terça-feira, março 17, 2015

Duas noites de loucura

Estou diante da porta do quarto dele; o corredor, escuro; atrás das outras portas, o silêncio. Apenas eu em meio às sombras da meia noite e meia. Dormem os outros os hóspedes. Nenhum reflexo de luz, nenhuma réstia a escorrer por baixo das portas. Uma noite plena após um dia de trabalho árduo. Mas para que entendas, interessado leitor, volto ao começo desse romance fugaz. Ou, caso esteja cometendo algum tipo de exagero ao nomeá-lo assim, passo a chamá-lo lúbrico atrair de corpos. Como a fruta da oliveira que banhada em óleo próprio, virgem e natural, nos desliza garganta abaixo. Mas sejas rápido na leitura, não te deixes enfeitiçar por metáforas que tentam fazer saltar tua pele e abrir teus poros... Do contrário, serei surpreendida nua por algum hóspede inesperado. E poderei cair em mãos estranhas.

Na primeira vez em que me aventurei ao seu quarto, vestia uma camiseta comprida, ia quase até os joelhos. Mas, agora, minhas frágeis asas de borboleta e o odor adocicado que emano do corpo (aquele odor que captura os homens) não me permitem vesti-la. Boa desculpa para não dizer que ele ma tomou. Deixei-a no seu quarto após a noite de amor. Queria continuar a sentir o meu cheiro após o amanhecer. Ao menos foi o que entendi ante o seu olhar insistente, olhar que também me convidava à noite seguinte. Saí rápida, fechei a porta em silêncio e corri ao meu quarto. Ainda bem que deixara a porta destravada, a chave por dentro. Talvez a perdesse no afã do amor, talvez não tivesse para onde voltar... Enlouqueço enquanto amo. Quem sabe, melhor assim. Mas a verdade é que estou de volta a ele. Basta o dobrar da maçaneta e dois passos. Adiante, o abismo. Talvez o amor seja esta tênue sombra do outro a nos tocar momentaneamente o corpo, a ameaçar a nos deixar nua em terra estrangeira. Sem roupa e sem linguagem. Não quero de volta a camiseta. É o ponto claro em meio à escuridão da madrugada. E é a minha última noite.

Viajo toda semana a M, onde trabalho na área de saúde. Sempre a mesma vida, sempre a rotina do viajante. A pousada é de uma velha conhecida. De duas semana para cá, aconteceu algo que me deixou de início excitada, depois inteiramente louca. É lógico que consegui, embora a duras penas, manter a discrição. Ao menos até ontem. Um homem especial se pôs a me olhar. Trata-se de um homem de poucas palavras. Como chegar a ele?, pensei. Não posso dar a primeira carta. Ainda bem que existe uma padaria por perto. Ele estava lá. Comia um sanduíche de presunto. E olha que prefiro queijo. Mas tudo bem, era ele quem comia. Seus olhos me penetraram mais fortes do que qualquer palavra, qualquer frase, qualquer verso de poeta antigo. Não chegou a dizer o que o traz à cidade, ou o que o levou à tal pousada. Mas ouvi com delicadeza o que os seus olhos diziam-me. Permaneci ao seu lado. Éramos dois velhos amigos que já não precisam de palavras. Bebemos do mesmo suco. Voltamos juntos. Entramos e fomos para os nossos quartos. Duas horas depois, ouço dois toques à porta. Abro. Ninguém. Fecho a porta. Não demora e agora três toques. Abro. Ninguém. Ou melhor, um cartão com o número 23. Deixo correr os ponteiros do relógio. Passa uma hora. Ele deve estar pensando que não vou. Mais trinta minutos e corro até o seu quarto. Onde o vinte e três? O que acontecerá caso eu me engane de porta? Alguém abre a porta. É ele. O olhar pleno. Mergulho nos seus braços, atravesso o seu corpo. Muda. Pra que as palavras? quase chego a sussurrar. Consigo, porém, resistir à emissão de qualquer voz. Apenas os guinchos do sexo, os rasgos de amor.

Estou de volta. Muda. Melhor apenas os corpos a se tocaram, a exalarem perfumes ainda que dúbios. Nada sabemos um do outro. Nem mesmo quem nos espera em nossas cidades de origem.

Ao viajante o campo é sempre neutro, a pele sempre lisa. E apraz a roçar num canto da memória duas noites de loucura.

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