A vida fora de casa é completamente outra. Foi isso que
Arlete pensou às duas da madrugada, numa estradinha lateral, que margeava o
quarteirão onde ficava a casa do homem com quem estava saindo. Dentro de casa
há o aconchego, chegou a refletir, há a privacidade. Pode-se, sim, sentir o
arrepio entre quatro paredes, a pele lisa, o sopro quente do verão vindo de uma
das janelas abertas, mas ao lado fora... Ela olhou o relógio. Sim, usava um
relógio. Apesar de tudo, tinha o pulso coberto. Trazia também a bolsa a
tiracolo, e ia sobre uma sandália baixa. Isso era outra coisa que a preocupava.
Por que não saíra de casa com uma das tantas sandálias de salto? Sempre gostava de mostrar-se elegante e, naquele momento, saltos altos
ajudariam muito. Dentro de casa houvera uma brincadeira. Do mesmo modo que se
portava na esquina de duas ruas desertas, também estacara numa posição sedutora, na confluência de duas paredes da sala. Mas estivera entre paredes,
apenas o seu homem a se encantar. Aliás, ela também encantara-se consigo, e
acontecera aquela sensação incontrolável. Lembrou-se das amigas e das festas.
Eles, os homens, adoram uma brincadeira depois que bebem, elas comentavam. Eles dizem uma mulher nua é adorável, e vocês encantam, apesar de tudo.
Apesar de quê?, ela agora se perguntava, pois não era mulher como as outras,
como as atrizes dos filmes, da TV? Uma mulher bonita jamais fica em
dificuldades, sempre haverá quem lhe estenda um manto bem cortado, um vestido
de desfile, e gostará de vê-la passear destemida. Arlete sabia que não é bom mostrar-se por inteira. Existe um jeito de disfarçar algo que poderia tornar-se
demais. Ereta, a bolsa, a sandália, tudo em harmonia. E já eram duas e quinze
da madrugada. Quem iria levá-la? Não se preocupe, dissera ele, tudo está
combinado em todos os detalhes. Mas não existe chance de algo dar errado?, ela
perguntara. Você quer que algo dê errado?, respondera ele com outra pergunta.
Não sei se a pessoa que vai parar e se aproximar será a do combinado, ela
temia. Não é sua função levantar essas questões, você ganhou para isso, está
lucrando, portanto cumpra o seu papel, a voz do homem soara uma ordem. Ela nada
mais dissera. O homem a conduzira de automóvel até a confluência das duas ruas e a fizera
saltar. Já passavam vinte minutos. Maria Rita. Ela, Arlete, lembrou-se de Maria
Rita. Maria Rita nada temia, gostava mesmo era de dinheiro. Caso o depósito
estivesse na conta, cumpria aquilo para que fora contratada. E boca fechada.
Existe um jeitinho, um disfarce, algo que é do seu próprio corpo, ela, Maria
Rita, afirmara, ninguém nota, e as mulheres adoram andar nuas, ainda acrescentara.
Nunca nada de mal lhe acontecera, nem no dia que fora descoberta com aquele
tecido vazado, que se usa em meias arrastão, tecido que lhe contornava o corpo inteiro, pernas,
tronco, braços e pescoço, tudo traçado pela renda preta transparente. Maria Rita nada
comentou, apenas contabilizou o ganho e dormiu tranquila, sabia que tudo se
resolveria. Mas Arlete não era Maria Rita, e alguma preocupação não lhe deixava
sossegada. Até que veio o táxi, parou e piscou os faróis. Por que não se aproximava?,
bastaria abrir a porta e entrar. Ter que caminhar mais vinte metros... Ou o
motorista queria vê-la desfilar. Isso, devia gostar de ver uma mulher
desfilando. E tanto mais nua! Será que tinha certeza de que ela era uma mulher
mesmo? Há muitas pessoas fofoqueiras por aí. De vestido, diria que apontava, o
corte, uma inovação. Mas só a pele e tudo por um triz, ainda tendo de fazer
movimentos... Ah, outra coisa, não podia transpirar. A transpiração colocaria
tudo a perder. O líquido que serve como adesivo é do próprio corpo, um segredo
que Maria Rita lhe revelara. Mas o líquido não pode entrar em conflito com outras
secreções. Ainda havia aquela história do namorado que esfregou um creme ao redor das duas coxas de Arlete. Esse creme vai lhe provocar, e muito. E provocou, provocou
uma... Não, isso não, mas neutralizou o adesivo por boas doze horas. Amanhã
tenho um desfile, Arlete pensou, nada de cremes, tenho que estar perfeita, as
impropriedades bem escondidas, ou disfarçadas, como sempre. Por que os homens gostam de nos colocar em perigo?, falou a si quando percebeu cintilâncias.
Estrelas também tremeluzem abaixo das nuvens. Correu e entrou no táxi. Após
sentar-se, sentiu umidade no acento. O creme? Arlete suspirou pela renda arrastão de Maria Rita.
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