quarta-feira, maio 31, 2017

Espião ou um pedacinho de pano

Não sei se tudo era uma brincadeira ou eu devia levar seu convite a sério. Fazia tempo que não falava com aquele homem nem tinha notícias suas, mas eis que me vem uma mensagem, depois um telefonema, a voz grave, eu imaginava o mesmo rosto segurando o telefone, apesar dos dez anos que haviam se passado. Qual o convite mesmo?, ainda perguntei, depois de ouvi-lo, de perder-me nos assuntos que trazia. O passeio?, mas a praia é deserta, você sabe, retruquei. Isso mesmo, uma praia deserta, como o próprio deserto, a diferença é que além das areias há o mar, ele disse. E como chegamos até lá?, perguntei. Viria me buscar. Desconfiei. Seu objetivo, tempos atrás, era me ter nos braços depois de me ver de biquíni na praia. Talvez fosse uma ideia ingênua, quase de criança, gostar de ver uma mulher de biquíni à beira-mar, depois deitar com ela. Ele sempre soube da minha vontade de andar nua, ou quase, pois existem lugares onde não se pode andar nua.

O dia marcado não tardou a chegar. O tempo passa rápido, ou melhor, tudo passa, e com os dias inteiros não acontece diferente. Sabia que o encontro também não tardaria, logo ficaria na lembrança como um ponto distante, algo quase irreconhecível, então era preciso fazer algumas marcas naquela data, agarrar-se às horas, quem sabe aos minutos. O modo de fazer isso talvez seja tentar algo diferente, algo que nos faça reter a respiração, ação que nos desperta o pensamento de que uma vida pode passar em um minuto, ou de que podemos transformar este mesmo minuto em vinte quatro horas, em uma semana, um mês, uma vida inteira.

E fomos ao mar, quero dizer, à praia. Não tardou com seu carro prateado. Engraçado, achei que o carro estrangeiro, não combinava com duas pessoas que vão ao litoral em trajes mínimos, no meu caso o biquíni e uma renda transparente a me ressaltar o corpo. Talvez um conversível fosse mais adequado. Mas onde há conversíveis no estado onde moramos nos dias de hoje? Não importa, o automóvel era confortável, tinha ar-condicionado, como todo veículo que se preza. Mas achei a refrigeração um tanto destoante. Não que não refrigerasse. O problema era esse, fazia frio demais, e eu de biquíni mínimo.

À praia tudo se recompôs. O guarda-sol, o próprio sol, quente, confortável e terrível. Uma praia só pode ser aproveitada se tiver um sol confortável e ao mesmo tempo terrível. Logo quis ficar nua. O biquíni, na verdade, revelava minha nudez, no entanto nada impedia que eu fosse além. Melhor ficar comportada, pelo menos no início. Todo início é tão bom, não se é capaz de adivinhar o que está por vir, o ar é revelador, como num sonho colorido, azul mesclado de alguns tons de rosa. Era assim o domingo.

Mas eu queria alguém para me espiar, isso mesmo, talvez a palavra certa seja espionar. Tão bom ter um amante e um espião. Alguém que ficou apenas com vontade e que não pode chegar onde o amante está naquele momento. Trocar os papéis? Perderia a graça. Bom o amante, ótimo o espião. Mas o bom espião não se deixa revelar. Ele vai utilizar o que colheu, para algo futuro, um espião sempre tem bons planos. Assim era o meu domingo, um domingo entre dois homens, um real, outro nem tanto.

E chegou a hora principal. Depois de mergulhos, de banhos de mar e de sol, de alguma bebida com gelo trazida por ele numa caixa de isopor, o tempo a escorrer como num conta-gotas acelerado, chegou a hora em que os corações batem na mesma cadência. A praia deserta e o homem a me roubar o biquíni, a me deixar nua. Lembrei-me do espião. Estava ele em algum canto, na certa não me perderia de vista, talvez tivesse o prazer de apenas me observar, chegar pertinho, mas invisível, respirar o meu perfume, tocar com a ponta dos dedos os tecido leves e transparentes que eu trouxera. O prazer do amante era maior, queria o meu corpo a todo custo, desejava o pleno prazer. Não é preciso explicar como um homem e uma mulher se amam numa praia deserta, onde não há a chance de alma viva além dos dois, basta a imaginação, uma imaginação que vai ao gosto de quem me acompanha na leitura, e com o direito de imaginar tudo de bom no universo do amor e do sexo. Havia, porém, o espião. Este eu não podia negar, não pode também o leitor, o espião era a erva daninha que ameaçava invadir, ameaçava apodrecer as sementes do amor (ou do sexo, não sei), sementes plantadas havia muito, mas que germinava sob o sol daquele dia quente de outono.

O dia terminou às cinco e trinta, o sol ainda vigoroso e eu nua, transpirando, como o próprio dia, como a perseverança das espumas lá das ondas. O dia transpirava, e era o perfume do amor que exalava de nossos corpos. Ainda aproveitei um último momento, os braços do homem a me envolver inteira. Como dois braços a envolver uma mulher inteira? Ele conseguiu, pelo menos durante breves segundos. Também naquele final de dia sorri e disse você é bobinho, tudo por uma mulher de biquíni numa praia deserta, tudo para deixá-la nua, talvez levá-la na lembrança, tudo para desviá-la de um outro possível que a observa a distância. Mas ele não entendeu a última frase. Há gosto para tudo, sentenciou. Pegamos nossos pertences. Afinal, o que nos pertence mesmo? Demorei a entrar no carro, estava quente o assento, muito quente, assim como eu, e tinha a refrigeração. Enfim, meu corpo quente contrabalançou o termômetro que pouco a pouco ia baixando. Eu ainda nua, sentada ao lado do homem grandalhão, realizado pelo amor. Fui pouco a pouco voltando ao meu dia, ao final de tarde, à vida comezinha de mulher admirada. O espião? Talvez num outro carro, distante, olhando-me e apreciando minha nudez, de binóculo, talvez segurando uma das peças do meu biquíni, substituto do meu corpo, do amor que eu lhe teria oferecido. Um pedacinho de pano, tudo que lhe restou. Não existe nada capaz de substituir o amor (ou o sexo, não sei). Ah, talvez, quem sabe, a imaginação. Eu nua, ao lado do motorista, que gostoso. Faz mais uma parada, amor, agora que está ficando escurinho.

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