falei. “Se você segui-la, fará isso a vida toda.”

“Como posso ter certeza de que ela me telefonará?”

“Certeza, não sei, mas ela acabará telefonando. Venha”, puxei o homem pelo braço e saímos dali.

Deduzi que era a mulher por quem ele esperava.

Caminhamos para fora do shopping.

“Não tínhamos combinado em continuar nosso passeio?, perguntei.’

“Sim, vamos continuar”, sorriu e seguimos até onde havia estacionado o carro. Entardecia, o céu avermelhava-se, no horizonte acentuava-se aquela sensação de encontro entre o céu e o mar que o por do sol de Brasília sempre sugere, um mar distante e ilusório que a vastidão do planalto central impõe àqueles que vêm do litoral e ainda não se acostumaram à nova paisagem.

Entramos num automóvel cinza metálico, muito luxuoso. Ele deu a partida. Deixamos para trás o shopping, o estacionamento e começamos a seguir em direção ao Lago Norte.

Ficamos em silêncio enquanto ele conduzia o veículo pelas largas vias dos arredores da capital federal. Sugeri que fôssemos ao Iate Clube.

“Iate?”, assustou-se, “o que tem lá?”

“É um clube, além de haver lá um um bonito bar, pode-se apreciar um céu maravilhoso.”

“Você possui um barco?”, arregalou os olhos.

“Não é bem meu, mas da família.”

“Você pilota barcos?”

“Assim como seu Kierkegaard tentava pilotar o eu.”

A única coisa que ele pôde fazer foi sorrir. Saiu da via principal e começou a beirar outra, mas de menor importância. Como não estava frio, vimos muita gente nas imediações do lago e do setor de clubes.

“Onde estacionamos?”

“Dentro do clube, eu mostro.”

Atravessamos a entrada de veículo. Apresentei a minha identificação e expliquei que levava um convidado. O funcionário agradeceu a nossa presença, disse que ficássemos à vontade, mas que havia uma festa em determinado setor onde só se poderia ter acesso através de convite.

Estacionamos e descemos para as proximidades do ancoradouro. Paramos um pouco à beira d’água, depois seguimos ao bar. Propus que, no início, tomássemos alguma coisa, poderia ser café, ou mesmo refrescos, que deixássemos a bebida alcoólica para mais tarde.

“A garota era sua namorada?”, falei sobre o inesperado encontro com a moça, no shopping.

“Mais ou menos.”

“Ela ficou furiosa quando me viu ao seu lado.”

“Você observou?”

“Sim.”

Um garçom veio atender a nossa mesa.

“Quero um café com um pingo de leite”, pedi.

“Pra mim também”, falou ao garçom. “Nós vamos ao seu barco?”

“Sim, mas conversemos antes um pouco.”

“Você tem namorado?”

“Tenho vários.”

“Verdade?”

“Verdade. Mas não significa que tenho de ficar ao lado deles. Eles é que me namoram e não eu a eles.”

“Você é engraçada.”

“Daqui a pouco vai dizer que trabalho no circo,”, revidei.

“Não foi isso que eu quis dizer. Estou achando você uma pessoa muito alegre.”

“As pessoas sempre dizem isso de mim, acho que de agora em diante vou fazer cara de furiosa”, ri.

“Em relação a essa mulher que você conheceu, as coisas não são tão alegres nem pacíficas. Ela é muito radical.”

“As pessoas radicais são fáceis de serem dobradas.”

“Quanto a isso, não posso concordar com você”, disse ele, “ela não é fácil, não. E sobre o que aconteceu hoje, sei que ela não vai mais querer saber de mim.”

“Aí é que você se engana.”

“Verdade?”, mostrou preocupação.

“Tenho certeza. Digo que sempre há uma maneira de se chegar às pessoas.”

“Em relação a ela, não há. Sei que não vou conseguir. Ela não mais pensará em mim.”

“As pessoas sempre têm uma porta aberta, basta descobrir onde tal porta está”, afirmei com a mais absoluta certeza.

“Não acredito que será possível reconquistá-la, não digo isso porque estava com você e ela nos viu, mas o problema é anterior.”

“Você se engana; caso queira, será possível. A primeira estratégia a seguir é acreditar que você vai conseguir. Mas há um ponto: você precisa analisar se esse relacionamento amoroso vale a pena.”

“Eu gosto dela.”

“Você acabará como uma espécie de serviçal dela. Há homens que bajulam o  tempo todo, enchem a mulher de presentes, fazem tudo o que ela pede. Mas não sei se um relacionamento assim é compensador.”

“Você acredita nisso?”, parecia ansioso.

“Acredito. Sou mulher.”

“Não íamos ao barco?”, ele pareceu desinteressar-se pela conversa, demonstrava querer outros ares.

Segui pelo ancoradouro e apontei a embarcação.

“É muito grande”, pareceu surpreender-se.

“Você pensou que fosse um barquinho a remo?”

“Não, mas não imaginava um iate desse porte.”

“Aqui é apenas um lago, você sabe, não se pode ir muito longe.”

“Para conduzir uma embarcação dessa é preciso ter experiência”, olhou para mim desconfiado.

“Não se preocupe, não vamos navegar, tenho duas garrafas de vinho na cabine, e há espaço pelo barco onde podemos ter apenas o céu sobre nossas cabeças. Não tenho mesmo é nada para comer, mas podemos arranjar no bar um pedaço de queijo e alguns pães”, sorri ante o imprevisto.

Já dentro do barco, perguntei:

“Que tal o nosso pique-nique?”

“Não esperava que ia viver isso tudo hoje.”

“Você esperava por sua namorada.”

“Não vamos falar mais nisso.”

“Vamos falar sobre algo mais atemorizante. Não conheço você, quem sabe me vai fazer algum mal?”, falei e caí na gargalhada.

“Isso mesmo. Sou um homem mal, um sequestrador...”

“Acho que fui eu quem sequestrou você. Sou eu quem sei fazer andar essa joça.”

“Você tem razão.”

Brindamos o vinho.

“Brindaremos a quê?”, perguntou.

“Brindemos por nos termos conhecido”, falei e o abracei.

“Você sempre traz os seus namorados aqui?”, perguntou um tanto sem jeito.

“Que indelicadeza. Isso é pergunta que se faça? Convidei você porque o achei especial”, apesar do tom sério no início, minhas palavras não soaram em tom de advertência. Acabei rindo no final.

É difícil terminar uma história, sempre há algo que nos lança adiante. Mas enquanto bebíamos o vinho, tornamo-nos pouco a pouco amantes, Ainda lembro que falei:

“Olha que quando fico bêbada tiro toda a roupa.”

O que ele podia dizer? Riu, apenas. Depois, aproveitamos o resto da noite. Só aquela noite. Porque no dia seguinte, logo cedo, eu tinha certeza, ele procuraria pela namorada.

segunda-feira, julho 22, 2013

Será que devo ficar tão alarmada assim?

Reli meu escrito e estou alarmada. Não quero que suspeitem que sentei aqui para escrever um dos meus contos. Afinal, trabalho no setor de vendas de acessórios numa revendedora de automóveis da R. Mas vamos ao texto.

Estava sentada aqui faz um tempinho quando vi um homem passar para a sala de espera. Ali há uma máquina com vários tipos de café, TV e cadeiras estofadas. É para onde encaminhamos os clientes quando precisam aguardar o atendimento. O homem entrou na sala e parou diante da máquina de café. De lá olhou para mim, e eu estava ainda olhando para ele. Disfarcei. Mas quando voltou após tomar o café, me esqueci e o olhei de novo. Ele arregalou os olhos e sorriu para mim. Embora as pessoas achem que não, ainda tenho um pouco de pudor. Confesso que fiquei envergonhada. Ele continuou a seguir em frente, depois dobrou à esquerda e foi para o pátio esperar pelo seu automóvel. Deixei passar cinco minutos. Então me levantei e segui para onde ele provavelmente estaria. Atravessei o pátio e fui fumar um cigarro na área externa. Lá é o único lugar onde se pode fumar. Dali, olhei mais uma vez para ele. Apesar de estarmos longe um do outro, talvez uns quarenta metros, acho que percebeu a minha olhadela. A partir daí não mais tirou os olhos de mim.

Minhas amigas dizem que sou muito esportiva, que com o meu corpo mignonzinho, sempre vestida de calça de liga e camiseta, sou a modelo de mulher que os homens desejam. Quanto ao meu gosto pelos homens, é um pouco diferente do delas. Gosto de homens meio relaxados com a roupa. Aprecio muito os meio hippies, cabelo grande, barba por fazer, uma camisa sobre a outra, calça jeans desbotada e surrada. O homem que aguardava o automóvel era assim.

Fumei vagarosamente o meu cigarro. Ao voltar para o meu local de trabalho, o aquário onde ficam as vendedoras de acessórios, ele não estava mais no pátio. Acho que alguém o chamara para lhe entregar o automóvel. Fiquei a pensar como faria para estabelecer contato com ele. Se ele tivesse se aproximado e falado comigo, eu daria o meu cartão. Quem sabe quisesse comprar algum acessório? Mas caso eu descobrisse o telefone dele, poderia ligar oferecendo os acessórios. Afinal, estivera na Revendedora apenas para a revisão do automóvel. Do acessório paro o principal, que seria dar uma namoradinha com ele, eu não estava muito distante.

Sempre quando saio com algumas das minhas amigas a conversa gira em torno de namorados e da minha ousadia. Elas dizem: “Juliana, você é muito piranha”. Eu respondo que não é bem assim. “Não sou piranha, não”, rebato. Não tenho namorado fixo porque não quero. Gosto de sair com amigos e de transar com quem me atrai. Quem sabe um dia vou me apaixonar por alguém? Mas, por enquanto, prefiro esta vida. Não preciso dos homens por causa de dinheiro. Tenho o meu emprego e ganho bem. Trepo por prazer. Basta eu gostar de um homem, que não é difícil ele me levar para cama. Mas minhas amigas são cheias de pudor, plenas de treme-treme. Contei a duas delas sobre um cara que conheci num bar. Ficamos eu e ele conversando até duas da madrugada. Depois me convidou ao seu apartamento, na Gávea. E não é que o cara era médico? Uma logo disse: “Juliana, por que você não ficou com o homem? Eu não perderia uma oportunidade dessas”. Respondi que queria mesmo era transar, uma transa bem louca, bem funda, sei lá, bem gostosa. Contei que o homem era cheio de preâmbulos. Talvez não seja essa a  palavra. Mas era do tipo conquistador, falava uma porção de galanteios. Depois me despiu com o maior cuidado. Foi tirando peça por peça e pousando-as delicadamente no encosto de uma cadeira. Quando me deixou nua por inteiro, perguntou, “você quer beber ou comer alguma coisa? Tenho cada coisa gostosa na geladeira”. Eu queria mesmo era trepar com ele. Mas como agia com tanta delicadeza e demonstrava tamanho gosto pelas coisas, perguntei: “você tem pudim de leite condensado?”. “Claro”, respondeu. Foi à cozinha e voltou trazendo um pratinho de sobremesa com o pudim e uma colher pequena. Contando assim parece hilário, mas até que foi bem legal. Eu sentada no pequeno sofá da sala, nua, de pernas cruzadas, a comer pudim de leite condensado. Depois trepamos, e posso confessar que a trepada foi maravilhosa. Se eu já não tivesse compromisso marcado para o dia seguinte com um amigo, teria saído de novo como o tal médico.

Mas, agora, paro de escrever para sair à cata do número do homem que passou por mim e ficou a me olhar. Tenho certeza de que vou conseguir. Basta eu ir até a manutenção.

E sobre o meu conto, o que vocês acham? Será que devo ficar tão alarmada assim?

quarta-feira, julho 17, 2013

Ficção com autoajuda

Eu viera do Sul e estava hospedada na Barra da Tijuca. O sol de julho, morno e carinhoso, convidava à praia. No Rio, quando há sol, sempre há gente na praia. Havia rapazes e moças, mulheres e crianças. Eu queria mesmo era arranjar um namorado, mesmo que fosse só para aqueles poucos dias em que eu ficaria na cidade. Vestira um biquíni pequeno, mas discreto. Não era aquele escândalo que as cariocas usam. Mas os homens me olhavam, acho que até imaginavam que eu não era da cidade. Lembrei a Thereza. Quando viera ao Rio, arranjou um namorado. Márcia, disse ela, você não imagina a situação, não podia levar o homem para o meu hotel, e acho que nem ele podia me levar para a sua casa, então, como fizemos?, arranjamos um buraco. Um buraco, Thereza, como?, eu, curiosa que só. Olha, é difícil te dizer, você vai achar muito estranho, foi à tardinha, ainda o sol brilhava, poucas pessoas na areia, foi ele que percebeu uma barraca, dessas de camping, olhou pela fresta e me convidou a entrar, uma barraca pequeníssima, na verdade era mais um buraco do que barraca, é sua? perguntei aflita; de um amigo, respondeu; entramos, o resto você imagina, e foi tão bom, jamais vou esquecer o Rio. Era essa a lembrança que eu tinha de Thereza. Achei que era tudo mentira. Ela quisera apenas se engrandecer ante a amiga. Mas, quem sabe, comigo aconteceria de verdade. Descobri, então, um homem a me olhar. Ele estava sob um guarda sol. Lia jornal. Mas me olhava de rabo de olho. Quando descansou o maço de folhas, sorriu para mim. E me pegou no flagra. Eu bem que olhava para ele. Não tive outra saída a não ser sorrir. Não demorou a se aproximar. Oi, falou, você é turista, de longe dá pra notar, está gostando do Rio? Não respondi de imediato, apenas falei, será que sou tão brega assim? Não, retrucou, você tem uma beleza diferente, uma beleza exterior. A cantada tradicional, todos os homens tem essa carta na manga. Mas, como estava na praia, deixei o barco correr... Era uma viagem; eu, passageira. Ele fumava. Ofereceu-me um dos seus cigarros. Aceitei. Fumamos os dois. Daí para frente ele demonstrou muita habilidade. Conversamos durante duas horas. Ele era da área de vendas. Estava na cidade devido ao lançamento de um livro. Era o autor. Explicou do que se tratava, e de modo minucioso. Era uma história que vinha lá da antiguidade, tentava provar alguns segredos, depois chegava aos dias de hoje e prometia sucesso. Tudo aquilo me pareceu uma mistura de ficção com autoajuda. Queria ele fazer palestras nas empresas, provar que a prosperidade estava garantida caso seguissem os seus conselhos. Ouvi atenta. No final eu disse, você é muito convincente, acho que seu livro vai fazer o maior sucesso. Ele sorriu. Mas não custou a perceber que eu desejava mesmo era outro tipo de sucesso. Tomamos banho de mar juntos. Ele achou o meu biquíni lindo e provocante. Nem tanto quanto os biquínis das cariocas, falei. É tão pequenino, acrescentou, dá pra esconder na palma da mão. Mas não o esconda de mim, alertei. Quem sabe?, ele disse e arregalou os olhos com ar travesso, enquanto eu deslizava minhas mãos pelo seu tórax. Acabamos no seu hotel. Eu de saída de praia, curtíssima. Não sei como me deixaram entrar. Ficamos no quarto por umas duas ou três horas. Tão bom. Houve um momento em que quase falei sobre a minha amiga que transou dentro de uma barraca, ou de um buraco, sei lá. Mas me calei a tempo. Ele pensaria mal sobre mim, talvez achasse que aconteceu comigo. Em outro momento, quando ia nua em suas mãos, foi ele quem falou: as mulheres adoram andar nuas, não é mesmo? Sim, respondi, mas depende. Depende, como?, ele quis saber. Você não vai me obrigar a sair pelada do hotel, sorri no final da frase. Até que não é má a ideia, falou e sorriu também. Ah, eu não deveria ter sugerido isso, comentei e fiz cara de vexo. Lógico que era tudo brincadeirinha. Você me quer peladinha, não?, a gente gosta de ficar nua, mas é nos braços de quem nos pegue de jeito, completei. Agarrei o homem, beijei-o na boca e deitei de novo sobre ele.

segunda-feira, julho 15, 2013

O toc-toc dos meus saltos ecoou no quinto andar do prédio

Ficou a me olhar, e seus olhos pareciam perguntar por que você nunca chegou nua na casa do namorado? Beijei-o nos dois lados do rosto e atravessei a porta. O toc-toc dos meus saltos ecoou no corredor do quinto andar do prédio. Lembrei que optara pela bolsa a tiracolo porque combinava com a cor da sandália de meio salto.

Horas antes estávamos os dois abraçados, cada um querendo sentir mais prazer do que o outro. Na verdade, nada disputávamos, desejávamos apenas o grito de amor dos nossos corpos. Não sei por que, naquele momento, veio-me à cabeça a tarde que eu passara com mamãe. Levara-a para passear, uma excursão a um desses clubes de campo. O ambiente não estava bom, pensei que fosse um clube familiar, mas todos os homens ficaram a me olhar. Não havia quem não voltasse a cabeça quando eu passava. Eu vestia um biquíni bem pequenino, e fiquei o tempo todo à beira da piscina, vez ou outra ia ao bar. Quando deixei mamãe em casa ao anoitecer, você telefonou. Atendi e disse que queria sim, queria ver você. Descansei e, depois, às dez, você me veio buscar. Daí, o restaurante; depois o seu apartamento; e o abraço, bem entrelaçado; enfim, o amor. Na verdade, eu não pensava em transar naquela mesma noite. Mas enquanto estava sentada no sofá, imaginei o seu corpo sobre o meu. Rápida, fui até a cama, deitei-me de vestido ainda. O prazer que você me fez sentir quase me deixa louca. Não, não pare, fique assim a noite toda, cheguei a sussurrar no seu ouvido. Não sabia que você era um atleta tão eficaz, um atleta do sexo. Não sei dizer quantas vezes me levou ao êxtase, ou melhor, quantos os orgasmos. Lá pelas duas e tanto, adormecemos, um sono leve. Eu não queria sair de sua casa de manhã. Tenho duas filhas jovens, você sabe que costumam chegar em casa quase pela manhã e encontrar a mãe envolta nos lençóis. Levantei-me sorrateira às três, ou já eram quatro? Sentei-me à beira da cama. Onde minhas roupas? Fora tão quente o amor que não me lembrava delas. Você também levantou. Beijou-me. Ficou a esperar. Era eu que tinha de ir. Nada falei, calcei a sandália com que chegara, coloquei a bolsa no ombro direito e, depois, eu a beijar você na porta do apartamento. Lógico que eu nada perguntaria. Nenhum constrangimento.

Por que você nunca chegou nua na casa do namorado? Seus olhos perguntavam, seus dedos acariciavam meus seios. Quem sabe qualquer dia desses, eu poderia ter respondido. Esperei que fechasse a porta, a noite ainda ia consistente.

O toc-toc dos meus saltos nus ecoou no corredor do quinto andar do prédio.

quarta-feira, julho 10, 2013

Sempre querem garotas

Quando olho os rapazes, fico morrendo de inveja, logo quero um deles só pra mim. São tão bonitos, musculosos, bem cuidados. Mas o perigo é que sempre desejam garotas. E eu tenho, no mínimo, o dobro da idade deles. Outro dia, lendo uma revista, reparei que existem máscaras geniais, máscaras que nos deixam muito rejuvenescidas. Foram criadas para o cinema. Aquela história de atores e atrizes que precisam fazer o papel de alguém bem mais jovem. Eu achava que tal disfarce não me serviria, pensava que logo seria descoberta. Mas arrisquei. Entrei num desses cursos que ensinam manipular maquiagem com máscaras. Tudo resultado da mais alta tecnologia. Estudei e pratiquei bem uns quatro meses. Depois, comprei todo o equipamento. Não demorei a descobrir que fazer a máscara nos outros é fácil, em nós mesmas, porém, torna-se um pouco mais difícil. Mas, com cuidado, depois de borrar aqui e ali, de gastar mais material do que o necessário, consegui. Olhei-me ao espelho demoradamente e imaginei como voltaria para o prédio onde moro caso saísse sob tal disfarce. O porteiro, na certa, não me deixaria entrar.

Saí à noite transformada numa jovem que falta pouco para os vinte anos. Que maravilha, todos os rapazes mexeram comigo! Com os homens maduros, não foi muito diferente. Eles me queriam, assim como desejam todas as meninas que andam nuas ou vestidas por aí. No primeiro passeio, não arrisquei. Foi intensa a paquera, diversas vezes fui chamada de gostosa. Apesar do prazer que senti, não posso negar que tive medo de ser descoberta. Já pensaram, desmascarada? Morreria.

Com mais treino e mais maquiagem, arrisquei uma segunda vez. Digo mais maquiagem porque na verdade a gente fica muito diferente. São necessários muitos produtos para o disfarce. Mas aplicando a máscara com correção, não se percebe o tanto de produtos aplicados. Ela aparenta o próprio rosto. E sobre o meu corpo? Vocês também querem saber, não é mesmo? Falei tanto do rosto que deixei de lado o corpo. Certa vez uma amiga disse: Lúcia, você, de costas, nem parece a idade que tem, pode passar por uma adolescente. No carnaval, engano todos os homens. Faço tipo de garota de dezessete aninhos. Basta uma máscara (das que se usam no carnaval). Oh, não roube a máscara, caso isso aconteça, você terá problemas, é o que sempre peço, e todos eles me respeitam. E lá fui eu à segunda saída com a tal máscara – agora, a de maquiagem.

Esta noite, vou dar conversa, pensei. Então, fui a um lugar onde sempre há muitos jovens. Uma boate feita exclusivamente para eles. Lúcia, e se te descobrem?, sussurrei para mim mesma. Apesar da insegurança, mantive a coragem. Ninguém há de me descobrir, afirmei convicta. Fácil falar, na hora, porém, o coração acelera. Quando aceitei o primeiro que se aproximou, acho que fiquei verde. Ainda bem que estava escuro e ele não notou. Depois relaxei. Você é linda, tão jovem, o rapaz falou. Arnaldo, encantado. Oh, estupefata, ainda se usa essa palavra, encantado! Maria Zilda, revidei. Meu verdadeiro nome é apenas para a verdadeira face. Dançamos, bebemos cerveja, conversamos. Mas na hora agá, naquela horinha em que qualquer homem diz que ficaríamos melhor num lugar mais tranquilo, minhas pernas tremeram. Pedi licença para ir ao toalete. Não voltei. Escapei através do escuro e estreito salão em busca de outros namorados. Queria apenas me divertir. Não preciso dizer que, com o meu corpo mignon, levei todos à loucura, me passei por alguém da mesma idade deles. Fugi já alta a madrugada. E dentro de um táxi. Não deixei que ninguém me seguisse.

Comecei achar ótima aquela vida. De aventura em aventura, mais me aperfeiçoava. A máscara tornava-se ainda mais sutil, e passou a ser a minha verdadeira face. Dali pra frente, comecei a namorar com os rapazes.

Quando digo namorar, todos já devem imaginar do que se trata. Depois das festas, acabava a noite na cama de um deles. Deixava que me tirasse toda a roupa. Mas tinha cuidado para não me tocar o rosto. O namorado podia beijar-me; eu pedia, no entanto, que fosse delicado, porque minha pele sempre fora muito sensível.

Chamaram-me de Priscila, Amália, Débora, Ana Júlia e Maria Zilda. Esse último é o que perdura, já que passei a frequentar o mesmo círculo. É tão interessante conviver com as meninas de menos de vinte anos de idade, viver suas inquietações, ansiedades e seus problemas como se fosse uma delas. Também é interessante falar a língua delas. E ninguém desconfia quem sou. Transformei-me numa boa atriz.

Acabei, como muitas, arranjando um namorado fixo. Ele tem uma moto. Leva-me na garupa para todo lado. No fim da noite, trepamos de modo selvagem no seu quarto. Digo "quarto" porque ele mora com os pais.

Em uma das últimas saídas, bebemos muito. Nosso porre foi tamanho, que achei melhor não dormir com ele. Como já estávamos juntos fazia quase quinze horas, pela manhã minha cara estaria por demais amassada. Ele fez tudo para que eu ficasse. Transarmos por quase duas horas, todas as posições, toda a energia. Quando ele adormeceu (sim, nisso sou mais resistente, é comum os homens adormecerem primeiro) saí à cata das minhas roupas. Mas... decepção, não as encontrei. Provavelmente ele as escondera para que eu tivesse de ficar. Mas teimosa do jeito que sou, parti nua mesmo.

No dia seguinte, veio a reclamação, e na voz da mãe dele: “Filho, o síndico falou que sua namorada saiu nua do prédio na noite passada!”

Apesar do escândalo, nem me aborreci. Melhor ser apanhada nua por aí do que desmascarada pelo namorado.

quinta-feira, julho 04, 2013

Se houvesse sol - 14 - final

O salão de chá do Hotel Everest era o mesmo em que havíamos tomado café naquele fim de madrugada. Mário chegou antes de mim e sei que esteve olhando em todas as direções a me procurar. Quando entrei, fazia quinze minutos que chegara. Eram quatro horas da tarde. Eu vestia um vestido reto, de cor negra, meus olhos estavam cobertos por óculos escuros. Avistei o rapaz e fui até ele.

“Não vai tirar os óculos?”, perguntou.

“Boa tarde”, ofereci-lhe o rosto.

Levantou-se e me beijou. Sentei a seguir, mas ele ainda permaneceu alguns segundos em pé, numa situação um tanto embaraçosa. Ele preferia não estar ali, preferia não ter o que dizer. Gostava de mim, apreciava-me o corpo, apesar de havermos estado juntos apenas duas vezes, uma na praia, outra naquele fim de madrugada.

“Não é preciso que você perca seu tempo”, falei antes de tirar os óculos.

“Você já sabe, então. Como descobriu?”

“Quase ao acaso.”

“Acaso? Você me contratou para essa investigação. Perdi três semanas. Conferi todos os lugares onde ele andou, falei com diversas pessoas com quem esteve, muitas me olharam com desconfiança, cheguei a ser seguido por dois homens, tenho trajetos, mapas, quartos onde ele morou, o croqui de um casarão da Monsenhor Félix, rua do centro velho, entrevistei a proprietária, falei que era repórter de um grande jornal...”

“Peço desculpas se fiz você andar por aí de modo desnecessário.”

“Desnecessário?”

“Vou pagar a você, não se preocupe, farei tudo conforme combinamos.”

“Dinheiro não é problema. Fiz o trabalho por amor.”

“Amor? Você sabe o que é amor?”

“Acho que você me pediu essa investigação por amor a alguém. Descobri quando comecei a andar em busca de Daniel. Percebi que você o amava.”

“Eu nunca o amei.”

“Por quê, então, toda essa busca? Estamos brincando de detetives?”

“Não é isso”, respondi, “não se trata de uma brincadeira.” Tirei o jornal da bolsa onde havia a notícia de que um rapaz se atirara do décimo segundo andar de um prédio do centro do Rio, no dia anterior. Era Daniel.

Mário, com ligeiro movimento de cabeça, concordou. Permanecemos em silêncio por alguns segundos.

“O que você vai fazer agora?”, ele quis saber.

“Ainda não sei?”

“Sua vida é boa, você tem alternativas, talvez encontre motivos para escrever mais um bom romance.”

“Não fale besteira”, afirmei severa, “isso não é um caso comercial.”

“Vamos comer algo, vamos conversar. Você é uma pessoa experiente, já superou muitos problemas durante a vida”, falava com seriedade duvidosa para alguém tão jovem.

“A morte é impossível de ser superada. Há apenas a conformação, o esmorecimento da lembrança enquanto outras coisas começam a vir à flor da pele.”

“Você não quer saber o motivo?”

“E você por acaso o tem?”

“Tenho algumas conjecturas”, falou.

“Daniel era um homem melancólico. Daí é possível esperar qualquer coisa, não é preciso saber muito.”

“Acho que estava sendo perseguido, alguém o cobrava alguma coisa. Não sei se dinheiro, não sei se se envolveu com drogas.”

“Sempre a mesma desculpa quando um caso se torna insolúvel: dinheiro, dívidas, drogas.”

“Minhas investigações apontam nessa direção.”

“Suas investigações apontam, apontam, há muitas coisas que apontam, você ainda não sabe nada sobre a vida.”

“Então por que me contratou?”

Suspirei, levei uma das  mãos ao rosto, uma garçonete alheia esperava que fizéssemos os pedidos. Mário fez sinal que esperasse.

“Você é um monstro”, afirmou com o dedo em riste para mim.

“Monstro?”, pus-me a rir. A garçonete já não pôde mostrar-se tão alheia, chegou a piscar os olhos e virar-se para a direita.

“Diga por que sou um monstro.”

“Não sei, mas acho você muito ardilosa.”

“Houve uma época em que eu fui ingênua, mas depois...”

“Fala a verdade, você queria motivos para uma boa história”, afirmou.

“Achas que sou tão insensível?”

“Acho, mas sei que não adianta conversarmos sobre isso agora. Escute, ele já se foi, o que podemos fazer é reclamar o corpo e enterrá-lo. Depois resolvemos o que vamos fazer de nossas vidas.” Sua sugestão pareceu-me sensata.

Coloquei novamente os óculos, virei-me para a garçonete e pedi um café puro, sem açúcar. Mário quis o seu com um pouco de leite.

Lá fora a tarde avançava, um fim de dia útil. Descendo a Maria Quitéria chegava-se à praia.  E sempre havia alguém na praia, sobretudo se houvesse sol.


Ele passou na faixa de areia entre o mar, que explodia em rendas desfiadas, e a pequena falésia. Era alto e jovem. Eu lia uma revista e ao mesmo tempo tentava dar conta do que acontecia à minha volta. Havia pouca gente na praia, um guarda-sol ou outro, a maioria eram mulheres sozinhas ou acompanhando crianças. Continuou o seu caminho. Não era uma caminhada de esportista ou de alguém interessado em andar para melhorar a condição física, era alguém que andava por andar, talvez por achar enfadonho permanecer no mesmo lugar. Parecia absorto. Lembro-me ainda que voltou o rosto para o mar uma ou duas vezes, depois desapareceu. Momentos mais tarde, fez o caminho de volta. Suas passadas eram como as da ida. Notou então que eu o olhava. Mesmo que continuasse acompanhando sua marcha, sei que jamais viria falar comigo. Era o jeito dele.

terça-feira, julho 02, 2013

Se houvesse sol - 13

Joel chegou de viagem numa manhã de quinta-feira. Sei que faz tempo não falo nele. Preferi relatar minhas aventuras no Rio de Janeiro, contar sobre as pessoas que conheci e sobre a procura que empreendi para tentar encontrar Daniel. Joel veio da África do Sul. Antes esteve em Singapura. O mundo do petróleo (e de tudo que diz respeito à sua profissão) o fascina. Fui esperá-lo no aeroporto. Ao chegar beijou-me eufórico demostrando toda sua alegria por eu estar em seus braços. Não se preocupou se causaria constrangimento a outras pessoas. Disse que cenas assim são comuns em qualquer aeroporto mundo afora. Sua saudade era sincera. Ficamos abraçados durante muito tempo.

No trajeto de volta a casa, enquanto eu dirigia, não cansou de me acariciar a perna direita, mas sem malícia. Falou palavras amáveis e até recitou um poema. Disse que estava ansioso porque queria me mostrar os presentes que trazia para mim. Ficaria comigo pelo menos um mês inteiro, e que eu escolhesse um lugar para passarmos uma temporada. Estava pronto para satisfazer todos os meus desejos.

Ao entrar em nosso apartamento, mostrou-se ainda mais amável. Admirou-se com os objetos novos que eu comprara durante a sua ausência, olhou demoradamente a paisagem através da janela da sala. Viu o espelho d’água da Lagoa Rodrigo de Freitas e mencionou que não via a hora de caminhar comigo pela orla.

Abraçamo-nos e nos beijamos muitas vezes. Ele, pouco a pouco, despiu-me Depois tirou sua roupa e namoramos quase pela casa toda. Acabamos deitados um sobre o outro, em cima do tapete, na sala.

Suas malas ainda ficaram fechadas por muito tempo. Repousamos ainda abraçados, nossos olhos fechados, experimentávamos o calor de nossos corpos. Vez ou outra nossas mãos trocadas deslizavam sobre a pele do outro, procurando reconhecer cada milímetro de corpo.

Naquela tarde, fomos de poucas palavras, ouvíamos o arfar de nossos pulmões. Eu pensava, como é bom o amor. Outro pensamento que não me abandonava: todos nós somos infinitamente sós, mesmo quando estamos juntos.

À noite, saímos para jantar. Joel queria sentir o ar do Rio após tanto tempo longe. Desejava também passear pela Zona Sul, ao meu lado. Escolhemos o restaurante de um hotel, na Delfim Moreira, de onde se podia apreciar uma das vistas mais bonitas da cidade.

“Como é difícil viver longe deste lugar”, ele disse, “por mais que gostemos da nossa profissão, sempre sentimos falta de alguma coisa. Quando olhamos o Rio e as pessoas que amamos, tudo se completa.”

“Que bom você estar falando assim, espero que agora fique por perto.”

“Esse é o problema, um engenheiro de petróleo nunca é dono de sua vida.”

“Um médico seria?”, não queria alimentar a polêmica, mas acabei dando minha pincelada.

“Um médico pode abrir um consultório aqui na cidade e não precisa deixá-la, não é mesmo?”

“Fingi aceitar o argumento. Enquanto isso, o garçom nos trazia uma garrafa de vinho.”

Brindamos e saboreamos os primeiros goles. Depois Joel aproximou seu rosto e me beijou.

“Estava morrendo de saudade”, falei.

“Jura?”

“Juro. Você sabe que tenho minha vida profissional, que conheço muitas pessoas, mas você é sempre muito especial para mim.”

“Conversei muito com jornalistas na África do Sul, entre eles um escritor americano. Estão alarmados com o aumento da violência em alguns países.”

“A violência existe em qualquer lugar do mundo.”

“Mas os escritores estão preocupados com essa questão”, acrescentou.

Não quis incentivar a continuação daquele assunto. Era nossa primeira noite juntos depois de tanto tempo. Melhor seria comer, beber, namorar, apreciar a bela vista, usufruir a noite de temperatura amena. As ações das companhias de petróleo nas bolsas de valores mundo afora provocam altas e baixas que afetam a vida das pessoas, ora insuflam a riqueza em alguns lugares, ora provocam pobreza e destruição em outros. Portanto, uma observação de Joel exterior ao tecnicismo que normalmente rege o seu pensamento causou-me surpresa, mas mesmo assim eu não quis levar a conversa adiante, Não combinava com o momento.

“Aonde vamos viajar? Dentro do nosso país ou vamos para o exterior?”, perguntei.

“Você escolhe, meu amor.”

“Prefiro aqui mesmo, pertinho, três, quatro, no máximo cinco horas de automóvel. Nada de avião nem aeroportos, você deve estar cansado.”

“Ótimo’, disse ele, “também prefiro por aqui, você adivinhou o meu pensamento.”

“Há estâncias rústicas, ou lugares onde podemos curtir o frio, já que aqui no Rio quase nunca se pode vestir um casaco.”

“Ok, que tal Campos do Jordão?”, sugeriu.

“Isso, vai ser ótimo”, beijei-o depois de depositar o copo de vinho sobre a mesa.

Joel quis saber sobre o meu texto para o New Yorker.

“Acho que você não vai gostar. O texto trata de um tema que sempre me preocupou, mas não quero falar sobre ele. É melhor que você o leia.”

“Você não pode falar sobre o tema, pelo menos?”

“É sobre um episódio que testemunhei quando vivi em M. Você não está acostumado a me ver tratar de temas sociais.”

“Temas sociais?”

“Isso mesmo. Há pobreza, abandono, drogas e até homossexualismo. Mas o que predomina mesmo é a pobreza.”

“Será que eles lá no New Yorker vão publicar um texto assim? Acho que preferem matérias sobre relacionamento”, falou.

“Não sei. Mas eles que decidam. Caso não publiquem, quem sairá perdendo serão eles.”

“Você sempre escreve sobre amor e erotismo. Escreve agora sobre temas sociais e políticos?”

“Todo texto é político, mesmo o texto sobre sexo. O corpo é político”, falei, apesar de saber o lugar comum das expressões .

Som de um saxofone espalhou-se pelo ambiente. Era o começo do show de jazz que o restaurante de hotel costuma oferecer aos frequentadores uma vez na semana. Ao mesmo tempo, o garçom chegava com o prato que eu pedira, na verdade uma entrada. Havia frios, pastas, pães e queijo brie.

A música, sempre de qualidade, foi apreciada por todos os presentes. Havia alguém que tocava um violoncelo, outro mostrava-se hábil no teclado, o mais discreto era o baterista.

Joel aproveitou o momento para dar-me dois beijos. Depois pegou a taça e bebeu mais um gole de vinho.

Mais tarde, ainda no restaurante, começou a contar uma conversa que tivera com dois amigos enquanto estivera no exterior.

“Um deles disse que casamento não vale a pena, acha melhor ter uma amante. Ele acha que no casamento o amor não pode existir em alta temperatura.”

“Alta temperatura?”, fingi não entender.

“Você entende mais de metáforas do que eu. Esse meu amigo se chama Roberto. Já foi casado duas vezes. Agora não quer mais saber de casamento, diz que prefere ser amante de alguma mulher, encontrá-la uma ou duas vezes na semana.”

“Qual a idade dele?”, perguntei.

“Uns quarenta e poucos?”

“Então, ele já decidiu, depois dos quarenta é difícil alguém mudar de ideia.”

“Acho que Roberto sempre foi assim, um paquerador inveterado. Diz que é melhor sair com uma mulher somente nos momentos em que ela consegue enganar o marido. Assim ele não se aborrece, e o amor dura mais.”

“Não sei se isso é bom, não. A pessoa tem que viver em função da outra, esperar que sua amante possa encontrá-lo.”

“Eu disse isso, mas ele respondeu: – quando isso acontece, saio sozinho e arranjo logo outra, ou ao menos uma para aquela noite.”

“E você, o que acha disso?”, provoquei.

“Oh, meu amor, se eu fosse partidário dessa teoria não teria me casado com você.”

“O que ele faz se não consegue ninguém, por exemplo, numa noite?”

“Diz que não liga, bebe uma bebida ou outra, bate papo com algum amigo, ou mesmo com alguém que conheceu naquele momento; depois, quando se sente cansado, vai embora dormir. Ele é muito simpático. Caso saia sozinho, logo arranja companhia. Conhece pessoas em todos os lugares a que vai.”

“Se ele se sente feliz assim, ótimo. Há pessoas que preferem ficar sozinhas. Há outras a quem a solidão atemoriza. Esse seu amigo parece ter essa questão bem resolvida.”

“Há homens que, quando sós, procuram prostitutas.”

“Mas essas mulheres não sabem conversar, não possuem nível cultural elevado”, falei.

“Isso é verdade. Mas quem as procura também não está interessado nessas coisas.”

“Não sei, mas caso eu fosse homem, acho que não me acostumaria com alguém que não tivesse uma boa conversa. Aproveitar o corpo é bom, mas não o suficiente. A não ser que, fora dali, se tenha outra pessoa com quem se possa travar um bom diálogo.”

“Você é uma escritora. Nunca conversei com você sobre essa questão. Mas acho que os escritores criam tantos personagens porque querem ter um mundo à sua volta.”

“Não é bem assim. Muita gente vem conversar comigo sobre isso, principalmente em entrevistas. Mas ninguém pensa que todos os personagens são muito sós e o escritor partilha essa solidão. Na verdade, a solidão de cada personagem é uma extensão da solidão do autor.”

“Jura?”, Joel parecia surpreso.

“Preciso jurar?”

“Nunca pensei que fosse assim.”

“O escritor carrega consigo sua solidão e a solidão de todos os personagens. Por mais que cada personagem diga que não é só, isso não é verdade. Assim como o homem de carne e osso, eles também são profundamente sós.”

“É bom ouvir você falar essas coisas, nunca tinha pensado sobre isso.”

“É bom a gente esquecer um pouco esse assunto, e aproveitar a noite”, falei.

O pequeno grupo voltara ao palco e tocava os primeiros acordes. Joel pegou a garrafa de vinho, colocou um pouco para mim e para si próprio. Aproximei-me de seu rosto e o beijei. Ele retribuiu. Ao redor, as pessoas pareciam gostar da música. Ninguém era só, naquela hora. A solidão sobrava apenas para o escritor. Veio-me à mente Rulfo, o escritor mexicano. A vida inteira sempre a melhorar os dois únicos livros que publicara. Acabaram por se tornar clássicos. Certa vez, numa entrevista, afirmou que escrevia para esquecer a solidão.

No dia seguinte, quinta feira, como Joel disse que precisava comprar roupas, fomos ao Shopping Leblon. Andamos por todos os andares e visitamos várias lojas. Queria a minha ajuda para escolher camisas e calças para ele. Lembrei minha amiga de adolescência que viera de longe para assistir a espetáculos teatrais no Rio. Eu encontrara com ela no mesmo shopping, só que já fazia muito tempo que ela havia partido.

Após as compras, paramos numa cafeteria. Pedimos dois expressos, uma água mineral com gás e um pedaço de bolo de laranja. Pedi à garçonete dois garfos, queria dividir o bolo com Joel. Foi engraçado, eu comia um pedaço e dava outro a ele; comia mais um e colocava outro na boquinha dele. Caímos na gargalhada várias vezes sem nos importar com as pessoas que passavam. Algumas nos olhavam achando aquilo muito divertido; outras não nos davam atenção alguma.

Nos Shoppings, há empregados para tudo. Reparei, enquanto ainda tomávamos café, uma ou duas funcionárias da conservação. Elas portavam um instrumento de limpeza que era seguro por um cabo, semelhante a uma vassoura, mas na extremidade sua ponta era fina e possuía uma espécie de esfregão. Elas olhavam o chão e passavam a tal ponta onde havia riscos ou algum objeto grudado. Uma delas aproximou-se de um homem de terno – tudo levava a crer que ele fosse um dos seguranças do local –, sorriu e começou a conversar com ele. O homem correspondeu ao sorriso e à conversa. Imaginei a relação que os dois teriam, ou poderiam vir a ter.

“Viu a Rosane por aí?”, perguntou a mulher.

“Hoje, ainda não.”

“Preciso falar com ela.”

“Se ela aparecer por aqui, aviso.”

Os dois deram alguns passos na direção da livraria.

“E aquele dia, hein, foi muito bom”, falou a mulher.

“Você gostou mesmo, não?”

“Melhor do que a gente ficar se arriscando por aqui.”

“Não há risco nenhum, mulher, sei onde ficam todas as câmeras. Elas não podem registrar a gente.”

“Fala sério, Arnaldo, foi melhor o lugar pra onde tu me levou, por isso toquei no assunto.”

“Se você gostou, melhor; vamos então sempre lá.”

“Sei que você gosta de me namorar em qualquer lugar. Diz que aqui é mais gostoso porque a gente não perde tempo.”

“Isso é verdade, você sabe. Tem vários lugares pra gente se abraçar. Pode ter certeza que a câmera não pega.”

“Mas, Arnaldo, prefiro numa cama, é mais confortável.”

“Tá certo, mulher, tá certo, vamos passar a ir sempre lá.”

“Vou andando, tenho que trabalhar.”

“Até mais, Isaura.”

Olhei para Joel. Ele estava batucando sobre a mesa com um dos dedos, acho que cantarolava em silêncio.

“Vamos?”, sugeri.

“Espere uma pouco, acho que vem o pianista aí”, apontou para o piano de calda que se localizava numa parte do salão.

“Será que haverá concerto às onze e trinta da manhã?”

“Quem sabe, aqui é Ipanema, ou Leblon, nem sei mais, tudo pode acontecer.”

Ri com ele, espichei o pescoço e dei-lhe um beijo.

Joel continuou a rir. Depois, ainda chamou a garçonete para pedir mais um café.

“Você não sabe como essas coisas de relacionamento amoroso podem ser engraçadas”, falou, “há uma história interessante contada por um amigo quando esteve num desses países asiáticos, não sei se na China, Índia, ou mesmo na Coreia, pode até ter acontecido em Singapura. Mas o que faz rir é o conteúdo da história. É sobre uma mulher que ficou verde.”

“Deve ser mentira, isso não é possível”, atalhei.

“Não discuto a veracidade, mas que é divertido não resta dúvida.”

“Então, conta, vai”, incentivei.

“Aconteceu com uma mulher ocidental. Era uma prostituta. Sabe como são as prostitutas em países asiáticos, não? Você escreve boas histórias sobre esses temas, deve pesquisar bem. Existem máfias que as controlam. E são levadas de países pobres, vivem uma boa vida por lá, mas precisam dar lucros a seus patrões. Essa era assim, fazia tudo direitinho. Até que chegou um homem de Angola. Ele possuía um vício muito delicado. Gostava que a mulher comesse chocolates enquanto trepava com ele.”

“Ela comeu chocolates e aí ficou verde?”, interrompi divertida.

“Não, espere, não foi bem assim, deixa eu contar, também gosto de narrar. Quando estava no país, o tal angolano saía com ela todos os dias. E pagava mais que os outros. Mas pedia para ela comer o chocolate que ele mesmo levava. Para ela não havia problema, acho que chegava a exclamar: – a  que gostosura!, e comia mais e mais. Até que ela começou a engordar. Seus chefes a chamaram e quiseram saber o motivo, pois já começavam a ter prejuízo. Ela não quis complicar a vida do angolano, disse apenas que ela mesma resolvera comer demais ultimamente. Eles, então, começaram a vigiá-la a todo momento. Pagaram para que fizesse exercícios, nutricionista e coisa e tal. Mas a mulher não emagrecia. Resolveram a partir daí investigar todos os homens com quem ela fazia programa. Descobriram, enfim, os chocolates do angolano. Foi então que, para não alterar a rotina, nem os ganhos que eles tinham com a frequência do homem, resolveram dar o chocolate que ele devia levar. Era um chocolate dietético. Daí em diante, a mulher começou a ficar verde.”

“Ela era alérgica ao chocolate dietético”, frisei.

“Isso, alérgica.”

“E como fizeram depois?”

“Acharam melhor mandar o angolano de volta para a África do que perder a mulher. Parece que de início ela sofreu, porque chegou a se apaixonar por ele, ou pelos chocolates, não sei bem, mas depois acostumou e voltou a ser o que era."

“Boa a história”, falei, “dá um bom conto, caso caia nas mãos de alguém com talento.”

“Entrego-a a ti, minha talentosa esposa”, e deu-me mais um beijo. Segurou então a pequena xícara que já o esperava fazia alguns minutos e sorveu o café.

Da nossa viagem, o que tenho a relatar é que vivemos dias maravilhosos. Passeamos por todos os locais turísticos da cidade, jantamos em vários restaurantes, comemos fondue e tomamos diversos vinhos. Escritores e escritoras normalmente não são reconhecidos, poucos são celebridades. Apesar de ver uma mulher com um livro meu nas mãos, hospedada no mesmo hotel em que estávamos, não fui reconhecida por ela. Até chegamos a conversar. Quando a encontrei em outro momento, ela lia aquele conto da mulher que se separa do marido porque ele quer fazer sexo com ela várias vezes por dia. Percebi que a mulher ria muito. Talvez em pensamento dissesse: “ai se fosse o meu marido, que beleza.” Alguns têm demais, outros de menos. Também é difícil encontrar aqueles que dão e que recebem na medida certa.