domingo, janeiro 29, 2012

Americana

Prefiro sempre estar só, a paisagem me pertence. Às vezes algum barco navega rente à praia, são pescadores voltando após a madrugada no mar. Eles, porém, jamais incomodam. Fazem seu trabalho em silêncio. Desembarcam adiante, numa ponte que se estende da ponta da praia a um pedaço de areia. Carregam seus peixes em cestos de palha.

Nesta cidade, fora da temporada, são poucos os habitantes. Geralmente, de banhistas, apenas eu. Permaneço na praia boa parte da manhã.

Faz algumas semanas surgiu outra mulher. Também vinha para o banho de mar. De início, não se aproximou. Mas, depois, acho que por haver apenas nós duas na praia, cumprimentou-me. Após se apresentar, conversamos um pouco. Disse que ficaria na cidade durante um mês, estava a trabalho. Resumiu sua história.

“Escrevo para uma revista, viajo para experimentar novos lugares e descrever a beleza da paisagem. Às vezes narro alguma curiosidade, os costumes dos habitantes locais, outras vezes experimento acompanhá-los e descrever suas vidas. Muitos apreciam tais histórias e pedem mais detalhes.”

“Deve ser interessante a sua vida, sempre viajando, sempre lugares e pessoas diferentes”, falei.

“Lugares, sim; mas pessoas, nem sempre.”

“As pessoas são iguais, muda apenas a geografia?”, perguntei ao estranhar o que ela dissera.

“Quase sempre, sim; a natureza humana não é muito diferente.”

“Aqui, acho, você vai gostar de conhecer uma pessoa diferente, quero dizer, uma mulher.”

“Uma mulher? O que ela faz que a distingue das outras?”, perguntou curiosa.

“Ela chegou à cidade faz mais ou menos dois anos, sempre agiu de modo inaceitável para os nativos. Tanto é verdade, que a maioria das mulheres não fala com ela. Os homens, sim, estes a apreciam muito. Mas, apesar disso, procuram-se manter a distância. Não querem confusão com as esposas.”

“Ela é do tipo liberal, então”, afirmou com ar de pergunta.

“Não é apenas isso, ela sempre traz um ar misterioso. Na verdade, ninguém sabe ao certo do que vive ou o que faz. Às vezes, tal atitude provoca algum falatório, então surgem lendas a seu respeito.”

“Você disse que essa mulher não é daqui, sabe de onde veio?”

“Não sei, nunca perguntei. Mas não veio de cidade grande, não. Ela tem uns hábitos diferentes”, falei.

“Que hábitos são esses?”

“Quase não é vista no comércio local, dizem que pessoas estranhas frequentam sua casa, homens na maioria, e sempre diferentes. Algumas pessoas afirmam que já a viram nua na praia, de madrugada. Outras contam que ela é adepta de magia. Sabe como são os assuntos de cidade pequena. Sou a única que conseguiu manter certo diálogo com ela. Quando lhe contei o que ouvia a seu respeito, apenas riu.

“O que vocês conversam?”, quis saber.

“Ela tem muitos livros. Me levou até sua casa, mostrou e me ofereceu alguns, mas a gente aqui não é muito dada à leitura, você entende, não?”

“E o que tem os livros?”

“Acho que histórias, não sei, parece que textos para teatro. Ela, à princípio, é como você. Parece que chegou a escrever alguns, mas não tenho certeza.”

“Ela vem à praia, assim como você?”

“Vem, mas não agora, prefere o entardecer, ou mesmo a noite.”


Passaram-se dois dias e a mesma mulher encontrou-se comigo. Era de manhãzinha, como na primeira vez. Eu estava deitada sob o sol. Depois de me desejar bom dia, falou:

“Conheci a pessoa sobre quem você me falou. É uma americana.”

“Americana?”, surpreendi-me.

Começou a falar sobre a mulher.

“Ela diz ter sido jornalista e também bailarina. Mudou-se para este lugarejo – foi assim que me definiu a cidade – com o objetivo de descansar. Mas se apaixonou pelo local e não mais partiu.”

Fez silêncio durante alguns segundos, olhou para o mar como se a paisagem a surpreendesse; depois, continuou:

“Disse que antes tinha medo de não mais querer voltar para o seu país. Agora, sente alívio por ter ficado. Diz que o medo que sentia nada mais era do que o medo de ser feliz.”

“Que bom, ela então se encontrou, aqui nesta praia de fim de mundo”, observei.

“Isso, disse que foi um encontro com ela mesma. Mas existe mais uma coisa.”

“O quê?”, perguntei curiosa.

“Convidou a mim e mandou chamar também você. Numa noite dessas, quer apresentar um número de dança para nós duas.”

“Então é isso, alguns pescadores disseram certa vez que viram uma mulher dançando à noite, bem tarde, aqui mesmo nesta praia.”

“Parece que estudou balé clássico. A literatura e a dança são as duas coisas que lhe fazem sentido.”


Chegamos  à casa da americana em torno das nove horas numa noite de quinta-feira. Ela adotara nome brasileiro, pediu que a chamássemos de Regina. A construção ficava numa das muitas elevações existentes no lugar. A casa tinha sala ampla e dois quartos. Ao lado de um deles, o banheiro. A cozinha se ligava diretamente à sala. Na frente, havia a varanda com o pequeno jardim. Dali, era possível apreciar toda a costa. À noite, viam-se as luzes dos barcos que saíam para a pesca.

Cumprimentou-nos com muita polidez e ofereceu bebida. Minha recente amiga, cujo nome é Jane, aceitou vodca com limão. Eu preferi suco, que segundo a dona da casa, fora preparado por ela mesma. Enquanto bebíamos, Regina abriu uma gaveta e tirou um pequeno cigarro, acendeu-o, sorveu-o duas vezes seguidas e nos ofereceu. Era um cigarro de maconha. Jane o tomou entre dois dedos e deu uma tragada profunda. Então, passou-o a mim. Segurei o cigarro com o polegar e o indicador e dei um longo trago. A seguir, nós três saímos para a varanda.

Primeiro, olhamos longamente o mar lá embaixo, depois Regina falou:

“Vou colocar música.”

Voltou à sala, som de violino começou a se expandir pelo ambiente. Ficamos em silêncio. Era um famoso concerto para violino e orquestra de Beethoven. Eu ouvia de olhos fechados.

Após mais ou menos um quarto de hora, a música cessou. Regina desapareceu por instantes. Voltou vestida como uma bailarina clássica: sapatilha, a malha toda negra, saia curta e o cabelo preso em forma de coque. Logo a música voltou a soar. Ela, inicialmente com os olhos fechados, começou a fazer os primeiros movimentos, bem à nossa frente. Como cenário, a paisagem marítima ao fundo.

Regina pertencera a uma companhia de balé profissional. Era ainda uma exímia dançarina, embora não mais se apresentasse. Quis perguntar o motivo de ter abandonado a dança, mas não tive coragem. Ao terminar a apresentação, aplaudimos. Ela sentou ao nosso lado e pediu a Jane que buscasse outro cigarro. Acendeu-o e tragou com sofreguidão. Permanecemos ali por mais uma hora. Bebemos e fumamos. Mas nossa convivência foi de poucas palavras. A música continuava, só que não mais música clássica, mas o jazz de Chet Baker.

“Antes de partirem, vocês podem me fazer um favor?”, perguntou, só então reparei uma ponta de sotaque em suas palavras.

Eu e Jane olhamos para ela com sorrisos de consentimento. Levou-nos à sala e mostrou uma trave junto à parede que ficava na diagonal da janela que dava para o mar.

“Vocês podem me amarrar aqui?”

Sua proposta me surpreendeu. Jane conseguiu manter certa naturalidade. “Como a gente deve fazer?”, perguntou, enquanto eu disfarçava o espanto inicial.

Regina arrastou um pequeno banco que estava ao lado da mesinha lateral e o colocou sob a trave, deu alguns passos e entrou no segundo quarto. Voltou depois de menos de um minuto totalmente nua. Trazia nas mãos uma corda.

Jane manteve-se durante todo o tempo impassível.  Eu nada mais falei. Regina sentou no banquinho e levantou os braços. Orientou que devíamos amarrar seus punhos, depois atar a corda na trave. Apontou que, com o restante da corda, lhe imobilizássemos os tornozelos. Fizemos tudo como pediu. No final, mostrou um lenço branco, comprido, que jazia sobre um dos estofados. Pediu que tapássemos sua boca e o amarrássemos na parte posterior de sua cabeça com um forte nó.

Despediu-se emitindo um som grave e sorriu. Batemos a porta e partimos.

“Será que ela é louca ou está sob o efeito de alguma outra droga?”, perguntei a Jane. Eu estava assustadíssima, jamais vira alguém fazer tal pedido.

“Nada disso“, falou tranqüila a jornalista. “É uma fantasia, na certa espera algum namorado.“

“Vamos voltar para espionar?”, perguntei.

“Acho melhor não, vamos deixar secretos os seus prazeres.”

Descemos até a praia, despedimo-nos e cada uma seguiu o seu caminho.

Naquela noite, porém, não consegui dormir. Pensei o tempo todo na mulher nua amordaçada e amarrada.

Quando estava próximo o amanhecer, saí da cama, vesti roupas como se fosse à praia, mas o que fiz foi ir à casa da americana.

Durante o caminho, ou mesmo enquanto espreitei a casa, procurei-me manter oculta. Ainda não surgira o sol quando espionei através da janela a sala. O que vi não me surpreendeu. Tudo permanecia como na noite anterior, apenas ela não estava no local. Contornei toda a casa beirando as janelas dos outros cômodos. Não parecia haver ninguém. Destemida, girei a maçaneta da porta da sala. Entrei sem dificuldades. Caminhei furtiva, deixara a sandália no lado de fora. Vasculhei os quartos, vistoriei o banheiro, a cozinha. A casa estava vazia. Sobre a cama, em um dos quartos, encontrei a roupa que Regina usara quando dançou para mim e para Jane. A malha, a curta saia e as sapatilhas permaneciam no mesmo local em que se despira.

Ao me dirigir de volta à porta da sala com a intenção de ir embora, a americana apareceu. Não se assustou com a minha presença.

“Bom dia”, falou e sorriu. “Sabia que você voltaria.”

“Fiquei preocupada, achei que poderia ter acontecido o pior”, falei.

“Pensou que eu ainda estaria amarrada e amordaçada, como vocês me deixaram”, afirmou com certa solenidade nas palavras.

“Isso mesmo”, falei com um pouco de nervosismo.

“Sabia que você iria voltar, achei até que ainda na madrugada”, após falar, cruzou a porta e sentou sobre um dos estofados. Apontou para eu sentar ao lado dela. “Ficou excitada, não?”

“Eu?”

“Você”, falou resoluta.

“Bem, não foi bem assim...”

“Não se preocupe, é natural que isso aconteça. No fundo, muitas gostariam de viver a mesma situação.”

“Viver a mesma situação?”, as palavras escaparam contra a minha vontade. “Não sei, tenho  medo,” afirmei com tremor na voz.

“Medo? É tão bom. Espere aí”, levantou e foi à cozinha. Voltou com um pouco de café quente numa caneca, entregou-a nas minhas mãos. “Beba um pouco, você deve estar em jejum.”

O café estava gostoso. Senti um pouco de fome mas nada falei.

“Caso você queira passar por essa experiência, venha uma noite dessas”, sorriu mais uma vez após terminar a frase.

“E depois?”, eu queria saber como tudo se daria.

“Depois?”

“Depois, o que acontece?”

“Vem um cavaleiro mascarado namorar você.”

“Mascarado?”, surpresa no meu rosto.

“Se quiser, ele pode vir de rosto nu.”

“Na cidade, todos me conhecem, você entende...”, tropecei na última palavra.

“A gente dá um jeito. Quem sabe, você usa a máscara.”

“É normal que o cavaleiro seja de outra cidade, não?” perguntei. Foi minha vez de sorrir.

“Acertou. Resolvo essa questão para você. Mas me avise sempre que vier, preciso de dois dias.”

“Pode deixar, aviso.” Tomei mais um gole de café, “acho que agora vou até a praia”, levantei e a beijei. Ela retribuiu. Parti em seguida.


Naquela semana aconteceram fatos estranhos, acho que devido ao estado de excitação em que eu me encontrava. O primeiro, quando eu voltava da entrega de uma encomenda que precisei fazer na outra ponta da praia. Geralmente, faço entregas na parte da tarde, depois das quatro horas.

Já pedalava por mais de quarenta minutos quando decidi parar junto a uma pedra situada no extremo norte da cidade. Descansei a bicicleta e estendi as pernas, estava cansada devido a várias elevações que tivera de trilhar. Comecei a sentir, então, forte quentura entre as coxas, o calor foi subindo gradativamente até tomar-me todo o baixo ventre. Fiquei muito excitada. A seguir, enrijeceram-me os mamilos. Senti-me como se estivesse em pleno exercício sexual com parceiro atraente. Jamais, sozinha, tivera aquela sensação. Tornei-me, de repente, bastante trêmula. Depois de alguns segundos, atingi o orgasmo. Cheguei a me sentar numa beira do caminho de terra e olhar a praia lá embaixo. Preocupada, perguntei em silêncio a mim mesma: o que foi isto? No fundo, proporcionou-me prazer, mas meu coração batia de modo descontrolado. Após descansar, subi na bicicleta e pedalei até a casa. Entrei, atirei-me na cama e adormeci. Ao acordar, estava feliz, envolvia-me estado de êxtase jamais sentido. Comecei a achar ótimo se aquele momento se repetisse.

Dois dias depois, de manhãzinha, eu estava novamente na praia. Sempre me acostumei a mergulhar, mesmo com a água bastante fria. Primeiro deixei que as pequenas ondas me molhassem os pés e os tornozelos, depois caminhei mais alguns metros e me abaixei dentro d’água. Senti as pernas muito geladas, depois as coxas. Uma forte ânsia, no entanto, cercou-me na altura dos órgãos genitais. Fui tomada pelo ímpeto de arrancar o biquíni. Então, aconteceu a mesma sensação de dias atrás quando descera da bicicleta. Meu coração de novo disparou e atingi o orgasmo, só que desta vez bem mais demorado. Quando retornei à areia, onde deixara a saia, deitei-me rapidamente e permaneci longo tempo completamente exausta.

O principal de tudo, no entanto, ocorreu-me quando estava no pequeno centro da cidade. Notei que um homem me olhava de modo insistente. Tentei lembrar quem poderia ser. Acabei chegando à conclusão de que ele não era da cidade. A todo lugar que eu ia, ele ficava por perto. Quando parei junto à minha bicicleta, destravei-a e subi para partir, o estranho falou:

“Por favor, moça, você conhece dona Regina?” Era alto, esbelto, vestia calça comprida e camisa social de manga curta, traje um tanto solene para o local.

“Dona Regina?”, titubeei.

“A americana”, olhou para mim como se soubesse tudo ao meu respeito. “Ela me disse que você poderia me levar à casa dela.”

Naquele momento entendi o que estava por trás de suas palavras. Então era isso, a conversa que eu tivera com Regina na manhã seguinte à noite em que ajudara Jane a deixá-la amarrada e amordaçada.

Impaciente por causa do meu silêncio, retomou a pergunta: “como podemos fazer?”

Subi na bicicleta e pedi que me acompanhasse. Seguimos a trilha que leva à pequena elevação. Ao atingirmos o ponto mais alto, olhamos à direita, pudemos então apreciar toda a extensão da praia. Eu já havia descido da bicicleta e a empurrava com ambas as mãos.

Quando chegamos à casa, repousei a bicicleta na parede externa da sala, abri a porta e entrei. Ele me seguiu. Como eu previra, Regina não estava em casa. Num dos cantos, a trave junto à parede, o banquinho, a longa corda e o lenço que servira de mordaça, havia também um pequeno chicote, artefato que eu não lembrava ter visto quando ali estivera.

Voltei-me ao homem, ele sorria. Minhas coxas esquentaram, comecei a ser tomada pela mesma sensação que sentira dias antes na bicicleta e nas águas frias da praia.

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