Jessé balançou os dois últimos caroços na concha da mão e
lançou-os em dado. Era noite, e o jogo estava feito. Eliane arrepiou-se, ela fazia
parte da aposta. Como flertava com o perigo, o friozinho na barriga dava-lhe
prazer. Ao abrir uma das mãos o homem, com um dos cantos da boca, lançou-lhe um
sorriso de escárnio, sabia que ainda não seria sua a vitória. A mulher,
corajosa, tinha sorte, ele concordava. Jogador escolado, o mulato também sabia
que a sorte um dia escapa. Era só ter paciência que ela, a mulher, cairia de joelhos.
Pagou o que devia. Eliane sorriu. Muitos homens já haviam frequentado seu corpo
sem necessidade de lance de dados. Quanto a Jessé, tratava-se de um capricho,
queria prendê-lo. Ele era elegante, bonito, a pele brilhosa, o cabelo negro
farto e bem penteado. Um homem que não fora feito para qualquer garota. O jogo,
portanto, era a arma da mulher. Ela tinha consciência de que corria risco; a
sorte, como lera nos olhos de Jessé, não dura para sempre. Enquanto pudesse, no
entanto, arriscaria; era um modo de se valorizar, de criar no homem a cada dia o
desejo mais intenso. Talvez, assim, ele durasse ao seu lado mais tempo. Não
tinha ilusão, conhecia os homens Ao conseguir uma mulher, ao desarmá-la de seus
encantos, eles depressa vão à cata de outra, de novas experiências, que logo se
tornarão velhas. A roda continuava a girar. Eliane sabia que no fundo tudo era
ilusão.
Fazia três anos que percebera sua tendência para a sorte
no jogo. Um ex-namorado a convidara a um café numa cafeteria no centro de M.
Eliane aceitou. Os dois encontraram-se por volta das 16h00. O local era bonito.
Tomaram dois expressos e comeram duas fatias de bolo. Jonas pediu um pouco de
leite. Ela começou a contar sobre o casamento. Disse que estava muito feliz, o
marido era companheiro e atencioso. Ressaltou a palavra companheiro duas vezes.
O homem não deixou escapar as palavras de Eliane. Como já conhecia a mulher,
desconfiava de algumas das histórias contadas por ela. Quando já estavam à mesa
por mais de trinta minutos, perdurou um profundo silêncio entre os dois. Ela
aproveitou para olhar através do vidro o trânsito que era intenso na rua
defronte. Era possível avistar as árvores que se enfileiravam no outro extremo
da avenida formando um pequeno parque. A mulher sorriu, lembrou que já passeara
naquele local tarde da noite com o homem que estava à sua frente. Voltou o
rosto a ele e continuou com o ar de alegria que o momento permitia. Eu e meu
marido somos apenas companheiros, queria dizer isso a você, tocou no assunto
novamente; não fazemos sexo, entende?, somos apenas amigos, ajudamos um ao
outro. Jonas franziu a testa. Amigos?, repetiu; estranho. Verdade, Eliane
retomou a palavra; ele tem um problema, não pode fazer sexo, nunca fizemos, mas
está bom assim, concluiu. Jura?, ainda perguntou Jonas. Eliane apenas moveu a
cabeça. Saíram da cafeteria e seguiram a rua Teixeira. Continuaram a conversar assuntos
esparsos, ora olhavam os carros, ora os prédios do lado onde caminhavam. Tenho
de ir até em casa, ela falou. Eliane tinha duas casas, uma na serra, outra na
cidade, referia-se à da cidade. Jonas não falou nada num primeiro momento,
depois continuou ao lado dela; mais adiante perguntou se podia acompanhá-la.
Pode sim, ela disse. Dobraram à direita numa transversal e seguiram até o Visconde,
um bairro de casas de dois andares. Antes margearam a rodoviária. Quero ver se
pego o de 17h30min, disse ela. Faltam ainda trinta minutos, replicou Jonas
olhando o celular. Ao chegarem à casa que Eliane ainda mantinha na cidade, ela
advertiu: está muito diferente da casa que você conheceu, dei alguns objetos,
levei todas as minhas roupas para a casa da serra, mantive apenas o sofá, a
cama e o fogão. Jonas assentiu, sabia que ela na verdade já não residia ali
havia pelo menos três anos. Ao chegar, seguiram o pequeno corredor do térreo
até entrarem no corpo da casa, subiram dois lances de escada. Eliane abriu a
porta, que nem estava trancada. Ambos entraram. Ela primeiro; ele, a seguir.
Não repara, pediu a mulher; está uma bagunça. Não faz mal, compreendo a
situação, redarguiu Jonas. Eliane procurou um objeto, mexeu em outro, olhou
para seu ex-namorado e sorriu. Lembra que você foi nua lá embaixo, certa vez?,
Jonas disse em voz baixa. Você não esquece isso, ela falou e sorriu, um sorriso
luminoso. Ele teve vontade de abraçá-la, mas nada falou. Ela continuou nos seus
afazeres. Eliane tocou de novo o nome do marido. Como falava nele... Disse que
ele lhe pedira algo, e que logo iria ligar para saber se conseguira. Jonas
permaneceu em silêncio. Eliane não era boba, sabia que o ex-namorado ainda lhe
desejava, fazia bem para sua autoestima, ela valorizava o momento. Pensou em perguntar a Jonas se queria que ela tirasse a roupa; ficaria nua e pediria para ele segurar seu vestido; ah, os homens, sempre ficam excitados com mulheres nuas. Nada mais, porém, apenas a nudez, a pele branquinha à mostra. Suspirou, tocou de leve no tecido que compunha o vestido. Ia aos joelhos. Ele não
gosta da casa da cidade, ela acrescentou referindo-se ao marido. Você está
precisando de dinheiro?, Jonas interveio. Dinheiro?, sempre a gente precisa,
por que a pergunta?, ela quis saber. Achei que você precisava; a licença, o
afastamento do trabalho, as dores que você sente, deve estar precisando, ele retrucou.
Sim, você acertou. Jonas abriu a pasta, tirou a carteira e de dentro dela puxou
duas notas de cem e duas de cinquenta, estendeu a mão com as notas a Eliane.
Como faço pra pagar?, ela perguntou. Não sei, faça como achar melhor, respondeu
ele. Não vou ter pra devolver tão cedo, ela continuou. Não faz mal, não estou
precisando agora, disse o ex-namorado, com uma entonação decisiva. Eliane
guardou o dinheiro. Bom, vamos embora. Acabou de falar e ouviu o telefone. É
ele, meu marido. Foi até a janela e conversou um pouco, prometeu que voltaria
logo, já havia resolvido tudo que programara. Não, não demoro não, ok?, um
beijo. Desligou. Ao olhar na direção onde
Jonas estava minutos antes, não encontrou ninguém. Ele partira sem que ela
notasse. Sentiu-se só. Jonas lhe fazia bem. Lembrou-se da vez em que foram
juntos à praia e ele sugerira que ela tirasse o biquíni e o entregasse a ele.
Ela, como sempre espevitada e querendo demonstrar determinação, desfez os laços e ficou nua.
Entregou o biquíni nas mãos de Jonas, deu um mergulho. Ao voltar à tona,
percebeu que ele havia desaparecido. Acontecia de novo. Jonas se fora. Ela, só, sem ninguém a socorrê-la... O que eu vou
fazer da minha vida?
Jessé balançou os dois últimos caroços na concha da mão e lançou-os em dado. O jogo estava feito. Era noite. Ele a incentivava, e ela sabia que tinha sorte. Ao menos por enquanto, sabia também que um dia perderia. Para a ocasião, já trazia pronta e ensaiada a frase. Jessé, sei que você está
louco por mim, pra isso nem precisava de aposta; se você tivesse falado antes, a
gente já transava fazia tempo; mas apenas isso, viu? A roda continuava a girar. Eliane sabia que no fundo tudo era ilusão.
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