quarta-feira, dezembro 18, 2013

Gosto de histórias fortes, sabia?

Ele vinha dirigindo pela avenida que margeia o canal, eu caminhava pela calçada. Parou o carro, buzinou, abaixou o vidro e me chamou. Sorri, cumprimentei e dei um adeusinho. Ele é professor lá da escola. Às vezes conversamos durante os intervalos. Sabe que me separei. Contei às amigas sobre a separação e ele escutou.

Meu marido só me queria para o sexo. Podia ser qualquer hora do dia, eu podia estar em qualquer cômodo da casa, bastava ele me encontrar para me agarrar, me dar um tapa na bunda e começar a tirar a minha roupa. Dizia que estava louco para trepar comigo. Falando assim, sei que muitas mulheres vão sentir inveja, outras dirão que me estou fazendo de gostosa.

O professor fez o vidro elétrico subir e novamente ficou incógnito dentro do automóvel. Aquilo, não sei por que, me provocou certo arrepio. Acelerou e se foi.

Na semana seguinte, enquanto eu almoçava no restaurante que fica em frente à escola, encontrei ao acaso com ele. Logo seus olhos cruzaram com os meus. Moveu a cabeça num ligeiro cumprimento e foi ao buffet se servir. Na volta, perguntou se podia sentar à mesma mesa onde eu estava. Sorri em sinal de aprovação. Será que ele também só pensa em sexo?, perguntei silenciosa aos meus botões. Colocou a pasta na cadeira ao lado e começou a comer. Não demorou a me fazer uma pergunta. Quis saber se eu vou ao Rio ou a Niterói com alguma frequência.

Vou pouco para aqueles lados, apenas se houver grande necessidade. Tudo o que preciso tem por aqui.

Ah, sim, falou e pareceu surpreso.

Uma vez fui a Niterói para fazer umas fotos, lembrei e disse a ele.

Umas fotos, que legal, enquanto comia olhava o prato e, quando podia, a mim.

É, fiz um álbum de fotografias, sabe, nunca tive um.

Mas fotografias de que tipo?, quis saber.

De todos os tipos. Queria ter uma lembrança de mim enquanto sou jovem, magra, sei lá, as mulheres sempre se preocupam com essas coisas.

Você gosta de manter e de reviver o passado?, ele, curioso.

A gente tem que aproveitar enquanto é jovem, é isso que eu acho. Depois que passam os anos, geralmente engordamos; aproveito enquanto tenho esse corpinho.

Ai, Gisele, você é tão burrinha, pensei, está alertando o homem a prestar ainda mais atenção em você.

É para ter uma lembrança, você compreende?, repeti.

Compreendo. As mulheres são muito vaidosas.

Só as mulheres?, ressaltei.

Na maioria das vezes, sim.

Hoje há homens que vivem em salões de beleza, afirmei.

Você repara bem as pessoas, não?

Depois de suas palavras, acabei um tantinho vexada. Pois ele sabia que eu estava separada, e pela minha conversa dava para perceber que eu andava reparando os homens.

Dias depois, enquanto saíamos da escola, ele me avistou e ofereceu carona.

Moro aqui pertinho, falei.

Mas não é melhor ir de carro?

Acabei aceitando. Ele seguiu em frente, cruzou duas ruas e eu já estava em casa.

Na semana seguinte, me convidou para sair.

É que tenho uma história para te contar, falou.

Uma história?, perguntei com ar de curiosidade. É sobre alguém aqui da escola?

Agora não posso dizer.

O bandido me deixou curiosa, sabia lidar com as mulheres.

Aceitei o convite. Era um sábado, oito da noite, quando ele veio me pegar em casa.

Cadê a menina?, perguntou.

Ficou com minha mãe, sorri já dentro do carro.

Deu a partida. A noite estava fresca. Andamos pelas vias internas da cidade até começarmos a trafegar numa marginal que nos leva à orla marítima.

Entrou com o carro num estacionamento, virou a cabeça para mim e perguntou:

Você quer caminhar um pouco ou prefere ir direto a um restaurante?

Acho melhor passearmos primeiro, sugeri.

Começou a contar uma história, mas logo descobri que não era sobre ninguém que eu conhecia. Na verdade, pelo que entendi, ele falava sobre um personagem de livro, embora afirmasse que a história aconteceu mesmo. Contou sobre um cara que resolveu ir morar no litoral.

Gosto de histórias fortes, sabia?, falei.

Você, com essa carinha de anjo?

Eu, anjo?

Pelo menos é o que parece. Mas pode deixar que essa história é bastante forte.

A história começava com um homem dizendo que iria se matar no dia seguinte, e falava a um dos filhos. Eu, atenta, ouvia.

No início o filho tenta contra-argumentar, mas logo desiste. Percebe que a decisão do pai é irremovível. Aliás, não é uma escolha. Na verdade, ele não tem escolha. Mas o pai, de modo surpreendente, faz um pedido insólito. Que ele, após o suicídio, leve a cadela que o acompanha há quase dezesseis anos a uma veterinária amiga e peça que a sacrifique. A mulher já sabe mais ou  menos da história. O filho, a princípio, acha tudo um grande absurdo e diz que não vai assumir tal compromisso.

Meu amigo esperou que eu perguntasse alguma coisa.

Ele não tentou o suficiente para salvar o pai do suicídio, falei.

O que aconteceu foi que o rapaz acabou convencido pelo pai de que o suicídio era o melhor caminho, tanto mais nas circunstâncias em que o velho se encontrava.

Ele estava doente?

Tudo leva a crer que sim, mas a doença não é mencionada, apenas falam sobre um grande sofrimento.

Mas como esse filho pode ter aceitado isso?, eu mostrava indignação.

Você não falou que gosta de histórias fortes? Estou contando.

Está bom, continue, você tem razão, é uma história forte. Enquanto caminhávamos, abotoei o agasalho e cruzei os braços abaixo dos seios, quis me proteger da brisa que soprava do mar. Apesar do friozinho, era uma noite bonita, o céu estava cheio de estrelas.

E há outra coisa, continuou, a mulher desse filho, antes do episódio do suicídio, já o havia trocado pelo irmão.

Como?, fiz que não entendi.

Isso mesmo. Já fazia alguns anos. A esposa começou a gostar do irmão e foi com ele. Eles, os irmãos, nunca mais se falaram. Passaram o resto da vida como inimigos.

Olhei para ele e sorri. Mas foi um sorrido de desconforto. Gostara da história, até me causara alguma excitação, mas era uma situação muito triste.

Durante o jantar, ainda perguntei sobre o que aconteceu depois.

É uma história verdadeira, posso lhe garantir, falou. Embora tenha sido publicada num livro de ficção. É tudo verdade, assentiu com a cabeça.

Depois dessa noite, passamos a nos encontrar uma vez na semana. Lógico que no começo fiz o tipo de mulher difícil. Três encontros depois, passeamos de novo, mas em Rio das Ostras. Caminhamos à noite numa das praias e jantamos num restaurante da Praça da Baleia. Como não estou acostumada a bebidas alcoólicas, fiquei de pilequinho. Acabei levando-o para a minha casa depois do jantar.

Me conta uma história?, pedi, estou precisando.

Precisando?, riu.

Isso mesmo. Não sei se já falei a você, essas histórias me deixam a mil.

Começou a contar sobre um americano que soube que dentro de poucos meses morreria. Estava com câncer e o médico lhe assegurou, com muita honestidade, que para o seu caso todos os medicamentos eram apenas paliativos. O homem pôs a venda tudo que tinha, e passou a dizer às pessoas que faria uma longa viagem.

Ele tocava saxofone, continuou. O homem queria viajar para um país longínquo, o Vietnã. Queria morrer em terra estrangeira e longe de todos. Como os elefantes, já ouviu falar?, perguntou.

O que tem os elefantes?, eu quis saber.

Eles se retiram quando sentem a morte próxima, afastam-se da manada e morrem sozinhos.

E o homem fez isso?

De certa forma, sim, mas antes arranjou uma namorada.

Senti intenso arrepio com essa parte da história.

Então ele transou com ela antes de morrer?, perguntei.

Várias vezes. Mas no final ela acaba com outro.

Ah, que pena, exclamei. Pedi para ir ao banheiro.

Quando voltei, eu disse que também tinha uma história para contar. Algo que eu mesma vivenciara.

Tive um aluno cujo pai se matou.

Foi na Florinda, não? Todo mundo ficou sabendo desse caso.

Foi, sim. Trabalhei lá mais uns dois anos, depois pedi transferência. O fato foi traumático para todos. O garoto não tinha mãe e, de repente, o pai se suicida.

E como ficou o menino?

Totalmente fora de órbita. Pensei na época, que foda, como esse garoto vai sobreviver. Ele andava pelos cantos da escola, sempre em silêncio, pensativo, como se dependesse do seu pensamento a possibilidade de descobrir as razões que levaram o pai a esse tipo de morte. Há suicídios que não possuem lógica nem explicação. Alguém me contou que, quando se sofre violência na infância, com o passar dos anos a vítima tende a sentir essa violência cada vez de modo mais intenso, até o ponto de não mais suportar. Daí a razão de tantos suicídios inexplicáveis. Sei lá, isso é uma loucura só, concluí.

Naquela noite, após tantas histórias, a maioria insólita, fiquei nua nos braços dele.

Depois que me separei ainda não transei com ninguém, eu disse. E olha que o meu marido era tarado por mim.

Você realmente é muito bonita, falou demonstrando muita admiração.

Acho que encontrei o homem certo, falei sem querer, como se pensasse em voz alta.

Como você pode saber se ainda nem me conhece direito?

Preciso de um homem que me conte histórias como essas que você contou. Promete que sempre terá uma história para me contar, principalmente antes de me levar pra cama?

Prometer não prometo, isso é muito complicado, mas vou tentar. Não é fácil ter sempre boas histórias. E também nada sabemos sobre o futuro.

É fácil, sim, tem tanto livro por aí. E quanto ao futuro, ele acontece sozinho.

Tudo bem, deixando o futuro de lado, você não disse que as histórias precisam ser verdadeiras?

Disse, mas você também me disse que é tudo verdade.

Concordo. De certo modo, é tudo verdade. E você também contou uma história muito verdadeira.

É que eu me excito com essas narrativas, inclusive com a do suicídio do pai do meu ex-aluno.

Já que você gosta de histórias fortes e se excita tanto com elas, será que não vai me matar essa noite? Assim também terá o que contar, só não precisa dizer que a assassina é você, riu, depois me beijou na boca.

Quem sabe, respondi fazendo de conta que entrava na brincadeira. Vou te pedir mais uma coisa, assim pode ser que eu não te mate, continuei.

Fale, sou todo ouvido.

Salta sobre mim como o animal mais feroz. Me penetra o mais fundo que você puder. Mas faço uma ressalva.

Silenciei durante trinta segundos.

Você quer o salto, a força, o pênis do tigre, não é isso?, ele.

Isso. Enfim encontrei um homem que me compreende.

Mas há uma ressalva, completou e olhou para mim esperando que eu continuasse.

Ah, sim, a ressalva, repeti abandonando qualquer vestígio de vexo. O que quero dizer é o seguinte, nada de tapas na bunda, viu, isso é coisa de criança. Me bate na cara, e bem forte. Outra coisa, quero que você me amarre. Tenho uma corda bem grossa, ali na gaveta do armário, a gaveta de baixo; mais além, vai à cozinha e volta com uma faca, há uma de ponta, pequena, na gaveta dos talheres. Percorre o meu corpo com ela, pressiona a ponta sobre a minha pele, onde você quiser, pode fazer uns furinhos, chupa então o meu sangue, chupa, me bebe, depois enfia teu peru em mim, mete bem fundo. Mas precisa ser pela noite inteira, sabe, a noite toda, e não para, viu, não para, quem sabe gozo até o dia claro, ou até já não houver sol. Agora vem, me aperta, não demora a começar, quero também o teu sangue...


Nota: a história do pai que chama o filho para comunicar que vai se matar é de Daniel Galera, e está no livro Barba ensopada de sangue, editora Companhia das Letras, e a do homem que sofre de câncer e quer morrer em terra estrangeira é do livro Hanói, de Adriana Lisboa, editora Alfaguara.

quarta-feira, dezembro 04, 2013

Depois você me paga

Sentei na beira da cama, cruzei as pernas e esperei. Não entendi o que ele tinha em mente. Achei mais elegante nada perguntar. Meu vestido repousava no mesmo lugar onde o deixara horas antes, após me despir. Devido a meus seios rijos, não viera de sutiã, quase não o usava, mas a calcinha... Ele ainda dormia, ou fazia de conta, não posso dizer ao certo. Ouvi barulho de vozes vindo da rua. Eram pessoas que chegavam de alguma festa, conversavam. A madrugada agradável fazia que demorassem a seguir cada qual o seu caminho, queriam mais tempo entre os amigos. Depois de mais ou menos dez minutos levantei e me vesti, apenas o tecido fino sobre a pele. Pensei na noite que tivéramos: primeiro o passeio; depois, ali no seu apartamento, a música na pequena sala e o amor. Começamos de pé, encostados a uma das paredes, a seguir o sexo ardente na cama de casal do único quarto. Ele dissera ao meu ouvido que eu era a mulher da sua vida, que nunca namorara alguém tão quente como eu. Talvez tudo conversa fiada. Devia contar a mesma história para todas que conquistava. E eu ainda o incentivei, falei de um namorado que me deixara nua à porta de casa. Excitou-se, quis saber detalhes, contou então sobre um baile de carnaval de tempos atrás. Namorou uma fada que usava apenas biquíni, deixou-a sem a varinha. Só roubou-lhe a varinha?, perguntei. Ele dissimulou, mas acabou revelando, tomou-lhe também o biquíni. Sou também uma fada, falei, pena não ter vindo de biquíni, o que você vai levar de mim? Sorriu. Fazia pouco tempo que nos conhecêramos, ainda nem bem partíramos para o sexo. Demoro a ir para cama com namorado novo. Sei que já não sou tão jovem, sei também que os tempos são outros, tempos em que tudo se resolve com rapidez. Mas ainda sou lenta, não gosto de precipitações. Ele mexeu-se na cama. Esperei mais um pouco. Fez silêncio novamente. Achei que não acordaria. Procurei a sandália, a bolsa, fui até o banheiro e olhei-me no espelho. A aparência estava boa, disfarçava. Chamaria um táxi e correria para casa. Não sabia se o procuraria de novo. Lembrei-me de sua fadinha. Quem sabe ainda possuía a varinha, quem sabe me mostraria o biquíni. Onde será que os guardava? O apartamento era pequeno, não seria difícil encontrar. Temi que acordasse e não me deixasse ir. Pensei na fadinha nua e sem poder algum. Não queria acabar do mesmo jeito que ela. Que ninguém me olhasse por baixo da roupa. Que não pensassem mal de mim. As mulheres têm certa fascinação em se sentirem prostitutas, falam algumas pessoas. Será?.

Quando desci encontrei na portaria um garoto. Gostosa, ouvi-o dizer. Há quanto tempo não ouvia essa palavra. Voltei-me. Ele sorriu. Tão bonito o garoto. Ei, moça, espere aí. Esperei. Ele veio até a mim. Você quer passear comigo?, perguntei. Quero, falou com decisão. Mas precisa pagar, sabe, comigo nada é de graça. Quanto você cobra? Duzentos, e tem de ser adiantado, mais uma coisa, vou avisar porque há homens que depois reclamam. O que é?, ele, curioso. O último cliente me roubou a calcinha. Não quero a calcinha, quero você, decidiu. O garoto levava jeito. Tem aonde me levar?, indaguei. Tenho, não moro sozinho, mas você passa por minha namorada, o único problema é quanto aos cem. Cem, não, duzentos, fiz de conta que me assustei. É, desculpa, os duzentos, ele reparou. Não faz mal, falei, fechamos por cento e cinquenta. Não é que você não valha, afirmou pegando uma das minhas mãos, é que também não tenho cento e cinquenta. Ok, sorri, deixo por cem, mas só dessa vez, viu?

quarta-feira, novembro 27, 2013

Boa ideia!

Eu saltara na estação do metrô Cantagalo e procurava a praia. Vi um homem que aguardava ao sinal e me aproximei.

Você pode me informar como vou à praia?

Basta seguir esta mesma rua, apontou.

Obrigada.

Você vem de longe?, ele quis saber.

Da Pavuna.

Poxa, é um bom pedaço.

De metrô é rapidinho, falei e sorri.

Já não vou a praia faz tempo, falou e sorriu também.

O sinal abriu para nós. Caminhamos juntos um trecho da rua. De repente, diante de um prédio, ele parou.

Moro aqui, qualquer coisa que precisar toca no 502, me chamo Manoel.

Obrigada, falei e segui. Fiquei a pensar no homem que morando ali tão pertinho da praia disse que não a frequentava fazia tempo.

Passei quase o dia inteiro em Copacabana, bem juntinho ao mar. Tomei duas latinhas de cerveja, encontrei três amigos. Um deles me paquerou, mas desconversei. Ele reparou muito o meu corpo, acho que adorou o meu minúsculo biquíni. Quando decidi ir embora, saí sem que notassem. Voltei pela mesma rua da manhã. Ao passar pelo prédio do tal Manoel, olhei para cima, imaginei qual seria a sua janela. Junto ao portão estavam os botões com os números dos apartamentos. Aproximei-me e toquei o 502. Logo ouvi a sua voz.

Alô?

Aqui é a moça a quem você informou de manhã como se ia à praia, lembra?, senti uma ponta de vergonha após a última palavra.

Ah, lembro sim, o que houve?

Não houve nada, apenas passei e resolvi tocar.

Que bom que você lembrou. Quer subir?

Você permite? Gostaria de um copo d’água.

O portão abriu e subi ao quinto andar. Quando me aproximei, a porta do apartamento já estava aberta.

Entre, fique à vontade, falou.

O homem morava sozinho. Ele me ofereceu um refresco, acho que de maracujá.

Você não quer tomar um banho. É bom depois da praia.

Boa ideia, exclamei.

Lá fui para o banheiro. Ele deixou uma toalha grossa junto à porta.

Saí após o banho enrolada na toalha. Havia lavado o biquíni e o pendurara na parte superior do box. Não sei por que, ao olhar para ele, lembrei-me de um patrão para quem trabalhara fazia dois anos. Chegamos certa vez a nos envolver, apenas uma transa, mas depois ele precisou viajar e ficou muito tempo fora. Quando voltou, nosso caso já esfriara, não nos referimos nenhuma vez ao que passou, e eu ainda continuei um bom tempo como sua funcionária.

Ele me ofereceu algo para comer.

Não, obrigada, já comi demais hoje.

Você realmente é muito elegante, ele sorriu.

É bom tomar um banho após a praia, você tem razão. A gente se sente refrescada.

Lembrei o meu vestidinho que servia de saída de praia. Voltei ao banheiro e o vesti.

Assim é melhor para voltar pra casa, falei.

Você não acha que é muito curto, observou o homem.

Não para vir à praia. As pessoas sabem que quem usa está de biquíni.

Pensei então no biquíni estendido no banheiro. Acho que Manoel teve o mesmo pensamento.

Como você vai fazer para voltar para a Pavuna?

Do mesmo jeito que fiz para vir, respondi. Mas não era isso que ele estava perguntando. Eu havia entendido, mas me fiz de sonsa.

Depois de um tempo, falou:

Tenho roupa de mulher aqui, é de uma irmã que vem vez ou outra. Caso você precise, apontou o armário.

Depois de uns trinta minutos, parti. Antes, perguntei:

Posso deixar o biquíni secando aqui no seu apartamento?

Claro, respondeu. Quando vier de novo à praia, telefone antes. Ele me deu o número.

Fui embora, com o mesmo vestidinho com que viera. E, só para provocar, deixei o homem com a dúvida se eu vestia ou não alguma roupa por baixo.

É claro que voltei outras vezes. E, então, não foi apenas para vestir o biquíni!

quarta-feira, novembro 20, 2013

Achei tão bom!

Pensei que você hoje não viesse mais, falou logo que entrei.

Estou tão atrasada assim?

Pra mim você sempre está atrasada, ele disse e me agarrou com voracidade. Não demorou e eu estava nuinha.

Não é melhor bebermos alguma coisa antes, ou mesmo ouvir uma música?, sugeri.

Sim, tanto que você continue nua.

Colocou um CD de jazz: trompete, cordas e percussão. Veio de novo e me abraçou, percorreu minhas costas com as duas mãos, puxou-me para junto de si. Beijei-lhe a boca, um beijo demorado.

Adoro quando você vem ao meu apartamento, disse ele.

Também gosto muito. Aqui ficamos os dois bem tranquilos, no maior amor.

Levei-o um passo adiante, como num ligeiro bailar, encostei-o na parede e apertei seu tórax com os meus seios. Ficamos assim um longo tempo. Depois rolamos pelo chão, ali mesmo. Então, ele se colocou sobre mim. Trocamos carícias antes de eu me oferecer totalmente a ele. Mas, antes de gozar, ele me fez um pedido.

Você desfila pra mim?

Desfilar?

É, desfilar, como as modelos.

Mas as modelos vestem saias, blusas, vestidos, ou mesmo biquíni, eu estou nua.

Não faz mal, vamos fazer de conta.

Então ele se pôs a anunciar a nova coleção de verão.

É bom que seja de verão mesmo, porque estou peladinha.

Como havia uma revista de moda no porta-revistas, ele a abriu numa determinada página e começou a falar o nome dos conjuntos. Eu fingia que andava numa passarela comprida.

Vocês, espectadores, não digam que a rainha está nua, porque não é verdade, falei depois de mais alguns passos.

Você é linda nua, exclamou.

Pena que não posso sair nua por aí, eu ia fazer o maior sucesso.

Pode sim, quem sabe a gente tenta.

Você acha?, perguntei fazendo cara de mulher perplexa.

Acho, basta você ter coragem.

Coragem eu tenho, afirmei convicta.

Então vamos!

Vamos aonde?

À rua, falou.

Agarrei-o de novo, lancei-me sobre ele no sofá. Trepamos. Tudo que representamos até ali tinha me excitado bastante. Foi uma transa ótima.

Estou angustiada, falei quando acabamos.

Então vamos mais uma vez ao sexo, sua angústia vai passar rapidinho, falou e se pôs de novo sobre mim.

Sei, amorzinho, mas não é essa a questão, faço a mesma pergunta de há pouco. Por que não se pode andar nua por aí?

Não é melhor você posar nua apenas para mim? Por que se mostrar a todos?

Não quero me mostrar a todos, quero ter a liberdade sobre o meu corpo, sobre como me apresentar.

Mas existe coisas chamadas costumes, leis, disse ele, não se pode derrubá-los de uma vez só, causaria espanto, confusão, até uma guerra.

Então vamos quebrar os costumes aqui entre nós, rasgue minha roupa e me deixe sem ter o que vestir...

Você quase acertou a proposta que eu ia lhe fazer, ou melhor, sabe naquele momento em que estávamos agarradinhos, ali no canto do tapete? Eu queria dizer que não deixaria você se vestir hoje, ia esconder o seu vestido.

Mesmo?

Sim. Você costuma ir ao banheiro nua; quando voltasse, não encontraria suas roupas.

Ah, então vou ao banheiro. Estou louca pra fazer xixi. Quando voltar, vou olhar se meu vestido ainda vai estar ali, na cadeira. Não me decepcione, olhei nos olhos dele.

Queridos leitores, adivinhem o que aconteceu depois. Pensaram direitinho? Querem mais um tempinho ou está bom? Posso dizer? Ah, sim. Não encontrei meu vestidinho nem naquela noite nem no dia seguinte. Como fui embora? Adivinhem... Vocês, principalmente as mulheres, já se viram na mesma situação. É tão bom, não? Então, mãos à obra, escrevam contando-me!

quarta-feira, novembro 13, 2013

Depois do filme, quem sabe

Tenho uma diarista que é fogo, não perde tempo, namora o tempo todo e obtém sempre vantagem dos homens que arranja. Ultimamente tem falado sobre a casa onde trabalha às quartas; um emprego, segundo ela, muito bom. O patrão dá-lhe dinheiro a mais e pede que não fale à esposa. É a mulher que cuida do salário.

“Cuidado, ele vai querer algo em troca”, alertei.

"Não sei, acho que sim, mas enquanto eu puder vou tirando vantagem."

Passaram-se duas semanas e fui eu que conheci um homem vinte anos mais velho que eu. Estava num café, onde uma amiga lançava um livro. O local, no Leblon, abrigava pessoas elegantes e discretas àquele entardecer. O homem comprou o livro, entregou a autora para que autografasse e permaneceu nas proximidades. Como havia um pequeno coquetel, acabamos conversando. Ele falou sobre a beleza dos poemas que o livro contém e sobre a referência a certos mitos, tema importante na vida atual e assunto imprescindível num dos ramos do conhecimento da vida moderna, a psicanálise. Escutei o homem, mas não me demorei ali, tinha um compromisso.

Dias depois o encontro ao acaso na Livraria da Travessa. Logo que me avistou, aproximou-se. Sorridente, ofertou-me um poema. Foi o primeiro presente, um poema decorado, encaixava-se perfeito ao momento.

Não sei dizer o motivo, mas caí nas águas dele e passamos a nos encontrar. O pretexto sempre era uma boa conversa. E os cafés, os melhores lugares. Continuou a me ofertar presentes. Trouxe uma caixinha. Desembrulhei e tirei a tampa. Uma máscara em miniatura. Trouxera-a de Veneza. Contou-me sobre a cidade.

Lembrei-me de minha diarista e os cem reais que o patrão oferecera-lhe. Aceitei os primeiros presentes. Mas depois comecei a querer desvencilhar-me do homem. A diarista continuou a contar a vantagem do dia. Na semana seguinte aos cem recebeu mais cento e cinquenta.

“Qualquer hora perco a empregada”, falei, "desse jeito você não vai precisar mais trabalhar."

“Não diz isso, dona Leila, não sou mulher à toa.”

Meu admirador convidou-me para o cinema. Marcamos em Botafogo, onde há um conjunto de salas que exibe filmes europeus. Sofisticado ele, não? Logo ao chegar, reparei uma pequena bolsa, colorida, que ele segurava. Beijou-me e fez que eu recebesse a prenda. Sorri, agradecida.

“Não precisa”, falei, “assim, tantos os presentes, não é justo.”

“Claro que é”, quase bradou o homem, “não posso encontrar uma mulher tão elegante, tão educada, sem retribuir o mimo”, completou.

Abri o tal mimo. Era uma pequena caixinha com outra caixinha dentro, e mais ainda outra; no final, uma bonequinha russa. Que charme, surpreendi-me. Ele apenas sorriu.

“Dona Leila”, eufórica, relatou a diarista na semana seguinte, “acho que o homem enlouqueceu, desta vez foram duzentos.”

“Duzentos?, e a mulher dele?”

“Da mulher, não sei, só posso dizer que o homem botou duzentos na minha mão."

“E você?”, eu curiosa.

“Eu? O que a senhora faria no meu lugar? Peguei o dinheiro e guardei na bolsa.”

“Olha que ele vai querer você pelada.”

“Será, dona Leila?”

”O que você acha, Júlia?”, eu, conclusiva.

Duas semanas depois voltou o meu admirador. Fizera uma viagem. Chegou com uma bolsa enorme, e dentro dela uma série de pacotes pequenos. Primeiro, bonequinhas de enfeite, bonequinhas russas. O homem é doido por bonecas. Vai ver que me acha uma delas. Havia também dois perfumes, três camisas com nome das cidades por onde andara, e no mais fundo da bolsa, dentro de outra caixinha, um anel.

“Não posso aceitar o anel”, falei um tanto precipitada.

“Não?, qual o motivo?”, ele parecia surpreso.

“Somos apenas amigos, não quero noivado”, afirmei resoluta.

“Não se trata de noivado, não lhe peço compromisso algum, é apenas um mimo, um enfeite para os dedos, é ouro da Suíça”, ressaltou, “ao ver a joia na vitrina não pensei que poderia frequentar outras mãos que não as suas”, insistia ele.

“Oh, você parece um poeta apaixonado”, repliquei.

“Quem sabe?, também escrevo poemas, lembra aquele recitado por mim num dos primeiros encontros? É de minha autoria, não quis fazer autopropaganda logo no início.”

“Ah, és também poeta?”, ressaltei a segunda pessoa.

Ele apenas inclinou o rosto e mostrou um rosto engraçado. Lembrei a máscara veneziana.

Experimentei o anel.

“Adivinhaste-me o tamanho”, exclamei.

“Dona Leila, já não posso mais”, voltou-me a diarista, “já chega a trezentos a oferta.”

“Que bom”, arregalei os olhos.

“A senhora acha mesmo?”

“Você não falou que aproveitaria enquanto houvesse chance? Pois aproveite.”

“Mas, Dona Leila, estou sentindo que devo obrigação ao homem?”

“Obrigação?”, franzi o cenho, “que obrigação?”

“Vou tirar a roupa pra ele.”

“Ele só quer ver?”, eu não estava surpresa.

“Sim, mas a senhora sabe, é só no início, depois vai o conteúdo.”

“Conteúdo?”, fiz que não entendi.

“O meu corpo, dona Leila, o homem é louco por minhas curvas.”

Nada disse a ela sobre o meu admirador. Escondi o anel para que não perguntasse nada.

Continuei a encontrar o namorado. Sim, àquela altura que outra palavra poderia dar ao relacionamento? Nosso namoro era constituído de passeios pela cidade, sessões de cinema e um ou outro jantar. Ele nada pedia, parecia ter todo o tempo do mundo para conquistar o prêmio.

Mas minha diarista marchava a passos largos. No outro dia contou-me que tirou a roupa para o homem.

“E se a mulher dele surpreende vocês dois?”, perguntei.

“Não há esse perigo, ela sempre chega muito tarde, ele é que trata de quase tudo, eu mal vejo a mulher.”

“Então, as coisas são fáceis para vocês”, insinuei.

“São, são realmente muito fáceis.”

Alguns dias depois fui ao cinema sozinha. Enquanto esperava a hora do filme, um homem jovem veio falar comigo.

“Oi, tudo bem?”, esperou que eu respondesse.

Baixei os olhos como se não quisesse dar atenção.

“Você estava olhando para mim”, falou, “pensei que me conhecesse de algum lugar.”

“Não, foi um equívoco”, alertei, “vi uma mulher atrás de você, pensei ser uma amiga, foi para ela que olhei.”

“Ah, sim... Como você está sozinha, achei que quisesse conversar um pouco.”

“Conversar?”, repeti sua palavra e sorri.

“Isso mesmo”, continuou, “às vezes as pessoas precisam conversar”.

Olhei o relógio e ameacei levantar-me. Queria ver o filme, não demoraria a começar.

“Quem precisa conversar sou eu”, enfim confessou, “achei você uma pessoa agradável, por isso me aproximei.”

Tirei da bolsa um cartão e o entreguei a ele.

“Outro dia, e, ainda um acréscimo, sou psicanalista, cobro caro.”

Ele foi embora, e eu entrei para ver o filme.

Não demorou minha diarista veio com uma história interessante.

“Dona Leila, ele vai alugar um apartamento pra mim.”

“Verdade?”, fingi surpresa, pois conheço os tipos.

“Verdade. Vai alugar no centro da cidade. Assim fico mais perto e ele pode me visitar sem riscos.”

“Quer dizer que vocês estão com medo da mulher dele?”

“Medo, medo, não. Mas fica mais conveniente, e já que é ele é quem vai pagar...”

Meu admirador reapareceu no final de semana. Marcamos um teatro. Após o espetáculo, fomos ao Mini Moc, um restaurante japonês, na Dias Ferreiras. Falei pela primeira vez sobre a minha diarista. Ele achou a mulher esperta e a história interessante.

“Não é apenas pelo fato de haver traição, mas porque há um pouco de prostituição nisso tudo”, opinei.

“É difícil dizer hoje o que não é prostituição. A sociedade em si é prostituta. Quem pagar mais, leva.”

“Mas aceitar tantos presentes”, exclamei, “não seria melhor obter as coisas com o trabalho?”, eu tinha essa dúvida.

“Minha querida”, iniciou, “o que acontece é o seguinte: o homem gostou dela, quer fazer um agrado. Os presentes são a materialização do seu amor. Assim eliminamos a prostituição.”

“Você em parte tem razão. Se pensamos que tudo é prostituição, não mais podemos dar presentes quando gostamos de alguém.”

“Isso mesmo, você pode dar o presente de forma desprendida, sem segundas intenções”, disse ele.

“Por falar nisso, você tem-me dado muitos presentes. Ganhei até mesmo um anel de noivado”, mostrei a mão direita.

Ele silenciou durante alguns segundos, talvez pensasse na minha diarista, talvez no patrão dela. Depois, mudamos de assunto. Conversamos sobre o recém-visto espetáculo.

Dois dias depois estou de novo sozinha no café do cinema. Lembram do homem jovem que veio falar comigo da outra vez? Apareceu de novo. Aproximou-se.

“Agora, já nos conhecemos”, falou.

 “Oi, como vai?”

“Vou bem. Quero-lhe fazer um convite.”

“Faça”, falei e continuei olhando minha revista.

“Que tal um chope depois do filme?”

“Chope?”, franzi a testa.

“É o modo de dizer, você entende, não?”, reparou.

“Ok, um chope”, sorri, coloquei a revista na bolsa. Só então reparei que devia ser mais jovem que eu dez ou quinze anos. “Você vai ao filme também?”

“Quem sabe”, olhou a fila, virou-se para o cartaz.

“Depois do filme, quem sabe”, foi a minha vez de falar.

Ele entendeu. Caminhou à bilheteria e comprou o ingresso.

quarta-feira, novembro 06, 2013

Você me arranja um cigarro?

O restaurante do hotel ainda não estava cheio para o café da manhã. O dia claro refletia sua luz através das portas e de alguns trechos do revestimento, todos de vidro. Cafés da manhã em hotéis sempre são coisas exageradas, e aquele não era diferente. Podia-se circular por grande parta do self service que sempre ainda haveria algo para experimentar. Algumas pessoas colocavam no pequeno prato um pouco de ovos mexidos, linguiça ou bacon; já outras preferiam as frutas e os sucos, de uva e de laranja. Na parte dos queijos e manteigas, a variedade era extensa; depois vinham os frios; em frente, escolhia-se entre os mais variados tipos de pão, dos mais diversos tamanhos, pães doces ou salgados; mais adiante era o local dos bolos, predominavam os de chocolate e milho; no balcão se enfileiravam os recipientes de café, leite e chá; a geladeira estava localizada mais adiante, através do vidro era possível escolher entre bebidas e iogurtes. Quem quisesse podia tostar o pão num daqueles aparelhos que fazem a torrada saltar quando atinge determinada temperatura.

Quando voltei à mesa pela segunda vez, trazia uma xícara grande de café com leite, pensava sobre toda aquela comilança, na certa me custaria uns quilos a mais. Só, então, reparei o homem que eu conhecera na noite anterior.

Queria tanto fumar um cigarro, foram as minhas palavras, disse como se conversasse comigo mesma.

O desconhecido não demorou a aparecer com um maço de cigarros a me oferecer um. Aceitei. Como não se pode fumar dentro do hotel, saí do foyer. Ele me acompanhou.

As cariocas são fogo, veja só, falou.

Não era a mim a quem se referia, mas a duas mulheres que entraram com ele à tarde. Também não perguntei do que se tratava, naquele momento não me interessavam detalhes de sua vida particular.

Sou carioca, eu disse.

Ele então corrigiu:

Falo a respeitos daquelas duas que me acompanhavam mais cedo; não as conheço, dei uma carona do aeroporto até aqui quando soube que vinham para o mesmo hotel que eu, foram logo se oferecendo para passear comigo à noite.

Ri da história, soltei a última fumaça, apaguei o cigarro, agradeci e fiz menção de entrar para voltar ao meu apartamento. Ele, cuidadosamente, pediu o número do meu telefone.

Mais tarde me ligou e me convidou para passear. Fui eu então quem disse:

As cariocas são fogo.

Ele apenas riu. Aceitei o convite e fomos a um bar ali perto, na parte externa do Brasília Shopping. Ele contou sua história, disse que era médico e que estava na cidade para um congresso sobre geriatria.

Ah, geriatria!, exclamei, interessante.

Sorriu meio sem graça, como se dissesse que já não achava interessante ouvir histórias pela voz de pessoas idosas. Logo pareceu entendeu o meu pensamento.

Que bom, você é jovem, assim será mais divertido.

Mais divertido, repeti, já passei dos quarenta, e a vida não é apenas uma diversão.

Não, eu não quis dizer isso, tentou corrigir, é porque, aqui, em Brasília, frisou, esses espaços distantes entre tantos edifícios me transmitem uma sensação de angústia e de abandono.

Eu gosto, afirmei, aprecio muito a arquitetura da cidade, vim aqui a turismo.

Turismo?, mostrou-se incrédulo. Como alguém pode fazer turismo em Brasília?

Sempre venho aqui, e por motivos estéticos, respondi.

Ambos rimos, e não era ironia de minha parte. Ao sairmos do bar, depois de algumas caipirinhas, falei a mesma frase lá do hotel.

Queria tanto um cigarro.

Ele se apressou a me oferecer o seu maço.

Não é desses, continuei, é aquele outro, sabe, um cigarro de outro tipo...

Outro tipo?, pareceu ingênuo.

Sim, aquele cigarro que não se pode vender por aí; acho que você consegue com o guardador de automóveis.

Você não acha que isso faz mal?, ele perguntou enquanto eu, na varanda da minha suíte, soltava a fumava do tal cigarro conseguido por ele. E, além disso, vai que alguém sinta o cheiro e vá reclamar à recepção.

Achei engraçado o modo requintado de ele falar e retruquei:

É melhor você ir embora.

Ele permanecia sentado, dentro do quarto.

Não, não é o caso, completou.

O cigarro de maconha acabou por me aproximar dele.

No café da manhã do dia seguinte, ele me piscou os olhos e acrescentou:

Não esqueça, logo mais estarei livre.

À noite, nos encontramos novamente. Já passava das nove.

O que você fez hoje?, ele quis saber.

Nada de interessante, respondi, andei pelos imensos espaços abertos que tanto angustiam você.

Sabe, iniciou sua história, faz dez anos que tive um problema que me levou ao hospital, fiquei internado durante um tempo enorme.

O que você teve?

Câncer no intestino, respondeu.

Mas por que está me contando essa história agora?

Por nada, acho que você tem razão em querer aproveitar a vida; ontem censurei você por fumar o tal cigarro, mas também tenho meus vícios, sempre bebi bebidas fortes.

Se você arranjar outro cigarro daquele para mim hoje, não vou levar a mal, chantageei e sorri.

Perguntou por que eu viajava só.

Porque assim conheço novas pessoas, pessoas interessantes, diferentes das de onde moro. Às vezes conheço gente muito rica, embora não seja esse o meu objetivo. E não venho apenas para cá, viajo por todo o país, e às vezes para o exterior. Os hotéis são os melhores lugares para se travar novas relações.

Qual o seu objetivo?, ele quis saber.

Simplesmente viver. Como poderia fazer isso na minha cidade? Lá há sempre o mesmo círculo de amigos, quase as mesmas situações, os mesmos lugares.

Você não acha que as pessoas são as mesmas em todos os lugares?

Não acho, não, respondi.

Você tem um pouco de razão, mas a ilusão de que vamos encontrar alguém diferente é que nos anima. E eu, sou diferente?

Talvez, sim; pelo menos desceu duas vezes para comprar um cigarro de maconha para mim.

Ele mexeu com a cabeça, como se compreendesse as minhas palavras, depois continuou:

Por falar nisso, você está muito elegante, com esse vestido um pouquinho acima do joelho, colado ao corpo, sentada e de pernas cruzadas...

Já sei, quando um homem fala assim com uma mulher é porque a quer nua.

Acho que sim, fez cara de sonso.

Você sabe que tive uma amiga muito louca. Ela viajava sozinha e quando conhecia um homem o levava para o seu quarto de hotel, tirava toda a roupa e dizia: guarda lá no teu apartamento. Assim, segundo ela, nua e sozinha, se sentia mais livre, a milhares de quilômetros de casa.

E o que acontecia depois?

Não sei. Ela nunca falou. E eu nunca perguntei.

Naquela noite, dormimos juntos, no meu quarto. E devo confessar que ele foi um bom amante.

O dia seguinte seria o último do seu congresso.

Você me leva?, pedi no café da manhã.

Aonde?

Ao seu congresso. É o último dia, não?

Sim, é o último.

E depois?

Depois volto para São Paulo, e você para o Rio, não é mesmo?

Mas antes vou com você ao congresso.

Acho que não vai gostar. Ando sempre querendo saber sua profissão. Mas sempre me esqueço de perguntar, e você nada falou sobre isso.

Sou dentista, exerço a profissão num consultório na av. Rio Branco, no Rio.

Ah, sim, uma profissão muito necessária.

Acabávamos o café. Levantamo-nos e caminhamos para fora do restaurante.

Vamos, então, ele convidou. Levo você comigo. Não sei se vai gostar dos meus amigos e dos assuntos deste último dia.

Assim ficamos mais tempo juntos. Você não vai gostar?

Claro, vou gostar muito. Mas no centro de convenções, você vai perceber que sou uma pessoa muito requisitada.

Não faz mal, fico à parte.

Pegamos nossas bagagens, quitamos o hotel e embarcamos no carro que estava reservado a ele.

Acompanhei-o em todos os compromissos. Assisti a muitas das apresentações, sendo que numa delas foi ele o palestrante. Enquanto falava e olhava na minha direção, percebi que sorria com um canto da boca, depois se virava para os outros e continuava.

Nos últimos momentos em que estivemos juntos, pedi-lhe mais uma vez. Já estávamos próximos ao aeroporto.

Você me arranja mais um daqueles cigarros.

Ele tirou um do bolso.

Tão rápido, não esperava por essa.

Sabia que você ia querer mais. Na última vez, comprei alguns reservas.

Alguns?, eu, surpresa.

Mais dois ou três.

Sorri.

Ele me beijou antes do seu avião partir.

Vá a São Paulo, falou, espero lá por você.

Vá ao Rio, também o espero.

Você não teme ser presa?, perguntou.

Presa, como assim?

Você fuma cigarros proibidos. Está levando alguns na bolsa.

Ah, acho que vou fumá-los ante da partida.

Onde? Já estamos na sala de embarque.

Sempre se dá um jeito, falei.

Um jeito?, ele repetiu.

Lembra de minha amiga que pedia para ser deixada nua no hotel?

Ah, sim, o que tem?

A única coisa que ela me falou é que sempre dava um jeito.

Como vamos fazer para nos encontrar?, foi sua última pergunta. A fila para São Paulo já havia terminado, faltava apenas ele, a quem a funcionária da empresa aérea aguardava com certa ansiedade.

Quando chegar, telefone, vamos dar um jeito, pedi. E se eu estiver nua, em apuros, em algum lugar, venha correndo me ajudar, ok?

Ok. Ele sorriu, me beijou e se foi. Antes de desaparecer através do corredor que o levava à aeronave, ainda olhou para trás e acenou mais uma vez.

quarta-feira, outubro 30, 2013

Sushiman

Para contar essa história, preciso ir devagar, como quem não quer nada. E você para me ouvir, precisa ter toda a paciência do mundo. Vamos a ela.

Tudo começa no Sushi Ipanema. Sabe onde fica? Numa daquelas ruas transversais à Visconde de Pirajá, não sei se a Garcia ou a Aníbal. O restaurante é requintado, parece feito todo de madeira. Há a parte externa, com um pequeno tablado e algumas mesas sobre ele. Depois, o vidro, e o ambiente continua do lado de dentro, com ar-condicionado, mais garçonetes e o balcão do sushiman.

Fui com o meu namorado. Ainda não falei sobre ele, mas com o passar da história você vai conhecendo-o pouco a pouco. Chegamos por volta das dez da noite, uma quinta-feira, um bom dia para namorar. Havíamos, numa outra vez, ficado sobre o tablado, naquela espécie de varanda. Mas, nesta, meu namorado quis entrar. A garçonete desliza a porta e sorri para nós. Não é função das garçonetes observar as roupas das clientes, mas aposto que depois ficam conversando entre si sobre cada uma que frequenta o restaurante, e tenho certeza de que esta irá comentar com suas amigas sobre o comprimento da minha saia. Pois é, visto uma saia curtíssima. Destas que estão na moda. As pessoas olham e pensam que estamos de short, mas na verdade se trata de uma saia. O tecido parece volumoso em algumas partes, o corte não é totalmente regular, estreita-se e sobe um pouco na lateral externa das pernas. É lógico que para sentar com tal roupa é preciso cruzar logo as pernas, pois quanto mais curtas as extremidades tanto mais aparecem nossas coxas. Alguém há de dizer: “que escândalo”, mas é assim que nos vestimos, é assim que nós, mulheres, saímos à noite em Ipanema. A blusa branca de algodão tem alguns detalhes bordados, mas esses detalhes também brancos, em relevo, forçam o olhar das pessoas na minha direção. Ainda digo que essa minha blusa de algodão é muito fina, o branco é quase uma transparência. Assim fico mais em foco, os homens desejam certificar-se se uso ou não sutiã. Para dar mais elegância à minha estatura, venho sobre saltos bem altos, comprados numa loja da Garcia D’Ávila, onde há as melhores marcas. O sapato é revestido de veludo, mas as tiras são de um couro reluzente. Logo que sentamos um funcionário vem em nossa direção. Entrega-nos dois cardápios gigantescos; primeiro a mim, depois ao meu namorado. Olhamos minuciosamente o que vem escrito. Há entradas, pequenas delícias como tira-gostos, depois vem os pratos, uma série deles e, enfim, as sobremesas. As bebidas são oferecidas numa carta à parte. Após percorremos várias páginas do cardápio, optamos pelo sashimi. Tão delicado, o sashimi chega a ser uma refeição sensual. Imagine, estou quase nua, a saia curtíssima e a blusa transparente, o sutiã indefinido sob a roupa, imagine, eu vestida assim a segurar aqueles dois palitos que os japoneses chamam de hashi, a seguir mordiscando o sashimi. Talvez pouca coisa seja tão sensual, ou mesmo sexual, como isso. Aproveito para enfeitiçar ainda mais o homem que está comigo. Não demoram a vir as bebidas. Meu namorado não é muito de bebidas destiladas, prefere cerveja, e nesses lugares elas são das melhores marcas. Não gosto de cerveja, ou melhor, nenhuma mulher deveria gostar de cerveja. É uma bebida deselegante. Além de logo tornar a pessoa aflita para ir ao toalete, não custa para engordar. Uma mulher charmosa, conquistadora, deve beber algo curto e estimulante. Talvez alguma bebida colorida, pouco álcool, apenas para deixá-la um tantinho mais alegre, mais sorridente. Quero uma pequena dose de saquê. Não me esqueço de alertar o garçom para pedir ao barman que borde as extremidades do recipiente com bastante sal, e que suavize a bebida com algumas gotas de limão. Conversamos, eu e o namorado, enquanto esperamos os pedidos. Discreta, observo as pessoas. Há outras mulheres nuas, além de mim. Todas se esforçam para serem muito sensuais, sexy, como se costuma dizer. Uma veio pintada de modo exagerado. Mas a pintura até que lhe cai bem, dá-lhe aparência de personagem em peça expressionista. Outra quase mostra os seios, a blusa cavada, um pouco acima do umbigo, nada de top nem sutiã. De repente, meu namorado faz uma observação.

Você já reparou? As mulheres vestem pouca roupa apenas quando saem de casa tarde da noite, e correm para voltar enquanto dura a madrugada, tentam segurar as últimas sombras, não querem que a claridade do dia as surpreenda.

Isso mesmo, às vezes saímos quase nuas à noite mas temos de voltar antes do nascer do sol. Já pensou, nua ao amanhecer? É a mesma coisa que um homem abrir a porta do nosso quarto enquanto trocamos de roupa.

Já reparou?, volta a falar meu namorado, quando uma mulher sai de casa quase nua pensamos que se trata de um travesti.

É verdade, digo, as travestis gostam de andar mais nuas do que as mulheres.

Nuas ou nus?

Nuas. Porque há travestis muito femininas; conheço uma que ninguém diz que nasceu com pênis.

Tenho um amigo que gosta de sair com travestis. Ele diz para as mulheres mais íntimas que, caso conheçam algum, apresente a ele.

Você sabe que já perdi um namorado assim? Nunca pensei que isso podia acontecer comigo, mas ele acabou indo com a travesti. E ela até aquele dia era minha amiga. Tempos depois me encontrou e pediu desculpas. Mas na verdade ela não teve culpa. Meu namorado era muito bonito e também um exímio conquistador.

Essa história deve ser interessante, diz meu namorado enquanto a garçonete lhe completa o copo de cerveja.

Ela era, e ainda é, verdadeiramente linda. Até a voz é de mulher. E se veste de tal forma, que os homens ficam encantados. Trata-se de uma pessoa de talento, ela é arquiteta. Quando se fala em travesti, logo se imagina alguém extravagante, que vive de prostituição. Ela, ao contrário, tem uma firma, faz desenhos de casas lindíssimas e de interiores, ganha uma fortuna com esse trabalho.

Como você a conheceu?

Num coquetel, e através de uma amiga que a contratou para uma reforma e ampliação da casa.

Ah, interessante.

Todos os homens na tal festa ficaram à sua volta, quase não se conseguia falar com ela.

E como vocês se tornaram amigas?

Depois, no final, a dona da casa me chamou para acompanhá-la na conversa com Suzane, a arquiteta. Então ficamos a sós. Identificamo-nos tanto uma com a outra que marcamos de nos encontrar num dos dias que se seguiram.

E ela, com tanta atribulação, compareceu?

Sim, com atraso de uma hora, mas compareceu. Continuamos saindo. Foi então que um dia tive a infeliz ideia de levar o meu namorado.

Ele gostou dela?

Se gostou? Amou. Logo notei, e na primeira vez. Ainda fiz a asneira de chamá-lo para mais um encontro com ela.

Como é a conversa de um travesti?

Nada de mais. Como a conversa de uma mulher. Primeiro falou sobre o trabalho. Muito depois, reclamou de algum dos homens que teve. Como também ela era extravagante, disse que eles ficam excitadíssimo com o fato de ela usar roupas muito curtas. Falou também que ter um pênis inflama muito o relacionamento.

Dizem que se operam, perdem a graça, observa meu namorado.

É, parece que sim. Contou também sobre homens que se tornam tão excitados, que lhes roubam a calcinha para virem como elas farão para esconder o pênis solto sob a saia.

É mesmo?, meu namorado ri, surpreso.

Verdade. Disse que é preciso saber com quem se está saindo. Caso contrário, há muitos que fazem maldade, espancam a travesti e a deixam nua por aí.

Ela já passou por isso?

Não sei. Se já, não chegou a contar claramente, apenas falou do namorado que lhe roubava a calcinha.

Mas há homens que roubam também a calcinha das mulheres, meu namorado me sorri de novo.

Claro que há,  e um deles está à minha frente. E quer sua namorada apenas de casaco, sem nada por baixo, ou nua por inteiro no banco do automóvel... O que mais mesmo? Mas ouça, fazer isso com uma travesti é deixá-la numa situação constrangedora. Com uma minissaia, assim como esta, onde vai esconder o pinto?, aponto à minha saia.

Eles dão um jeito.

Dão? Então você sabe mais do que eu e ela.

Meu namorado disfarça. Chega o garçom com um pequeno barco pleno de sashimis. Peço mais uma dose de saquê.

Amor, comprei pra você uma lingerie linda, é uma meia inteiriça, do tipo arrastão. Depois quero que você vista, fala ele.

Quer que eu vista aqui, no restaurante?

No restaurante, não. No toalete. As pessoas que já repararam você vão ficar louquinhas, não vão entender nada, ele morde delicadamente um pedacinho de peixe cru.

Amor, já que estamos num jantar tão sensual, quero lhe perguntar uma coisa, falo decidida.

Pois, pergunte.

Não notou nada de extravagante em mim, além da roupa?

Notei, mas não quis falar. Você veio sem, de novo, não?

Isso mesmo.

Você é corajosa...

Além de corajosa, sou muito feminina, você não acha?

Claro, como não achar?

Mordemos os dois, juntinhos, os pedacinhos de peixe cru. Ele empunha o seu hashi, e eu também seguro o meu, minha mão sempre hábil. Sobretudo quando se trata de dois pauzinhos!

quarta-feira, outubro 23, 2013

Estrangeira

Gosto mesmo é de namorar homens estrangeiros. Uma amiga me perguntou a razão.

Não sei, respondi, sinto um tipo especial de atração por eles; na verdade, parecem mais determinados.

E como você faz para arranjar um namorado estrangeiro?, curiosa, ela.

Tenho de frequentar os mesmos locais que eles.

Expliquei então sobre os hotéis e restaurantes onde a gente pode admirar esse tipo de homem. Enquanto eu falava, minha amiga ficou a me olhar. Quando foi embora, desconfiei que passaria a agir como eu. Ah, nenhum problema, falei comigo, há estrangeiros para todas.

Costumo ir à confeitaria Colombo, aquela do forte de Copacabana. Pessoas requintadas sabem dessa tradicional casa, onde se pode tomar café da manha, almoçar, ou saborear um chá à tarde. Prefiro ir em torno do por do sol. Além de o serviço ser ótimo, há uma vista maravilhosa. É possível apreciar toda a praia de Copacabana, o mar, e a extensão de terra que fica do outro lado da baía, as praias de Niterói. Uma mulher bem vestida faz sucesso neste restaurante. Ali há estrangeiros, e quando veem uma mulher sozinha e bonita não perdem tempo, logo se aproximam. Espero para perceber que idioma falam. De início, fico caladinha. Qual cantada vão lançar? Muitos sorriem, tentam ser agradáveis. Surpreendem-se quando reparam que pago a minha parte e não lhes peço coisa alguma.

Pensaste que sou prostituta?, tenho vontade de perguntar, mas apenas sorrio, mexo a cabeça, deixo meus cabelos enfeitiçarem o homem.

Ele se movimenta como se me quisesse convidar para continuar o passeio em outro lugar, mas lhe faltam palavras. Ajudo. Digo que a cidade é bonita, que a temperatura está amena, que tal continuarmos o passeio no calçadão? E lá vamos nós. Calo-me, de novo. Espero pela iniciativa dele.

Fala em inglês, pois lhe esgotaram as palavras que conhece no idioma local. Faço de conta que tenho dificuldade para compreendê-lo, ainda não sabe que domino a língua estrangeira.

Andamos por toda a praia. Convida-me ao seu hotel.

É cedo, reparo, aqui fora está tão agradável.

Fujo dele naquela noite. Sei que dificilmente voltará. São tantas as mulheres, tantas as ofertas. Quero-me casar com um estrangeiro, disse à minha terapeuta. Estrangeiro?, ela repetiu, fingiu não entender. Mudei a conversa.

Mas no dia seguinte, ele procura-me. Surpresa, atendo ao telefone. Quer encontrar comigo de novo. São tantas as ofertas, penso mais uma vez. Logo descubro o motivo de ele me ter procurado. Paguei a minha parte na conta, tanto na Colombo como depois no outro restaurante. Comemos salada e tomamos vinho. Está o homem acostumado a mulheres que o exploram, jamais teve uma namorada brasileira que não lhe tenha tentado esvaziar os bolsos. Disse que admira as mulheres independentes.

Quero casar, digo a ele no encontro seguinte.

Casar?, faz que não entende. Casar, falo e aponto ao dedo, faço de conta que enfio a aliança.

Ele ri. Conversamos sobre casamento, em inglês.

Continua rindo. Veio ao Brasil com uma bolsa de pós-graduação. Ele é da Sérvia, faz uma especialização em cirurgia plástica. No seu país precisam de cirurgiões plásticos.

Você volta?, pergunto.

Sim, pretendo, fala em português, o sotaque pesado.

Pena, lamento.

Quer ir comigo?

À Sérvia? Impossível. Trabalho aqui, sou também da área de saúde.

Em que trabalha?

Sou dentista.

Não quer trabalhar na Sérvia?, pergunta e me espera.

Penso na minha analista. Ela acha que o que lhe digo significa o contrário. Insinua que não quero casar, e que a estrangeira sou eu. Será?

Sérvia é um bom lugar, tem oportunidade para dentista, diz ele com certa lentidão de pronúncia.

Passo a namorá-lo com mais constância e rolo na grande cama do seu quarto de hotel. Algumas vezes o levo ao meu apartamento.

Você usa roupas discretas, diz, as brasileiras usam roupas mais curtas, mais sensuais.

Você está reclamando das minhas roupas?

Não. Só reparo que é elegante.

Ah, sim, entendo.

Tento fazer que o homem decida ficar no Brasil, no Rio de Janeiro especificamente.

Não posso, tenho de voltar, Sérvia me espera, recebi uma bolsa. Ficar é desertar, tenta explicar.

Ah, sim, estrangeiros não desertam. Lembro que pode ser eu a estrangeira.

Você me quer sensual?, pergunto nua em seus braços, na cama de seu hotel.

Sensual, repete e beija meus lábios.

Do jeito das outras brasileiras. Quer a mim como prostituta?, pergunto em meio ao amor.

Prostituta, como assim?, o homem não entende.

Levanto, faço de conta que visto um vestido curtinho, frente única, nada embaixo.

Quer passear comigo? Eu, prostituta, falo e aponto a porta.

Ele olha o relógio, são duas da manhã. Eu nuinha, o vestido invisível. Parece gostar da ideia.

Vamos, diz.

Abre a porta, saímos. Quem sabe? Quero casar. Pode ser que assim ele fique. Estrangeira, eu, e pelada...

terça-feira, outubro 15, 2013

A equilibrista

Ele não sabia aquele meu segredo nem eu estava disposta a o revelar quando começamos o namoro. Falara-lhe apenas, Não saio com homem algum faz um ano. Sorriu, de forma maliciosa, e colocou o braço direito sobre o meu ombro. Mas não era verdade. Quando estou sem namorado, saio sozinha à noite, caminho pela cidade, a esmo. Nada de locais perigosos, nem facilidades para aqueles que me admiram. Ando entre as pessoas, sempre em lugares movimentados. Um desses lugares é o baixo Botafogo, onde há os cinemas. Muita gente se aglomera após as sessões, nos bares da Voluntário. É certo que praticamente não há mulher sozinha, e uma que senta num dos banquinhos e pede uma bebida causa surpresa. Para manter a discrição, prefiro bares onde existem bancos junto ao balcão. Olho os homens, sei que muitos têm seus compromissos, mas não faço perguntas. A princípio não deixo que descubram que os aprecio. Tenho um jeito especial de fazer as coisas. Caso alguém me flagre com o doce na boca, isto é, com os olhos nos seus, tenho de me virar. Terei problemas caso não me agrade; mas, se é bonito, tenho a solução. Ele se aproxima, tenta algumas palavras, quase um contraponto. Sorrio com o canto da boca. Recusar um homem sempre é um problema. Para o caçador, é fácil descobrir a fragilidade da caça. Então, voltando à pergunta do namorado que arranjei faz poucos dias, Não, não saio com ninguém faz um ano. Mentira lavada. Eu tomava um drink, vamos dizer, assim, uma bebida quase branca, meio transparente, bonita. O homem olhou para mm, descobriu que eu ainda segurava o bilhete usado do cinema.

Tinha três dias que eu vivera uma aventura e tanto, como tantas outras que acontecem uma vez na semana. É claro que para isso preciso me deslocar pela cidade, mudar de bairro e de ares. Na semana anterior foi a nota de um chá num café de shopping, Moça, moça, caiu da sua bolsa, veio-me um homem entregar o pedaço de papel. Dali correu o sorriso, o assunto e um apartamento na Marquês de Abrantes. Preciso de uma aspirina, falei assim que me devolveu o papel, Me lateja a cabeça. Tenho remédio melhor, e lá fomos os dois, tudo ardil de minha parte. Faço o jogo, mas o quero a meu favor. Nessas andanças semanais por lugares diversos, amantes inesperados e apartamentos alheios, acontecem muitas surpresas. Então descubro que na maioria das vezes namoro melhor com o perigo. Há aqueles que querem transar apenas, pessoas normais, desejam a mulher nua e sobem sobre ela. Mas também aparecem os que querem sensações maiores. O do papelzinho atirado ao chão queria minhas roupas nas mãos dele. Em troca me deu uma camiseta curta, justíssima, para vestir. A seguir começou a me namorar. Mas não vamos confundir as coisas, falo do homem anterior a esse do cinema, para deixar claro. Vesti a camiseta, apertadinha e um palmo acima do joelho. Quando pensei que o tal namorado começaria a subir as mãos por baixo do pano, ele me convidou para dar umas voltas pela cidade. Sair agora, tão tarde?, falei. Tarde nada, não chegava a dez da noite. Mas aceitei. Entramos num automóvel que estava na garagem do prédio e fomos nós cidade adentro. Você tira a camiseta?, propôs. Vou ter de passear nua?, ainda retruquei. Nunca andaste nua pelas ruas de uma cidade?, ele. Bem, faz algum tempo, pra falar a verdade já saí nua de casa, já voltei nua, mas pensava que esses costumes estavam em desuso. Tirei a tal camiseta que ele não demorou a fazer desaparecer. Lembrei então que o homem poderia me mandar saltar. Me vi nua, em via pública. Pensei nos garotos que fazem filosofia no Largo de São Francisco. Há um tempo que trabalho como substituta naquela faculdade. Eles gostaram de mim logo de primeira. Me convidam para beber, para passear. As noitadas só terminam ao amanhecer. E a preocupação de todos é apenas trepar comigo, aproveitar o meu corpo. Toda semana. Eu sempre sem par fixo. O revezamento se dá com alegria. Mas lá ia eu no banco do carona, nua. O homem teve imenso prazer nisso. Você tem o corpo perfeito, afirmou. Você acha?, eu, ingênua. Trepamos quase ao amanhecer. Numa rua do Jardim Botânico. E do lado de fora do carro.

Mas volto ao homem que conheci no bar, na saída do cinema. O bilhete na mão e o nome do filme revelando a minha identidade. Pronto, caso um homem saiba o filme que vi, é o mesmo que me surpreender nua. Roubando-me o bilhete, já sabe tudo sobre mim. Só que com ele não foi trepada de uma noite. Rolou um namoro. Sabia que aquele homem voltaria outras vezes. Por que não vamos juntos ao cinema?, chegou a perguntar um dia. Acho melhor termos segredos próprios, respondi. E fiz a tal revelação, Não namoro ninguém faz um ano. Ele acreditou. Passamos a nos encontrar duas vezes na semana. Mas não desisti das quartas, o dia dos garotos da filosofia. E esse meu novo namorado? Ah, costumes estranhos, sempre um tipo de tara. Mas, cá entre nós, as mulheres gostam de um pouco de tara, gozam melhor com o risco, não é mesmo? Eis o que ele me ensinou que me arrepiou tanto. Na verdade arrepiou a mim e arrepia a ele. Ensinou a me equilibrar nua. Isso mesmo, me equilibrar. Uma nua equilibrista. No sentido denotativo. Me leva à sua casa, estica um cordão bem na sala, me ajuda a subir, uma escada de três degraus, segura as minhas mãos e... lá vou eu, nua, em pele e pelo sobre um cordão. No começo, achei aquilo muito estranho. Mas depois, quando passei a me virar sozinha na tal corda, senti uma sensação e tanto. Imagino que no circo as pessoas adorariam ver nua a equilibrista. Ali, na casa dele, ia eu, com público único, ele, a gozar ao me vir atravessar a sala sobre a corda. Eu, sempre segurando uma vara para me ajudar a manter o equilíbrio. Quando desço do fio fino, meu coração está a palpitar, meu corpo quente. Ele então me toma nos braços e me deita no chão, ali mesmo debaixo da corda, e lá vou eu sobre ele, ou ele sobre mim, outro tipo de equilíbrio. Ah, os garotos da filosofia, será que gostariam de saber que sou equilibrista, ou querem apenas o meu corpo? Ou querem apenas o tênue fio que sustenta as abstrações, a metafísica? Sim, os garotos da filosofia ainda são muito jovens. Outro dia, quando descia do cordão e me atirava nos braços de tal homem, lembrei aquele que me levou nua no banco do carona. Deixei escapar ao recente namorado. Na praia, entre os postes da rede de vôlei, dá pra esticar o cordão. Ele me olhou, me beijou, Você sobe nua na corda? Eu, sentada, de pernas cruzadas, pétrea. Sim.

quarta-feira, outubro 02, 2013

Esperei então por ele

Seu Afonso, o senhor está me oferecendo duzentos reais. Aceito, mas promete não me pedir nada em troca? Trabalho para o senhor, tenho o meu salário, não é justo que me ofereça dinheiro a mais. Pessoas como eu sempre são necessitadas. Não tenho como negar. Se o senhor me oferece, aceito; mas, por favor, não me peça nada em troca.

Seu Afonso me olhou, sorriu e se retirou. Foi para o escritório terminar o que estava fazendo. Voltei à cozinha, pois faltava limpar o fogão.

De uns tempos para cá o patrão começou a me oferecer dinheiro. Contei a uma amiga, que me disse: “todos os homens são iguais, não demora e você vai ter de dar pra ele”.

Quando me ofereceu dinheiro pela primeira vez, dinheiro além do pagamento mensal, eu, surpresa, recusei.

Não preciso, seu Afonso, tenho o meu salário.

Passou uma semana e lá fui eu a ele:

Seu Afonso, já que o senhor ofereceu... Ouça bem, foi o senhor que ofereceu, ainda ressaltei.

Peguei as notas e guardei na bolsa.

No final do mês, quando me pagou o salário, tirei duas cédulas de cem e tentei lhe devolver. Ele deu as costas e se retirou. Fiquei com as mãos abanando. Que eu ficasse com as notas, falou, era um presentinho.

No mês que se seguiu, seu Afonso me deu um embrulho bem pequeno envolto em papel colorido. Abri. Era uma caixinha com um cordão de ouro dentro, a corrente fininha, muito bonita.

Seu Afonso, não é meu aniversário, não é justo que o senhor me dê um presente, isso deve ter sido caro. Não, seu Afonso, não faço desfeita, é que não é justo, o senhor já me paga o salário.

Eu tentava explicar. Mas ele, de novo, deu as costas e se foi.

Duas semanas depois, fui a ele. Estava sem dinheiro nenhum, precisava de um adiantamento.

Seu, Afonso, por favor, o senhor pode me emprestar cinquenta reais? Emprestado, viu?

Ele foi ao quarto, pegou o dinheiro e voltou com a nota de cinquenta.

No final do mês, assim que me pagou, deixei o dinheiro sobre a mesa da sala. Escrevi um bilhete. Agradecia e devolvia os cinquenta reais.

Mas no dia seguinte, logo que entrei, vi a mesma nota sobre a bancada da cozinha. Estava escrito: você esqueceu ontem sobre a mesa.

Tentei falar com ele, mas ele não quis conversa sobre isso.

E assim passaram-se os meses. O patrão sempre me pagando a mais, sempre a me presentear. Uma blusa, um colar, um brinquedo para o meu filho, um dinheiro para inteirar no aluguel.

Você precisa de um aumento, falou no mês passado. Vou aumentar o seu salário.

E passou a me dar vinte por cento a mais.

Mas, seu Afonso, o senhor paga o maior salário de empregada doméstica.

Ele apenas sorriu.

Um mês depois ganhei dois presentes. Um perfume e uma joia; desta vez, uma pulseira.

Seu Afonso, por favor, isso deve ter custado muito.

Ele deu de ombros.

Já não conto sobre os presentes a amiga alguma. Elas colocam olho grande. E dizem que pediriam mais, que se aproveitariam. Mas seu Afonso é legal, me dá tudo isso e não pede nada em troca.

Seu Afonso, falei hoje, o senhor nunca me pediu nada em troca, sorri. O senhor é uma pessoa legal, tem caráter. Se fosse outro...

Não aguentei, fui chegando perto dele. Estava caindo de madura.

Posso beijar o senhor? Ninguém jamais fez tanto por mim.

Ele deixou que eu o beijasse.

Seu Afonso, continuei depois que afastei meus lábios do seu rosto, o senhor espera um instantinho? Quero lhe fazer uma surpresa.

Ele arregalou os olhos, acho que entendeu.

Fui ao quarto de serviço e tirei toda a roupa. Voltei nua. Nua e silenciosa. Caminhei até a sala. Parei a meio metro de onde estava sentado. Mas continuei em pé, as pernas juntas, as mãos cruzadas um pouco abaixo do umbigo. Sorri, um sorriso meio de vergonha e meio de mulher sem-vergonha.

Seu Afonso, suspirei.

Ele olhou o meu corpo.  Sorriu, um sorriso de satisfação.

Esperei então por ele.