sábado, março 03, 2012

Aloirada

Um amigo contou-me que andava por uma rua do centro da cidade quando passou uma mulher aloirada junto a ele. Ela ia de olhos baixos e com a expressão de quem nada deseja. Uma vez que naquele momento ele precisou desviar de outra pessoa que lhe obstruía o caminho, preocupou-se em não esbarrar na mulher, mas ela não afastou o corpo, deixou que roçassem nele os cabelos aloirados. Meu amigo reparou que ela era entrada em anos, porém tinha certa beleza. Seguiu-a.

“Eu temi ser preso”, disse-me.

“Preso, por quê?”

“Ora, você não sabe? Seguir alguém nos dias de hoje é perigoso. É capaz de a mulher pensar que sou um ladrão e chamar a polícia.”

“Mas não acabaste de dizer que ela mostrou-te oferecida?”

“Eu podia estar enganado, mas preocupei-me.”

“Parece-me tola a preocupação. Toda mulher gosta de ser admirada e, se possível, seguida. Dirá às amigas: um homem seguiu-me hoje à tarde, e todas desejarão saber como era ele.”

“Creio que você tem razão. De início fui a seu encalço às escondidas, temeroso. Mais adiante, num cruzamento, enquanto esperávamos para atravessar, ela deu pela minha presença. Olhei-a de relance e pude perceber um ligeiro sorrido de regozijo.”

“Regozijo? Bonita palavra...”

“Isso, regozijo. Ela continuou. Creio que colocou aos pés ainda uma maior fúria. Continuei atrás, indeciso se insistia ou não.”

“Se ela não entrou em algum lugar público, nem procurou abrigo, é porque gostou da perseguição.”

“Escute, foi um tanto cômica a situação. Coloquei-me dez metros atrás dela. De repente, num lugar onde as pessoas iam esparsas, ela virou-se e disse: ‘Se você vai me roubar chamo antes a polícia.’ ‘Não se trata disso’, falei de imediato, quase levantei os braços como se o ameaçado fosse eu, ‘se há algo que eu possa roubar, é seu coração’. Ela sorriu, abaixou os olhos, a cabeça e levou uma das mãos ao rosto. Interpretei como sinal de vitória.”

“E depois?”, eu quis saber.

“Depois? Bem, depois é difícil contar, mas vou tentar. Caminhamos lado a lado. Então ela me perguntou: ‘vai roubar meu coração? Para onde vai levá-lo?’. Disse a ela: ‘vamos ver’, continuei: ‘para onde você está indo?’. Retrucou: ‘você não respondeu minha pergunta’. Voltei à pergunta, ‘bem, vou levá-lo a um lugar onde possa acariciá-lo sem que ninguém incomode’. ‘Agora respondo a você’, ela falou, ‘pode levá-lo, mas leve-me junto’.”

“E para onde vocês foram?”

“Ah, Margarida, ali nas imediações não havia lugar em que pudéssemos ficar a sós. Chamei por um táxi. Embarcamos e saltamos na Glória.”

“Corajosa ela, embarcou na primeira.”

“Isso; comecei eu a temer.”

“Temer o quê?”

“Que fosse ela integrante de uma quadrilha.”

“Mas não eras tu que estavas a segui-la?”

“Era, mais a facilidade foi tanta que...”

“Qual quadrilha ela pertencia?”

“A quadrilha de mil amores.”

“Logo vi, não tinhas o que temer.”

“Entregou-se plena. Pediu que a despisse. Beijou-me como nenhuma outra. Rodopiou por sobre todo o meu corpo. Quase morremos de mil amores.”

“Aproveitaste...”

“Disse-me ela: ‘não esperava estar nos braços de um homem às três da tarde’. ‘O que esperava às três da tarde?’ perguntei. ‘Ia a um banco pagar a conta telefônica’. Tive de rir do imprevisível. ‘Pague a conta do amor’. ‘Negativo’, retrucou, ‘no amor não existe conta, no amor só existe êxtase’. Ganhei mais do que a mulher, ganhei todas as tardes. Quando três horas depois nos despedimos, pedi-lhe a conta; queria pagá-la. Mas foi ela quem falou: ‘pagas a conta e ficas com meu número, negativo’. ‘Juro que não pensei nisso’, rebati. ‘Com juras ou sem juras, bastam os juros do atraso, pois amanhã há de ser outro dia. É melhor irmos embora. Se o acaso for a nosso favor, encontraremos de novo um ao outro’. Arremessou-me um beijou e desapareceu no entardecer que despencava sobre a cidade.”

“Despencava? Gostei da história, apreciei o estilo. Ela teve toda a razão.”

“Razão? Não compreendo...”

“Os homens nunca compreendem”, arremeti, “as mulheres preferem o sonho.”

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