terça-feira, dezembro 23, 2014

No final das contas

Resolvi deixar para ficar nervosa depois. Olhei para Vilma e, com um movimento de olhos, lhe tentei dizer que devíamos aproveitar para nos divertir. O segredo era mostrar que estávamos gostando do passeio e da aventura. O homem, que parara o automóvel à margem do lago, tentava nos mostrar alguma coisa dentro da noite, que não conseguíamos ver. Estava excitado por estarmos nuas ao seu lado, mas em nada se mostrava ameaçador.

Lembrei as palavras de minha amiga, “Célia, não devemos aceitar carona de um desconhecido, tanto mais a essa hora da madrugada.”

“Qual a outra alternativa?”, ainda repliquei.

Depois, já dentro do carro, fui eu que fiquei surpresa com a resposta de Vilma quando ele perguntou:

“Vocês gostam de dinheiro?”

“Adoramos”, respondeu por ela e por mim.

Eu teria dito o mesmo, mas que o conseguíamos com o nosso trabalho. Vilma, no entanto, respondeu de modo impensado. Então ele fez a proposta. Daria dois mil a cada uma de nós. Ela sem pensar disse sim.

“Vilma, qual o interesse do homem em nos dar tanto dinheiro apenas pelo prazer de nos ver nadar sem roupa num lago, às três e trinta da madrugada?", eu a teria alertado.

Mas já havíamos guardado as notas de cem dentro das bolsas, que pousamos sobre uma pedra que ficava num recuo, entre a estrada e a pequena extensão de areia. Com os calcanhares dentro d’água nos pusemos a ir em frente.

“Nem está fria”, ela constatou.

Caminhamos até a água nos cobrir os ombros. A partir dali, começamos a nadar os cinquenta metros combinados com o homem. Fazia parte da aposta. Tive vontade de dizer que o desconhecido poderia ir embora levando nossas bolsas enquanto nadávamos, mas preferi guardar para mim essas inquietações.

Nada disso aconteceu. Cumprimos o que prometemos. E ele cumpriu sua palavra. Ao voltarmos à margem nos esperava do mesmo modo como o havíamos deixado. Sua face sempre revelando intensa euforia.

Ao sairmos d’água, pediu com humildade:

“Esperem ainda um momento.”

“Não foi isso que combinamos”, adverti. Mas me mostrei plena de sorrisos.

“Quero apenas contar uma história engraçada”, falou e começou uma estranha narrativa.

O homem se pôs a descrever a vida sexual dos cavalos. Falava e olhava diretamente para nossos corpos. Pela primeira vez senti que a roupa me fazia falta. Mas permaneci em pé, sem demonstrar a falsa segurança que me envolvia, mantinha as mãos paralelas ao corpo. Escutamos toda a história. Vilma aparentava cada vez mais surpresa à medida que ele avançava e entrava em detalhes sobre o sexo daqueles animais. Em algum momento ela, franzindo a testa, deu um passo à frente e apoiou as mãos à cintura.

Quando ele terminou, já estávamos com o corpo quase seco. Pegamos nossas bolsas e voltamos ao carro. Vinte minutos depois, entrávamos na cidade. Ainda estava escuro. Parou o carro a uma quadra do terminal de ônibus, que estava vazio àquela hora. Despediu-se e disse que saltássemos.

“Ei, não podemos ficar aqui, logo aparece alguém”, Vilma alertou.

Sugeri então que nos deixasse no parque. Como ainda não raiara o dia, teríamos tempo para pensar sobre o que faríamos.

Pôs o carro de novo em movimento e dirigiu até uma das extremidades do parque, um local bastante arborizado. Descemos. Ele nos acenou e partiu.

Até hoje não encontramos sentido para tudo o que aconteceu naquela madrugada nem o motivo que nos levou a ganhar tanto dinheiro.

“Ah, Célia, existem loucos de todos os tipos”, Vilma disse ao conversarmos dias depois, “no final das contas, não nos saímos mal”, acrescentou.

quarta-feira, dezembro 17, 2014

Se desapareço

Adoro vir ao Rio, sabia? É muito bom. Você não imagina por que digo isso. Mas falo, bem ao pé do seu ouvido, é porque aqui posso andar nua. Falo sério, não acredita? Na minha cidade, eu jamais poderia andar nua como aqui. Lá é preciso viver de aparência. Aqui, é diferente, muito diferente, você não precisa dar satisfação a ninguém. Outro dia vim à praia, ali no posto seis, em Copacabana, sentei junto a uma das mesinhas no último quiosque e pedi água de coco. Estava só, e apenas de biquíni. É uma maravilha poder ficar de biquíni na orla de Copacabana, andar pelo calçadão, tudo na maior liberdade. Ninguém na minha cidade sabe que vim ao Rio para isso, andar nua. Reparo que ao estar apenas de biquíni, não apenas à beira da praia mas também nos quiosques, os homens me olham com intensa satisfação. Sinto-me então mais nua. Outro dia um senhor veio conversar comigo, isso mesmo, um senhor, foi uns dias antes de conhecer você. Ele perguntou se eu era de fora. Fiquei surpresa. Nada havia falado até aquele momento e ele veio com a pergunta, adivinhou quase tudo sobre mim. Primeiro achei que fosse por causa do biquíni, tão mínimo, depois descobri o motivo, eu sempre me mostro muito dada. Isso mesmo, muito dada. Tenho uma amiga que diz que eu realmente dou muito! Engraçado, não? Brincadeirinha, eu, dar? As cariocas não dão muita conversa e nem olham para os homens. Ou melhor, olhar olham, mas possuem uma técnica especial de olhar sem se deixarem ser notadas. Você já viu alguma carioca ser fisgada espreitando um homem? Não, claro, isso não é possível. A carioca não cai numa rede. E se caísse, seria um escândalo. Acho que morreria de vergonha. Elas adoram andar nuas, mas o fazem como se fossem as mulheres mais vestidas do mundo. Fingem um pudor... Mas volto ao homem, depois falo mais de um fato que descobri nas cariocas, quero dizer, numa delas. O tal enamorado aproximou-se e estabeleceu um diálogo comigo. Como eu trazia uma revista, ele esticou os olhos para ver do que se tratava. Perguntou se poderia sentar à mesma mesa em que eu estava, no quiosque. Eu disse que sim, que ficasse à vontade. Ele se pôs a conversar sobre o assunto da capa da revista. Era uma revista de turismo, dessas que vêm uma vez na semana junto com o jornal. Uma reportagem sobre Cartagena, na Colômbia. O homem se apresentou, Jorge, e se pôs a falar de uma viagem que fizera àquele país. Não sei se era verdade o que ele contava, mas falou de coisas muito interessantes, disse inclusive que a cidade era a preferida de Gabriel Garcia Marques, aquele escritor de “Cem anos de solidão”. Meu admirador ficou um tempo enorme falando sobre a viagem, sobre os pontos turísticos da cidade. A seguir pediu que eu falasse de onde eu vinha. Contei então um pouquinho sobre Minas. Minas?, ele mostrou-se surpreso. As mineirinhas são muito espertas, afirmou e sorriu. Caí na gargalhada, então. Falei da minha cidade, do trabalho. Ele quis saber o que faço na vida. O que uma mulher do interior pode fazer além de ser professora?, respondi com a pergunta. Professora de quê?, continuou sorrindo, minha presença parecia o iluminar. De química? O homem gostou. Sempre é preciso rolar uma certa química, fez uma piada. Aliás, aqui no Rio as pessoas gostam muito de trocadilhos, já reparei isso. Vira e mexe inventam uma piada, mudam o sentido de uma palavra, de uma frase. O homem então me convidou para almoçar, queria que eu permanecesse com ele boa parte do dia. Como eu não conhecia ninguém nem tinha o que fazer, acabei aceitando. Você sabe, quando uma pessoa representa, tudo dá certo. Ele estava morrendo de vontade de tirar uma casquinha comigo. E eu também estava com a mesma vontade. Nenhum de nós, porém, falou nisso abertamente. Fomos ficando juntos, o tempo passando, o dia avançando e acabamos namorando. Mas foi um namoro light, aqui mesmo na praia. Você sabe, não precisa ficar com ciúmes, na praia não é possível nada além do que um namoro light. Fiquei com o número dele e ele com o meu. Mas não sei o que houve, nenhum de nós telefonou. E depois conheci você. Caso ele apareça, é isso que você quer saber, não? Caso ele apareça, apenas o cumprimento, falo que estou ocupada ou mesmo de malas pronta para voltar a Minas. No Rio as pessoas são discretas, não ficam perseguindo umas às outras. Principalmente aqui na Zona Sul. Os homens respeitam a vontade das mulheres. Quando uma diz que não, é não, e pronto. Lá na minha cidade é ruim para arranjar namorado. Quando acontece, os homens querem compromisso. Não aceitam que a gente fique com eles um dia ou dois. Logo acham que têm poder sobre nós. Eu, com essa mania de gostar de andar nua, acabei certa vez fazendo o comentário a uma namoradinho de ocasião. Ele, então, pediu para eu sair nua, no carro dele. Achei ótima a ideia. Resultado: o cara ficou tarado por mim. Foi um problema depois pra eu me livrar dele. Aqui, não, pode-se arranjar um namorado para apenas duas horas, para uma noite, no dia seguinte ambos desaparecem, ninguém incomoda ninguém. Do mesmo modo, é possível conhecer uma pessoa pra ficar conversando, sem segundas intenções. E as moças disfarçam, mesmo que transem com todos os rapazes. Outro dia dei um mergulho e esbarrei numa mulher bonita, a tal história da carioca. Não era tão moça, devia já ter passado dos 30 ou estar beirando os 40. Ela, assim como eu, estava nua e parecia sentir o maior prazer nisso. Fiquei pensando, como a nudez pode proporcionar tanto prazer às mulheres. Ela dentro d’água, só de top. Não me pergunte se a mulher já havia entrado nua na água ou se tirou o biquíni e pediu a alguém que o guardasse. Não sei lhe responder. O que pude perceber é que demonstrava um prazer intenso, e nem estava preocupada. Fiquei de olhar como iria fazer para sair da água daquele jeito, mas me distraí e a perdi de vista. Depois me bateu a dúvida, ela estivera nua mesmo ou foi impressão minha? Você ficou excitado com a historinha?, quer me roubar o biquíni e me deixar nua aqui dentro d'água? Quem sabe, olha que deixo, e já imaginou se desapareço... Você vai ficar a ver navios. Literalmente.

quinta-feira, dezembro 11, 2014

Roupa do corpo

Você não me acompanha?, sugeriu. Quem sabe, respondi atrevida. Olhares são capazes de tudo, e o homem possuía uma dessas maneiras de devassar o mundo. Olhou nos meus olhos e descobriu o que eu pensava, olhou o meu corpo e me deixou nua. E eu que vinha tão vestida. Uma saia comprida, marrom, quase até os pés; uma blusa branca, com alguns enfeites, um falso bordado muito sutil. O homem não deixou de observá-lo e de plagiá-lo; ainda um casaquinho aberto, de uma malha suave, café com leite. Ele me seguiu. E eu, em frente. Vínhamos pela Prudente de Morais, os carros nos defrontavam. Entrei então numa transversal, na direção da Visconde de Pirajá. Nuinha. As outras pessoas pensavam nos seus problemas naquela tarde de quinta-feira, não tiveram tempo de prestar atenção em mim..

Como a perseguição era lenta tive tempo de lembrar, enquanto escapava, a conversa que tivera com uma amiga na semana anterior. Ela falava do filho. Estava preocupada porque o rapaz chegava a casa trazendo as calcinhas das namoradas. Por que a preocupação?, perguntei. Não fica bem, foi o que falou. Minha amiga é muito católica. Acho que pensava nas más vibrações que as calcinhas alheias lhe trariam ao lar. Deixa o rapaz se divertir, falei. Diversão?, ela franziu o cenho. Vai dizer que você, pelo menos uma vez, não gostaria de chegar a casa sem calcinha?, perguntei com o olhar de prazer. Não, nada disso, pelo menos é o que penso, sei que você tem outra doutrina, chegou a dizer. Continuamos o nosso diálogo. Não brigamos por causa disso. Conversamos outras coisas e tomamos café.

A lembrança era fruto do olhar larápio do homem. Isso mesmo, larápio. Há quanto não ouço a palavra. Mas ser escritor é isso, enumerar palavras, e algumas tão antigas. Só o tal ladrão sabia o que de mim levava. Mas não perdi o brilho. Entrei na Visconde de Pirajá e segui na direção da Garcia D’ávila. Mas parei no meio do caminho. Encontrei a livraria da Travessa. A sensação de nudez, então, diminuiu. Misturei-me aos livros. Tornei-me uma personagem apenas observada por leitores atentos. Sabem vocês que os livros são transparentes? Mas apenas para poucos. Deparei com Proust e seu Em busca do tempo perdido. Senti que o tempo passava e eu envelhecia. Não aparentava, mas envelhecia. Voltou-me a cabeça a coleção de calcinhas do filho de minha amiga. Vai ver o garoto quer manter a infância, um desejo inconsciente, não quer o tempo a passar. Avistei o homem que me despira na Prudente. Era ele mesmo ou tudo literatura, imaginação? A bancada principal exibia muitos romances. Alguns sérios; outros escritos por mulheres que tentavam escapar do rótulo de mulherzinha. Mas será que existem romances sérios?, perguntei a mim naquela hora. Tive um namorado que dizia com a voz tonitroante: só leio livros técnicos. Livros técnicos são tão sérios assim? Por delicadeza guardei a pergunta. Por delicadeza, deixei que me tirasse a roupa. O sexo não é um livro técnico, pensei também na ocasião. Por mais que existam livros que ensinam sua técnica. Na maioria das vezes, somos arrastados pelo desejo. Em busca do tempo perdido, e o tempo passava, e já eram quatro da tarde. O homem da Prudente se aproximou do balcão de poesia.Edições portuguesas. Trocava-me por um poema. Talvez eterno. Os poemas não envelhecem. Alguém grita “falo a língua de Camões” faz quatrocentos anos e Camões continua da mesma idade; ora jovem e aventureiro ora cego. Arrastei as mãos sobre várias brochuras, uma francesa, seria a nova edição de Madame Bovary? Eu, Madame Bovary? O título me servia direitinho. Mas havia Proust, e eu envelhecia. Por favor, leva-me ao teu quarto, faz como o filho de minha amiga, rouba-me a calcinha.

O homem na verdade disfarçava. Arre aos poetas. Ele queria a mim. Aproximou-se. Teria ouvido o meu desejo? Vamos comigo, quem sabe um café, ofereceu. Vou, dei de responder, e não precisa me devolver a roupa do corpo.

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Ladrão de vestidos!

Eu usava um vestido bem leve, de verão. Lembrei a observação que um amigo fizera certa vez. Disse que, ao ver as mulheres com roupa curta e leve, imaginava que muitas delas nada usavam por baixo do vestido. Ri e devolvi o que faria uma mulher andar sem calcinha? Ele falou que havia muita coisa em jogo, como sensações mais profundas. Perguntei então  se ele entendia sobre gozo feminino. Apenas sorriu e mudou de assunto. Isso acontece muito. Os homens pensam que as mulheres funcionam assim como eles; na maioria das vezes, no entanto, o que provoca tesão neles não produz o mesmo efeito em nós, mulheres. Eu usava o tal vestido leve e andava pela Visconde de Pirajá. Muitas pessoas olhavam as vitrinas, outras iam apressadas aos pontos de ônibus, e era possível também adivinhar turistas, sempre em férias no Rio, andando de um lado a outro como alguém que não quer nada, ou quer experimentar a novidade que já não descobre no seu local de vida. Confesso, apesar do vestido leve, poucos homens olharam para mim. Não é que eu já não seja bela ou que já vá entrada nos anos. As pessoas têm tantas coisas bonitas para apreciar, que olhar qualquer mulher passante torna-se algo comum. Sentei num café, ali num início de galeria comercial, logo depois da livraria da Travessa. A garçonete trouxe o enorme  cardápio. Quanto mais diminuem as xícaras de café, mais aumentam o tamanho dos cardápios. Cruzei as pernas, olhei para dentro da cafeteria e vi um homem, que eu conhecera certa vez, tomando o seu café. Não me reconheceu de imediato, ou não quis demonstrar, talvez discrição exagerada. Ele, num outro dia, puxara conversa comigo na livraria da Travessa. Falara muito sobre um livro de poesia que organizou, reunindo diversos poetas. Era ele mesmo, tomava seu café num dos cantos da loja. Quando conversamos, o tal homem me paquerou descaradamente, fez até um convite para irmos a outro lugar. Como eu não podia, disse que deixássemos para o dia seguinte, quando estaria livre. Ele insistiu, insistiu muito para sairmos na mesma noite. Mas recusei, na ocasião eu tinha realmente um compromisso. Deixei o meu número, mas ele não telefonou. Há homens que perdem uma boa mulher porque não tem a paciência necessária. No fundo da cafeteria, ele não deu mostras de que se lembrava de mim. Nem eu daria a ele o sabor de dizer que não esquecera sua fisionomia. A garçonete trouxe um expresso com um biscoitinho, e eu me pus a saborear o café. Ajeitei o vestido, sua fragilidade poderia denunciar meu corpo ou algum tipo de atitude que eu não queria naquele momento. Cruzei as pernas na direção oposta, sem que ninguém observasse. Foi então que uma moça me veio pedir um autógrafo. Autógrafo?, repeti. Ela me reconhecera, comprara dois livros meus e dizia gostar muito de minhas histórias. Autografei numa espécie de caderneta, que ela trazia na bolsa. Gosto muito daquele conto em que você espera o ônibus, de madrugada, num lugar quase deserto e você diz que o vento fustigava as pessoas e levantava os vestidos. Ah, soprei, sei qual o conto, mas não sou eu não, é uma personagem. Ela riu. Disse que toda personagem tem um pouco da autora. Nisso você tem razão, um autor também é todos os seus personagens, mas há alguns que gostaríamos de ver distantes. Como aquele que lhe roubou o vestido!, ela acrescentou. Tratava-se de outro conto, que todos vocês já devem ter lido. Cuidado, acabei por dizer, embora não devo alertar você a respeito dos perigos da literatura. A senhora acha a literatura perigosa?, ela parecia ansiosa. Depende, sabe, não se deve pôr em prática o que se lê nos livros, isso é romantismo exagerado e antigo. Ela ouviu, guardou a pequena caderneta na bolsa, virou-se para mim, agradeceu e despediu-se. Quando estava prestes a partir, concluiu gosto muito de literatura, de todos os estilos, mas o que você escreve me dá imenso prazer, sobretudo quando estou sozinha. Ela se foi. Fiquei a pensar o que é ter prazer e o que é estar sozinha. Ah, meu vestido leve, na verdade parecido com o da personagem que resolve ficar nua num ponto de ônibus, de madrugada. Ela achava que não passaria ônibus algum àquela hora. Como não passou. Mas passou um ladrão de vestidos!

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Par de botas, tênis cano longo, nós e laçarotes


Não sei dar nós, logo desatam. Ou não demoro a me embaraçar. Por que estou a falar nisto? Talvez por causa do par de botas que tento calçar. Botas de cano longo, até os joelhos; para completar, dois cadarços muito compridos. Portanto, nós e laços. E sou horrível nisso. O calçado, que me insufla ares de elegância e sensualidade, foi presente de um namorado. Apaixonei-me defronte à vitrina. Explico melhor, apaixonei-me pelas botas. O homem galanteador, ainda com ares de rapaz (apesar do ar jovem entende as mulheres), pagou-me a prenda. Em casa, quis recompensá-lo. Enfiei-me nas botas, apenas a pele. Apareci diante dele. Estupor. Uma mulher nua dos joelhos para cima. Pode fotografar, autorizei, desde que não me poste no facebook. Quem acredita na palavra de um namorado? Façamos de conta. O flash piscou várias vezes. A foto mais interessante – meu o julgamento – é a que apareço agachada, dobrada sobre os joelhos. Depois? Não tem graça contar mais...

Saímos algumas vezes. E ele me queria de botas. Ficarei conhecida como a mulher de botas, afirmei. Lembra o gato? Riu. Na mesma vitrina, três semanas depois, uma sandália de saltos, prateada! Não precisei pedir. O ritual, eu apenas de sandália.

As botas lembram um namorado de outros tempos. Íamos à Cascatinha. Muitos não lembram o local. Mas fica dentro da floresta da Tijuca. Acho que já falei nisso aqui. Passáva por baixo de uma ponte (ainda deve estar lá), e apreciávamos o volume de água montanha abaixo. Chegava a respingar nossos corpos. Os casais iam à noite, para namorar, e não saíam dos automóveis. Eu queria a natureza. Ele me pedia vamos ficar no carro. Nada disso, primeiro quero a vista, o cheiro próximo das árvores, as gotas da chuva gelada que vem da montanha. Então aconteceu. Escorreguei e molhei todo o vestido. Acho que já era o meu desejo. Como fazemos?, ele, preocupado. Nada, esperemos, respondi. Tirei o vestido. De botas, apenas. E do lado de fora do automóvel. Entre, alguém pode ver você nua ele, preocupado, insistiu. Não vê, não; as pessoas vieram aqui para namorar, não enxergam nada além disso, venha comigo, ordenei, Como assim?, assustou-se. Venha logo e não faça perguntas. Adentramos a mata. O tanto que nos afastávamos, ele mais se preocupava. Você está nua, como vamos fazer para voltar?, ele. Não respondi. Acho que subimos duzentos ou trezentos metros. Numa noite escura, em meio ao arvoredo e aos tantos volteios que precisávamos fazer para nos desviar de obstáculos maiores, era uma boa distância. Ao encontrar um sítio mais largo, com muitas folhas secas caídas sobre a grama e o ar quente, abracei-o e quis trepar com ele. Apesar da apreensão, ele me obedeceu. E até gozou. Na semana seguinte, voltamos ao lugar. É melhor não abusar, ainda advertiu, confiança demais é capaz de estragar tudo. Mas seguimos o mesmo caminho, encontramos o mesmo prado, e fizemos de novo amor.

Oh, a vitrina traz também um tênis de cano longo. As meninas de dezesseis ou dezessete anos adoram esse tipo de calçado. Acho que compro um. Não, não compro. Meu namorado não há de me negar. Na última quarta-feira, fiquei enfeitiçada diante da tal vitrina durante vários minutos.

O que leva os homens a gostarem das mulheres nuas e de botas, nuas e de tênis cano longo? Não sei ao certo, mas acho que são os nós. Eles gostam de nos ver embaraçadas. Nuas e embaraçadas. Mas acho que têm razão. Há certo charme nisso.

Algum de vocês pode me ajudar? Preciso desatar estes nós! Prometo que mostro onde fica a Cascatinha...

quarta-feira, novembro 26, 2014

Respingos

Eu o conduzi por um caminho que ele não conhecia.  Atravessamos a ponte, só que por baixo dela, equilibramo-nos sobre as pedras. A partir de determinada distância, era possível apreciar a torrente de água que escorria de cima da montanha. No ponto onde estávamos, a água passava por sobre as nossas cabeças, apenas alguns respingos nos atingiam. Quero uma frase especial para este momento, disse a ele. O ar quente de sua expiração aquecia o topo da minha cabeça. Sorriu. Uma frase?, chegou a repetir. Isso, continuei, uma frase que impressionasse, assim como os escritores; você sabe que alguns chegam a roubar frases de outros autores para colocar nas próprias histórias?, lógico que não roubam as mais famosas, ia dar na pinta, mas as medianas, aquelas que dificilmente alguém vai perceber que outro é o autor. Não sabia que você conhecia assim a literatura, contrapôs. Mas que aqui é bonito não resta dúvida, não é mesmo?, inclinei a cabeça um pouco para cima com a boca lhe pedir um beijo. Ele me abraçou, me beijou e falou a melhor frase é você com toda essa sua beleza. Ao terminar, me beijou outra vez. Você conhece este lugar faz muito tempo?, quis ele saber. Sim, vinha muito aqui quando tinha dezessete ou dezoito anos. Hum, vinha com o namorado, não? Apenas sorri. Ele entendeu. Puxei-o por um dos braços e atravessamos toda a ponte, ficamos ao lado esquerdo da cachoeira. Pena não ser possível tomar banho, falou. Quem sabe, interferi, caso esteja bastante quente... Mas é proibido, alertou. Sempre houve proibições, e sempre houve quem as transgredisse, retruquei. Daí em diante permanecemos em silêncio durante algum tempo. Acendi um cigarro, dei duas tragadas seguidas e soltei a fumaça com a cabeça voltada para cima, reparei quando ela se perdeu na escuridão. Caminhamos de volta, sob a ponte. Na outra extremidade voltamos a ter a sensação de que a água passava por sobre as nossas cabeças, sem nos molhar. Olhamos para cima, tentávamos apreender aquele momento em sua totalidade. Você vinha aqui, então, quando tinha dezoito anos, ele voltou ao tema. Vinha, afirmei, e ficava pelada. Olhou os meus olhos, uma faca de ponta, estava surpreso. Como?, quis saber. Não liga, não, brincadeirinha, esquece. Não posso esquecer, sei que você não ia brincar com uma coisa dessas, insistiu. Você gosta de mim, não?, lembra aquela verão em em Copacabana?, perguntei para ver se ele esquecia o assunto, você pediu que eu saísse de casa com o vestidinho que usava para ir à praia, mas sem nada por baixo; era uma saidinha de praia para usar sobre o biquíni, mas fiz a sua vontade, não?, acrescentei. Verdade, confirmou. Então, faço tudo que você pede, dou o maior prazer, está bem assim, não?, eu queria colocar um ponto final. Ele nada mais falou, mas parecia não estar convencido. Tomei de novo um de seus braços e seguimos o caminho acima, que nos deixou na rua de entrada da floresta. Ao longe, estava o restaurante. Quero tomar uma dose de vodca, falei. Dei-lhe um beijo numa das bochechas. Caminhamos na direção do estacionamento. À direita ficava a entrada do restaurante. Quando já estávamos sentados a uma das mesas e o garçom já fora buscar nossas bebidas, ele voltou ao assunto. Você gosta de ficar pelada, não é mesmo?. Eu?, acho que toda mulher. A minha mãe não gosta, tentou contra-argumentar. Como você pode ter certeza disso?, outro dia descobri uma senhora de oitenta e cinco anos que me contou que quando está sozinha fica nua, dentro de casa, sua mãe é muito mais jovem, deve gostar também. Você ficaria nua de novo, lá debaixo da ponte, sob as águas da cachoeira?, afoito, perguntou. Ah, agora essa, não sei, quem sabe depois da dose de vodca?, sorri ao dar a solução, reparei que o garçom chegava com as nossas bebidas.

quinta-feira, novembro 20, 2014

Sonata para piano

Ela havia sentido uma ponta de prazer. E o pior é que ele notara. Na certa, não a perdoaria...

Ou melhor, queria contar essa história em terceira pessoa, mas a mulher era eu e, de verdade, já me havia aberto demais; ele, grudado às minhas costas; eu sem me poder mexer.

Ia num ônibus repleto, um fim de tarde. Todos sabem como é a condução nos arredores das grandes cidades. Em BH, então, nem se fala. Voltava do trabalho. Vestia jeans, uma blusa branca de mangas curtas, curtinhas mesmo, fazia calor, na cintura o tecido era larguinho, disfarçava qualquer ameaça de barriguinha. Estava em pé, as pessoas passavam rente às minhas costas. Observei algumas. Uma menina com a mãe, provavelmente voltava da escola; um rapaz carregando uma mochila; uma mulher jovem, de óculos, com aspecto de secretária; depois passou um homem negro, achei sua altura exagerada, vestia calça azul e camiseta marrom, sem gola, vinha de cara fechada. Daí em diante me perdi em pensamentos, preocupações diárias, uma lembrança ou outra que nos assalta quando reparamos algo na rua, um portão, o letreiro de uma loja, o cheiro de pão que vem de uma padaria. Ao saltar do ônibus, reparei que meu celular não estava na bolsa. Fiquei desconfiada do homem negro, grandalhão. Não sei por quê, mas sempre achamos que os ladrões têm cara de ladrões. Às vezes isso é um ledo engano. Mas cismei. Apesar de sempre dizer não ao preconceito, cismei que o negro roubara-me o telefone.

Passaram-se duas semanas e ia eu na mesma linha de ônibus. Quase as mesmas pessoas, o empurra-empurra de sempre. Assustei-me ao descobrir, entre os passageiros, o mesmo grandalhão suspeito. Agarrei a bolsa e tentei olhar um ponto neutro na paisagem. Não mais procurei o homem, não mais olhei pessoa alguma. Depois de saltar, reparei que faltavam vinte reais, apenas uma nota, eu a levava no bolso de trás da calça.

Nas semanas que se seguiram, viajei no mesmo itinerário, mas ele não apareceu. Eu olhava os passageiros em detalhes, procurava observar neles algo que revelasse suas personalidades. Não me queria preconceituosa de só achar o ladrão no corpo e na fisionomia do negro. Avistei uma senhora gorda, estava sentada num dos bancos além da metade do coletivo. Apesar de aparentar idade – entrava pelos quarenta, ou mesmo pelos cinquenta – seu rosto emanava felicidade, mantinha a aparência de adolescente, quase infantil, trazia sobre o colo duas bolsas de papel. Tentei em vão descobrir o motivo de toda aquela felicidade.

Duas semanas adiante, quando já não pensava no homem, avistei-o de novo. Num primeiro momento senti o corpo todo arrepiado. Não sei se de medo ou se por outro motivo. Lembrei que trazia uma nota de dez num dos bolsos da calça, mas dessa vez no dianteiro. Ainda pensei em, num movimento rápido, esconder o dinheiro na palma da mão. Assim fazemos na infância, quando sob as ordens de algum adulto vamos ao armazém da esquina comprar o ingrediente que falta para completar o prato do almoço. Mas acabei deixando o dinheiro no bolso, intocado. Senti o homem passar suave às minhas costas. Esforçava-se para não me espremer na barra do banco transversal, talvez tivesse certo pudor ao me esbarrar. Não o senti a me tocar o bolso em momento algum. Quando saltei, no entanto, a nota de dez me faltava.

“Era uma época em que eu não conseguia escrever e me sentia atormentada por aquela espécie inaudível de barulho.” A frase, copiei-a de um livro. Às vezes descubro uma frase que gostaria de ter escrito. Espero, então, o momento certo de usá-la. Mas emprego-a de modo disfarçado. Troco alguma palavra ou aplico-lhe um desvio, porém de modo que não lhe roube a graça original. Ela, a frase, representou exatamente o que eu sentia nos dias posteriores a que vira o tal homem, ou o tal ladrão, melhor dizer assim. Aquela espécie inaudível de barulho era a face sorrateira do homem que eu cismava encontrar no rosto de outros negros que me cruzavam o caminho. Os dias se demoravam. Eram tardes intermináveis. Eu sentava na poltrona da sala com um livro nas mãos. As listras de sol, que atravessavam a janela, avançavam com lentidão sobre o assoalho. Quando me atingiam os pés, eu já não encontrava nesse sol o calor necessário para aquecer meu espírito. O crepúsculo trazia o vento frio, que eu queria de um mar impossível.

Já na primavera, resolvi sair. Era setembro. Embarquei num ônibus em busca de uma biblioteca pública. Não demorei a chegar ao centro da cidade. As pessoas mergulhadas nos livros, o som inconfundível das bibliotecas, o mundo do silêncio. Na volta, mesmo de pé, agarrada a uma as vigas, vinha lendo o livro que apanhara de empréstimo. Foi então que ele apareceu. Entrou imenso, percorreu grande parte do corredor e parou bem atrás de mim. O ônibus, como sempre, pleno de pessoas. O homem estacado às minhas costas, bem seguro, bem posicionado. Lembrei que desta vez não trazia dinheiro no bolso. Melhor, nem bolsos tinha, viera de vestido, justo, que me deixava as pernas de fora. A primavera já incendiava boa parte das mulheres. O que ele me roubaria? Numa das mãos eu segurava uma pequena carteira. Dentro, duas notas de vinte, uma de cinco e duas moedas. Trazia também o cartão do banco e a identidade. Fechei o livro e sustentei sob o braço esquerdo todo o peso daquela história. Pensei em abrir a carteira e lhe entregar o dinheiro. Que me deixasse em paz, de volta à leitura. Mas fiquei apenas no pensamento. Depois, comecei a sentir certo calor. Não tenho vergonha de confessar. Enfim, descobri o que ele me queria roubar. Logo, ali, dentro do ônibus, em meio à multidão de sessenta passageiros, que escândalo... Suas mãos tatearem-me as coxas. Eu as sentia. Não tinha a mesma habilidade de quando praticava seus furtos. Cheguei a pensar em gritar, alertar quem estava à minha volta, quem me poderia ajudar? Mas nada fiz. Depois acabei achando melhor assim. Levava o seu objeto de desejo e eu mudava de bairro, ou de cidade. E não o encontraria mais. Apesar de ser atirada, nunca vivera tal experiência. Vinha com mescla de medo e mais de alguma coisa que, dias depois, descobrir ser prazer. No momento pensei, faço de conta quer sonho. E nos sonhos tudo é permitido... Ele avançava. Que não me levasse o vestido, que não me deixasse toda nua. Surpreendi-me quando o vi sobre passeio, acabado de descer. Ainda a multidão a me espremer, ainda suas mãos desajeitadas a tentar uma sonata por baixo do meu vestidinho.

quinta-feira, novembro 13, 2014

Pezinho

Eu sabia que Newton gostava de circular de carro pelas madrugadas de M. à cata de mendigas que dormiam pelas calçadas. O homem tinha tara por mendigas. Elas, apesar de escoladas no perigo das ruas, não conseguiam escapar. Ele as segurava com força, amarrava-as caso necessário e as colocava na mala do carro. De início pensavam que seriam mortas. Mas quando percebiam que o mesmo homem desatava os nós que lhes prendiam braços e pernas, dentro de uma suíte de motel, tranquilizavam-se. Ainda desconfiadas não se mexiam quando o desconhecido, com toda delicadeza do mundo, as banhava em água quente. Já na cama, tudo mudava de figura. Newton proporcionava enorme prazer a todas.

Aos poucos as mendigas da cidade passaram a arrepiar-se ao ver o automóvel do amante aproximar-se. Já não resistiam. A única exigência que ele fazia é que haviam de ir dentro da mala. Uma vez que ainda exalavam o odor fedorento das ruas, não poderiam ser transportadas no banco do carona. Algumas, em má matemática, contavam nos dedos os dias que haviam passado desde a última trepada com o magnífico amante. Newton as tratava como rainhas muito desejadas. Ninguém, no entanto, falava sobre isso na cidade.

As mulheres sempre são ardilosas. Eu, mais ainda. O segredo chegou, enfim, aos meus ouvidos. Primeiro achei que fosse invenção. No entanto, logo descobri a verdade. Bastou-me um dia seguir Newton em uma de suas saídas. Embora sempre apaixonada por ele, jamais consegui sua atenção. A partir do que pude observar, resolvi tornar-me uma das mendigas, na cidade. Ao menos durante algumas horas na semana.

Fazer-se de mendiga não é tarefa fácil. A rua é um lugar perigoso. Há homens que não livram a cara de mulher alguma, nem da mendiga mais maltrapilha. Tive de fugir deles várias vezes. Nem sempre consegui. Numa ocasião, depois de intensa resistência, tive de me largar nas mãos de um desconhecido. Temi contrair doença maligna. E o homem, no final, não me deixou vestida. Tive de rebolar para conseguir chegar nua em casa. Como meu objetivo era Newton, aceitei privações e perigos.

Passaram-se algumas semanas desde que me deitara ao relento num colchonete, pela primeira vez. O local, mais tranquilo do que os outros, era uma esquina no setor azul, da cidade. Sabia que Newton tinha bom faro. Vi o seu automóvel rondar várias vezes o bairro. Fiz de conta que me escondia. Afinal, numa noite sem lua, caí nas mãos do homem. Fingindo, esbocei grande resistência. Ele amarrou-me os punhos e me jogou na mala do carro, como costumava fazer com as outras. Bati-me, fiz barulho. Tudo em vão. Como eu desejava, descobri-me no motel, assim como as outras.

Newton é um político influente na região, foi eleito duas vezes prefeito e exerce o segundo mandato de deputado estadual. Eu fora secretária de educação num dos seus mandatos de prefeito. Disfarcei-me ao máximo para não ser desmascarada. Ele jamais vira mendiga tão enegrecida, tão fedida como eu.

Já cheirosa e envolta em seda, trepei com ele. O homem levou-me ao delírio.

Dali em diante, preparei-me para que o encontro se repetisse outras vezes. Mas Newton demorou a voltar. Vivi com mendiga durante várias semanas, atravessei várias madrugadas sob o sereno do outono e tive de escapar tantas outras vezes de homens inescrupulosos. Deparei novamente com o desconhecido que me despira, sobre quem já falei.

Na segunda vez que Newton me tirou da rua, numa noite fria, consegui conversar com ele. Dizia não gostar de assunto com as mendigas, nada tinham a acrescentar, apenas as fodia. Representei o estereótipo da mulher rude, mas com alguma inteligência.

“Você seria capaz de casar com uma mendiga?”, perguntei.

Ele disse que não. “As esposas são muito limpas”, falou e caiu na gargalhada.

“Você não gostaria de levar uma mendiga com você, quando vai à capital como deputado?”

“Só se for uma mulher muito especial, na capital há também mendigas interessantes.”

Minha esperança foi por água abaixo. Trepei com ele uma segunda e terceira vez. Quando me deixou na rua, no final da madrugada, prometi a mim que não mais representaria aquele papel.

Passaram-se dois meses. Reparei cartazes nos muros da cidade com o desenho do rosto que era o meu quando me transformava em mendiga.

Já que não mais apareci, Newton procurava por mim. Havia um telefone abaixo do desenho, na verdade um retrato falado. Liguei ao número indicado. Um homem atendeu. Sou a mendiga que o deputado procura.

Não esperei doze horas. Um motorista particular me veio buscar no local que indiquei. Quando encontrei Newton, ele disse que se apaixonara por mim. Tive de rir.

“Não vai dizer que você quer casar com uma mendiga?”

“Casar, não”, afirmou categórico, “mas quero levar você ao Rio de Janeiro.”

No Rio, essas coisas acontecem em outro patamar. Trata-se de uma cidade perigosa. E o perigo excitava Newton. Ele constantemente me pedia para contar como fiz para me livrar dos homens que me assediavam. Eu inventava histórias. Ora dizia que escapara de todos, ora que um deles me deixara nua a madrugada inteira e me comera de modo exemplar. Contava como eu gozara. Depois Newton pedia que eu fizesse com ele da mesma forma. Certa vez contei do homem que, em M., me fizera voltar nua pra casa. Não calculava que tal assunto excitaria tanto a Newton. Pediu para fazer comigo do mesmo jeito.

“Mas o quê?, vamos trepar na rua?”, assustei-me.

Ele não quis saber. Trepamos na rua. Ele, um homem tão importante. Depois, deixou-me, do mesmo modo como o outro fizera.

"Ei, volte aqui."

Mas ele não voltou. Ou melhor, atirou-me algum dinheiro, três notas de cem. Eu, nua, com o dinheiro numa das mãos. Onde enfiaria as notas?

A cada encontro o homem oferecia-me uma quantidade maior de notas. Sou uma pessoa normal, gosto de dinheiro, portanto, a situação passou e me agradar. Logo arranjei um jeito de manter as notas e escapar ilesa, embora nua. Mulheres bonitas atraem sorte.

Um dia ele resolveu levar-me a Brasília.

“Newton, lá há mendigas à vontade, você não precisa me levar”, alertei.

Mas o homem me deu vestidos novos, maquiagem, tudo que eu precisava. E lá fui com ele. Sempre mudando o rosto. Sempre temendo ser desmascarada. Transamos no final da Asa Sul, sobre um gramado comprido. Ele deixou-me nua com dez notas de cem. Nunca pensei que a vida na capital federal fosse tão fácil.

Após certo tempo, Newton passou a se interessar pelas mendigas de Brasília. E não duvidei ao perceber no rosto de uma delas algum disfarce.

Na última vez em que me vesti de mendiga no Planalto Central, acercou-me um automóvel. Não era Newton. Mesmo assim não demorei a reconhecer o motorista. Era Mariano, marido de Pezinho, a deputada federal mais votada de M. Antes de casar com ela, ele fora um mendigo de verdade. Mesmo assim o homem não deixou de me reconhecer.

"Quero comer você, Elinete, a secretária de educação do prefeito Newton."

"Me coma à vontade, respondi convidativa, mas seja cavalheiro, a mendiga aqui quer uma trepada bem dada numa cama de hotel."

quinta-feira, novembro 06, 2014

Do mesmo modo como me havia encontrado

Será que todas as pessoas que conhecemos têm alguma função na nossa vida? Quando já morriam minhas últimas esperanças – eram quase cinco da manhã –, ele chegou. Difícil usar o pronome “ele”, porque eu não sabia e nem cheguei a saber quem era. Mas como pude observar de pouco em pouco, tratava-se de alguém muito educado. Parou o automóvel e perguntou se eu precisava de algo. Não me feriu com os olhos, manteve a suavidade das pessoas de bom coração. Nem desconfiou que fosse uma armadilha. Não sirvo de isca, sei bem disso. Entre os inúmeros papéis que sei representar o de isca é o mais temerário. Acreditou na minha sinceridade. Entrei e sentei no banco ao seu lado. O homem deu a partida e manteve-se em silêncio por um bom tempo. Quando já seguíamos a rodovia, talvez dois ou três quilômetros à frente, foi que perguntou onde eu desejava ficar. Você acha que devo ficar em algum lugar?, falei e cruzei as pernas, a direita sobre a esquerda. Sempre se tem um destino, respondeu. Continuou seguindo, ainda estava escuro, os faróis delineavam a madrugada, que já não custava a se abrir à claridade da manhã. E então?, onde você mora?, ele quis saber. Disse o endereço. Mas não me leve agora, guie mais um pouco, cinco ou dez minutos, vou ligar a uma amiga. Ele assentiu ao meu pedido. Fiz a ligação. Mayra não demorou a atender. Contei em poucas frases a minha situação. Ela sugeriu que eu subisse para Lumiar. Mas não falei logo ao meu afável recém-conhecido. Ele teria de forçar o carro, desviar-se do caminho. Respondi apenas com um ok e desliguei. Tudo bem, disse a ele com a voz baixa, você já entendeu, acrescentei. Sim, sorriu e continuou olhando à estrada. Sabe em Casimiro, a entrada para o Sana?, perguntei. Sei, sorriu de novo. Você não vai precisar me levar até lá, alertei, logo na entrada está bom, depois me viro. Tem certeza?, interpôs. Bem, caso você queira subir um pouquinho... Mas não é para ir ao Sana, e também não é para lá que vou. Sua amiga mora na estrada?, sua voz soou sonora, ao longe já se via o céu avermelhar-se. Lumiar, foi a minha vez de sorrir, talvez um sorriso branquinho. É um pouquinho antes, ele assegurou. Isso, às vezes passo um fim de semana ou outro com ela, eu mostro onde me deixar, ela vem me pegar. O homem guiou até o local. Demoramos trinta minutos. Quando parou, já clareava. Tudo bem?, eu disse antes de abrir a porta. Ele olhou-me como alguém de bom caráter, no entanto uma ponta de decepção escorria de seus olhos, acho que gostou de mim. Como qualquer homem, não queria perder a oportunidade. Tudo, respondeu acentuando o sorriso. Beijei-o, peguei uma de suas mãos e a coloquei sobre minha coxa direita. Ele compreendeu o que eu quis dizer. Minha amiga ainda demoraria vinte ou trinta minutos, então?, insisti. Então, completou. Daí, aconteceu. Mas mantivemo-nos discretos. Só não conseguimos o beijo. No final, quando saí do carro, perguntou tenho uma camiseta na mala, que tal? Não precisa, minha amiga já vem, lancei-lhe um beijo de despedida, pode ir, não precisa se atrasar por minha causa. Ligou o carro, deu um adeusinho e se foi. Deixou-me, do mesmo modo como me havia encontrado. 

quinta-feira, outubro 30, 2014

Sobreviver no Rio de Janeiro

Eu tinha visto um filme sobre um escritor que vai à França para lançar um romance. E lá ele conhece a mulher de sua vida. Quem desejar mais detalhes poderá encontrar o filme com certa facilidade. Não lembro o nome. O que quero dizer é o seguinte. Fato semelhante aconteceu comigo. Passeava pelo Rio e, ao acaso, conheci um homem. Não sei se o de minha vida, mas alguém interessante. Tudo aconteceu quando faltavam três horas para eu deixar a cidade.

Sou de Curitiba, estava no Rio pela primeira vez, para passar um fim de semana e mais a segunda-feira, quando embarcaria para Congonhas. Restava-me ainda três dias em São Paulo antes de retornar à minha cidade.

Andava na Visconde de Pirajá em busca de um supermercado. Como não sabia onde ficava, perguntei à primeira pessoa que passou.

Um mercado?, repetiu a palavra e se pôs a pensar. Ah, sim, já lembrei, vou passar na porta, levo você até lá.

E fomos nós. Acabamos conversando um pouco. Falei sobre a cidade, disse que os cariocas são muito receptivos.

Receptivos?, perguntou, acho que são muito dados, acrescentou.

Sorri.

É preciso saber sobreviver nesta cidade, ele falou e também sorriu.

Sobreviver?

Isso. Sobreviver no Rio de Janeiro. Dá um conto, não?

Um conto, concordei, muito interessante. Você é escritor?

Quem sabe?, sorriu.

Ao chegarmos à porta do mercado, ele estava fechado. Era dia do comércio. Suspirei sem esperanças. O homem tentava encontrar uma solução.

O que você deseja comprar?

Respondi que compraria uma garrafa de vinho. Queria levá-la a São Paulo.

Vamos mais à frente, acho que há uma pequena loja, uma espécie de Delicatessen, como funciona também como cafeteria pode ser que esteja aberta, sugeriu.

Andamos mais duas ou três quadras, a loja estava aberta.

Entrei e perguntei se vendiam vinho. A vendedora disse sim. Escolhi o vinho. A mulher o colocou numa bolsa de papelão, a garrafa envolta em papel fino.

Antes de me despedir do homem, ainda lhe perguntei sobre a frase que dissera. Sobreviver no Rio de Janeiro.

Não repare, acho que falei bobagem, é porque nos últimos anos a cidade tem fama de violenta.

Ah, deixei escapar e sorri. Onde fiquei não vi nada disso.

Então, você encontrou o seu paraíso. Não quer tomar um café?, convidou,

Como ainda estava cedo, aceitei. Sentamos. A garçonete veio nos atender.

O homem se chamava Ronaldo. Começou a tecer uma história sobre um escritor argentino que residiu durante muito tempo em Paris. Tenho um amigo que diz que se deixamos alguém falar não podemos prever o que pode nos acontecer. Ronaldo era mesmo envolvente. Contou a história com tamanha paixão, que sua simpatia enredou-me.

Eu viera ao Rio sozinha, estava hospedada na casa de uma amiga. Ela teve de trabalhar todos os dias enquanto estive na cidade. No último momento, aparece alguém simpático, mas a pouco para eu partir. Não posso deixar isso se perder, pensei.

Acabamos o café. Era tão bonitinho o lugar.

Você mora aqui perto, indaguei.

Um pouquinho mais adiante.

Você acha que as pessoas são sozinhas?, perguntei. Não repare é uma dúvida, fruto de uma longa história.

Ele a princípio não respondeu.

Quero dizer, os seres humanos são incomunicáveis, acrescentei.

De certa forma, sim. Estamos conversando aqui, neste momento, mas não conseguimos nos comunicar como gostaríamos, não é mesmo?, ele disse.

E se tentamos, podemos estragar tudo, completei.

Isso, arrematou, nesse caso é melhor deixar faltar do que estragar por excesso.

Acho que consegui me comunicar com você, eu disse e sorri.

Nem tanto, talvez apenas um lampejo, acrescentou,

Ronaldo deu de ombros. Achei nele uma ponta de malícia.

Bem, tenho de ir.

Você tem certeza de que precisa ir a São Paulo?, insistiu.

Não é que eu precise ir a São Paulo. É um complemento da minha viagem.

E onde você vai ficar?, quis ele saber.

Falei o local.

Quem sabe apareço, aí a gente continua a conversa.

Será?, demonstrei satisfação, mas ficou o sinal de dúvida.

Nunca se sabe, afirmou meio solene. E você, não pensa na possibilidade de desistir de partir?

Não respondi, apenas fiz um gesto de desalento.

Despedimo-nos.

Não esqueça a garrafa de vinho, alertou.

Segurei a pequena bolsa e acenei a Ronaldo mais uma vez. Na calçada as pessoas iam de um lado para outro, e eram bonitas. Na rua os carros e ônibus trafegavam com algum despeito.

Fiquei com o número dele e ele com o meu. Quanto ao futuro, quem sabe.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Sentadas no sofá

Apesar do meu corpo ter começado a dar ares de agitação, fiquei quieta em casa. Era hora de ele sair. Gostava de encontrá-lo, dizer boa tarde, sorrir. Mas achei melhor não exagerar. Olharia apenas pelo olho mágico da porta de entrada do meu apartamento, tomaria cuidado para que meus pés não dessem sombra ao lado de fora. Como não ouvia ruído algum, resolvi esperar mais um pouco. Vi no portal direito uma marquinha, ligeiro descascado, alguém poderia tê-la feito com a unha ou poderia ser ação do tempo. Lembrei uma tarde quando ainda era menina, fiz uma marca semelhante na porta do banheiro, queria deixar meu sinal naquela tarde chuvosa. Minha mãe saíra e eu me sentia muito só. Apenas a empregada, que estava entretida com o serviço da cozinha. A marca se foi, o apartamento ficou no tempo, mas a lembrança permaneceu, talvez um modo de acentuar o momento de tristeza e solidão. Agora aquele outro traço no portal de entrada e eu sem saber como aparecera. Será que eu mesma fora a autora, numa atitude de impaciência enquanto aguardava alguém que teimava não chegar? Não sabia responder. Vestia apenas uma camiseta de malha, descia até um tantinho abaixo do bumbum, acho que deixava as beiradinhas de fora. Caso estivesse na rua, tal vestimenta só seria concebível para ir à praia. Escutei alguém se mover no corredor do andar. Aproximei-me e olhei pelo buraquinho da porta. Um entregador de pizza. Alguém abriu e recebeu a encomenda. Voltou alguns segundos depois e despachou o rapaz. Ninguém recebe uma pizza, tanto mais daquele tamanho, para comer sozinho. Seria eu a convidada? Voltei à sala e sentei na poltrona que fica a alguns passos da janela. No prédio em frente um garoto apareceu de relance na janela, seu andar era o sétimo, um acima do meu. Pensei em observar o que ele fazia, mas logo desapareceu. O céu estava claro, faltava pouco para o anoitecer. De repente escutei ruídos fora do apartamento. Corri e olhei de novo pelo olho mágico. Duas moças, acho que ainda adolescentes, batiam à porta dele. Usavam vestidinhos curtos, coladinhos ao corpo. Morri de inveja e fiquei furiosa. Meu corpo ardeu, começou dar mais sinais de inquietação. Não que eu morresse de amor pelo homem, mas o fato de ter estado em seus braços duas vezes e agora me sentir descartada tocava-me os brios. Corri até a janela e fechei a cortina. O apartamento mergulhou num anoitecer antecipado. Tirei a camiseta e deitei nua no chão, bem no meio da sala. Segurei os seios com ambas as mãos. Tocaram a minha campainha. Quem seria?, pensei preocupada, não recebi nenhum aviso da portaria. Levantei-me com cuidado, quis procurar a blusa, mas já não sabia onde estava. A porta se tornara transparente, revelava com mais intensidade a minha nudez. Senti-me despojada das roupas e da bagagem, num quarto de hotel, abandonada pelo amante. Corri à porta e olhei o lado de fora. Era ele. Vestia uma camisa de gola e calça jeans. Estava bem calçado. Seus sapatos sempre me causaram admiração. Ele aguardava com certa ansiedade. Movi o trinco e abri a porta, devagar. Oi, cheguei a dizer. Oi, revidou, quero chamar você pra comer uma pizza. Uma pizza?, oh, estou gorda, suspirei. Um pedacinho apenas, insistiu. Ok, respondi. Saí do apartamento e o beijei. Ele me abraçou, vamos, então. O homem sabia que junto a mim sempre se surpreenderia. O que foi?, perguntei enquanto ele se mantinha enfeitiçado pelo meu corpo, não vamos mais?, completei. Vamos, vamos, sim, depois explico às minhas amigas que você é maluca mesmo. Beijou-me outra vez e colocou um dos braços sobre o meu ombro. Sabe que já fiz o síndico do prédio onde morei se masturbar por uma semana?, eu havia falado a ele na última vez em que nos encontramos. Como?, tentava ele entender. O homem sempre me olhava de rabo de olho quando eu passava, por isso num certo dia fui ao corredor nua, só pra ele me ter no monitor de seu computador. E neste edifício aqui?, perguntou com sinais de preocupação. Aqui, respondi, ainda não instalaram câmeras. As meninas nos esperavam, as duas sentadas no sofá que há na sala.

quarta-feira, outubro 15, 2014

Gosto mesmo é de poesia

Você está me convidando para sair logo assim de primeira...

Foi você quem olhou pra mim e sorriu, correspondeu ao meu aceno.

Sim, mas acho que cometi um erro, peço desculpas, me dê licença.

Eu falava com um homem, no calçadão, em Ipanema. Saíra de casa para deixar um pouco os livros, respirar o ar do entardecer, beber água de coco num quiosque da orla. Um homem, no entanto, passou por mim. Sei que as mulheres devem andar com os olhos baixos, não é bom encarar os homens. Mas naquele momento acabei por espiá-lo de soslaio, não me controlei e sorri. Ele veio atrás. Eu devia ter desconversado rapidamente, cruzado a avenida e partido. Continuei, porém, minha caminhada com ele ao meu lado. Andamos como dois velhos amigos. Depois de alguns minutos, já entrara eu na conversa dele. Todos sabem que há homens terríveis, basta escutá-los por pouco que seja e já nos conquistam.

Você gosta de ler, não?, perguntou antes que eu atravessasse a rua.

Como descobriu?, respondi desarmada.

Intuição.

Aceitei a explicação de forma simpática. Ele, então, listou uma quantidade enorme de autores, principalmente de romancistas.

Como sabe que leio romances?

Intuição, continuou. Mas você lê romances inteligentes, tenho certeza.

Adivinhou de novo. E como faço para descobrir esses livros?, queria testá-lo.

Você frequenta as boas livrarias.

Isso mesmo. Você é bom em adivinhações, falei.

Pronto, o caminho estava aberto. Continuamos andando, seguíamos na direção do Jardim de Alá.

Por aqui há uma livraria; como já entardeceu, que tal?, propôs.

Ah, sim, na Visconde de Pirajá, conheço.

Acabamos os dois juntinhos dentro da livraria. Ele me apontava os títulos. Parecia conhecer todos os livros.

Como você sabe sobre tantos autores?

Segredo, respondeu.

Você é crítico literário?

Segredo.

Se for não tem graça, falei, todo crítico é suspeito.

Sou médico.

Médico, que legal!, cheguei a exclamar. Duas pessoas olharam na nossa direção.

Caminhamos para o centro da loja.

Mas gosto mesmo é de poesia, ele falou.

Você é um médico que gosta de poesia. Que legal, fiquei eufórica.

O que há de mal nisso? Os médicos além de serem grandes leitores, também muitas vezes são escritores.

Já pensou que maravilha, frequentar um médico que antes da consulta converse sobre literatura?

Então, essa é a chave, demonstração de bom gosto e de cultura.

Ah, exclamei e sorri para ele, estou precisando tanto de uma consulta assim.

Ele riu, continuou olhando os livros. Comprou dois e me presenteou.

Foi assim que, dois dias após conhecer o homem, fui parar no seu apartamento.

E lá pelas dez da noite, morta de vergonha, pedi: vamos hoje ficar apenas na conversa, ok?

Tudo bem, respondeu, é o que estamos fazendo dede o começo...

quinta-feira, outubro 09, 2014

Nudista anônima

Esse nosso mundo de hoje é movido pela imagem, e ninguém consegue se libertar disso, muito pelo contrário, as pessoas cada vez mais se tornam prisioneiras de fotografias e vídeos, desejam não só aparecer neles mas também mostrá-los a amigos e conhecidos. Outro dia, meu namorado comprou uma câmera nova, com ela é possível fazer todas as fotos ou vídeos que a gente possa imaginar.

Amor, vou fotografar você, ele pediu.

Mas já tenho tantas fotos...

Não faz mal, quanto mais, melhor.

E começou. Clique daqui, clique dali, e veste isso, e veste aquilo, de vestido, de short, de biquíni, até que... nua. Num primeiro momento nada de nu frontal mas, pouco a pouco, chegamos lá.

Olha que essas fotos são salvas automaticamente numa nuvem, a câmera está conectada, avisei.

Nada disso, está offline.

Jura?

Sentei diante do piano e toquei um pouquinho nua, para ele me fotografar.

Acho que, ao todo, o namorado fez mais de trinta fotos. Também apareço no sofá, na janela, na cozinha como se estivesse fazendo comida, entrando no banheiro. E em todas elas nua.

Depois que ele foi embora, comecei a me preocupar. Já tive tantos namorados e sei que os namoros não duram para sempre. Com alguns a briga foi tão feia, que não fomos capazes nem mais de conversar. Como será com esse? E se não caso com ele? Ai, ai, ai. E nem adianta amanhã pedir para ele eliminar as fotos que estão na câmera. Como vou ter certeza se já  não as descarregou em outro aparelho?

Não sei não, acho que me meti numa enrascada. Gosto muito dele e ele de mim, mas todos sabem como são os homens.

Fiquei muito nervosa. Queria desfazer a situação. Mas como? Lembrei-me de um namorado que me pedia para ir nua do lado de fora do seu apartamento e tocar a campainha para ele abrir. No começo, pensei que poderia me deixar nua lá fora pelo resto da noite. Mas com o tempo fui acostumando a não ter medo, porque ele sempre abria e tudo acabava bem. Tive também outro namorado que adorava transar comigo na praia. Bastava entrarmos na água para ele desatar o meu biquíni. Permiti também que me fotografasse nua uma vez. Até hoje me dou com ele, é uma ótima pessoa, creio que um telefonema seria suficiente para trazê-lo de volta. Um relacionamento que acabou mas que deixou saudades. Vou torcer para que com o atual namorado as coisas fiquem sempre bem.

Contei a uma amiga desse meu stress sobre o destino das fotos. Ela rebateu:

Você acostuma, não vai acontecer nada, não.

E se pôs a contar que também já se deixou fotografar sem roupa alguma. Nem se deu conta em que mãos foram parar as fotos.

Quem sabe, me acostumo, me acostumo tanto que amanhã me deixo fotografar nua de novo!, pensei comigo. Ai, não tomo jeito, será que existe alguma sociedade dos nudistas anônimos? Não sei, não. Mas mesmo que exista é capaz de eu aparecer lá peladinha!

quinta-feira, outubro 02, 2014

De graça!

Seria talvez possível que a um ponto da vida o mundo se tornasse óbvio? Vinha pensando nessa questão após sair com um paciente. Acho paciente uma palavra ruim, porque sou dentista e não acho quem senta na cadeira do meu consultório paciente. Mas deixemos isso de lado. Ia com ele pela rua. Fora o último naquela quinta-feira à tarde. Queríamos o café da livraria. Um ambiente agradável, acolhedor. Ele pediu que fôssemos antes ao caixa eletrônico. Entramos numa agência do banco, na Treze de Maio. Esperei a certa distância. Assim que saíram as notas da máquina ele as pegou e guardou na carteira. Ao chegar junto a mim, disse guarda essas pra você, é um presente. Entregou-me duas notas de cem. Não, o que é isso, cheguei a recusar. Mas ele insistiu compre uma coisa bonita, Acabei segurando as notas. Fico aborrecida com isso, sabia?, falei. É pra ajudar a pagar o condomínio, ele disse e começou a rir. Lembrei que uma ou duas semanas antes havia comentado que um paciente me paquerara e dissera que podia me ajudar a pagar o condomínio, pois tinha muito dinheiro e não via oportunidade para gastá-lo, mas o homem insinuou certo namoro comigo. No entanto, este, que estava ao meu lado naquele momento, completou não quero nada em troca. Ri e acabei guardando o dinheiro na bolsa. Sei, é certo que você não queira nada em troca, ironizei, depois completei ah, você é fogo, viu, isso não vai ficar assim não, vamos ver o que posso fazer pra devolver esse dinheiro. Pensei no tratamento dentário que ele fazia comigo. O mundo não se torna tão óbvio, refleti. As notas na bolsa. Aceitei enfim a gratificação. Assim que nos despedimos, no metrô, na estação Largo do Machado, beijei-o e senti um arrepio. Enquanto andava ao ponto do ônibus o arrepio intensificou-se, tocou-me ao fundo o corpo. O óbvio está no meu comportamento, pensei, como mulher sempre gostei de me sentir um pouco prostituta. Psiu, silêncio, disse a mim mesma, ninguém pode saber disso. Falo por mim, nada sei sobre outras mulheres. Mas ressalto, o gosto de me sentir prostituta não me ocupa totalmente, apenas um centímetro. Na verdade, procuro justificativas. Portanto, a aceitação das notas de dinheiro endossava a obviedade do mundo e me levava a entregar-me mais afoita aos afagos daquele homem.

Na sexta seguinte encontrei com ele no mesmo café. Não marcara consulta alguma para aquele dia. Deixei o horário para o encontro. Depois do café permiti que me roubasse a roupa num hotel próximo. Quatro da tarde. Eu a rolar numa cama larga. E o homem dentro de mim. O mundo tornara-se óbvio. Mas teria problema o óbvio? Acho que o não óbvio será, uma madrugada dessas, ele me abandonar pelada num ponto de ônibus. Que fantasia excitante! Quem me contou foi uma paciente. Isso mesmo, uma mulher. Viveu a experiência na própria pele. E duradouro o arrepio. Ai, tenho de disfarçar. Talvez devesse mudar o nome dela. Meu paciente deu-me outros duzentos reais, o óbvio. Eliete, minha paciente, fez de graça! 

quinta-feira, setembro 25, 2014

A princesinha

Este conto tem como autora minha amiga de Glicério, Nuance Lewada. Ela volta ao blog com toda a força e promete muito  mais. Para ler suas contribuições anteriores clique aqui.                        

Christina vem lutando para melhorar o sistema de ensino em sua cidade. Ela acredita que esta é a melhor ação para que o povo aproveite as oportunidades de emprego. Sua amiga Francisca, mais conhecida como Pezinho, há muito tempo saiu de lá para tentar ser deputada  federal e conseguiu se eleger.

Lá em Brasília, Francisca saiu do sério: conheceu pessoas de vários estados, mas a que mais se identificou foi Mariano, um mendigo que no começo tentou ajudar, mas se apaixonou por ele, porque o cidadão lhe apresentava as melhores propostas de posições para fazer sexo. Um dia, Mariano propôs a Pezinho se deliciar sexualmente em todas as asas de Brasília. Pezinho ficou encantada com as diversas chances de ir ao delírio.

Christina ficava sabendo da felicidade de Pezinho. Trabalhando para a própria campanha, as conquistas na saúde avançam. Capacita mais de 4 mil alunos para o mercado de trabalho. E Christina fala, nas entrevistas: “O desenvolvimento continua em nossas mãos”. Em seus pensamentos, vem à tona a vida que a amiga, Pezinho, leva em Brasília.

À noite, mesmo com o corpo cansado, a candidata pensa: “Hoje vi nas ruas um mendigo ainda novo que pode dar um bom caldo”. Pegou o carro e rondou a cidade a procura da caça. Todos os mendigos já dormiam em seus colchonetes e cobertores, nessa época do ano é muito frio por lá, mas o Chico, um rapaz alto, cabelos lisos, olhos esverdeados, ainda vagava.

Christina parou perto dele e ofereceu passeio. Mesmo sem entender nada do que estava acontecendo, Chico entrou no carro. A candidata não foi reconhecida, pois estava de gorro. Christina levou Chico pra um motel fora da cidade. Chegando lá pôde ver melhor a pessoa de rua que ela havia pescado. Encheu a banheira com água morna, meio vidro de sabonete líquido e uma porção máxima de álcool. Pediu pra ele tirar os molambos que vestia e entrasse na banheira.

Chico concordou. Tomou um banho de príncipe. Conversou muito com ele embrulhado nas toalhas do motel. Ele havia vindo do Nordeste tentar a sorte na cidade e não tinha conseguido nada até agora.

Encheu a banheira novamente com sais de sua preferência e disse ter que tomar também um banho. Tirou as roupas aos olhos de Chico, mostrando seus enormes e rechonchudos seios, além de uma vagina espumando de vontades. Beijou o parceiro e o convidou a entrar na banheira.

Os dois se divertindo e conversando muito, Christina se declarou excitada com a presença e o perfume dele. Chico também, que estava a seco por vários meses, se emaranhou com Christina nas águas espumosas daquela banheira. Com um som romântico que ela havia colocado antes da ideia do seu banho, Chico deslizou com o seu pênis duro feito uma rocha no corpo de violão de Christina. Quando ele ia  penetrar na vagina, Christina se lembrou de uma camisinha que mantinha em sua bolsa, que por sinal estava na borda da banheira. Acarinhou o pênis de Chico com sua boca, o que fez o companheiro ir ao delírio, colocando a camisinha em seguida. Fez penetrar o pênis do Chico na vala entre suas pernas e gozou até não poder mais.

Prometeu no outro dia levar roupas limpas para ele e marcar outros encontros, até decidir como ajudar o Chico.

Chico e Christina pareciam viver um conto de fadas. Todos os dias eles se encontravam no mesmo motel. Christina passou a manter a alimentação de Chico, e assim viveram ainda por muito tempo. A eleição chegou e Christina conseguiu ser eleita. Levou Chico pra Brasília, e lá ele não foi mais de rua, e sim o marido de Christina, seu  assessor sexual e importante na Câmara dos Deputados. Como a vida tem seus mistérios! 

quinta-feira, setembro 18, 2014

Que conquista, a minha

Antes eu procurava frases de efeitos para começar um conto. Sempre achei importante e imprescindível ter estilo. E as tais frases, como me davam prazer. Hoje já me sinto senhora de mim, isto é, do meu texto. Não mais necessito copiar literatura alheia. Durante a noite penso no que vivi no dia findo, coloco então certa ordem no caos. Quando acordo, vou direto ao computador. Não tenho dificuldades para transformar a brancura da folha numa obra de imaginação. Já depois de duas ou três frases, voo hábil, como a boa cozinheira que sou acrescento o tempero certo, nem mais nem menos, sutil apenas, nada que faça desandar o almoço, ou a janta, quem sabe.

Ah, meu patrão, como é encantador. Quando o conheci logo pensei vou conquistá-lo, não posso deixar que escape. Passava junto dele, quase a lhe roçar a pele, olhava-o de soslaio. Ele concentrado na leitura, na escrita, no trabalho. Essa vida de escritor é de arrepiar, o homem não pensa em outra coisa, lê e escreve o dia inteiro. Fui contratada como sua secretária. Vocês sabem como isso funciona. Faço de tudo, até mesmo o serviço doméstico. Visto uma bermuda de lycra, uma camisa de malha e mergulho no mar de tarefas que me espera. Sei que ele me olha de rabo de olho quando entro no seu escritório. Já o surpreendi uma ou duas vezes, ele bem sabe, mas o homem tem o poder do disfarce, consegue manter-se frio, distante. No começo pensei se ele me agarra?, grito ou corro? Um homem de seu quilate, porém, não vai partir para um expediente tão baixo, adivinho. Lógico que minhas manifestações de possível desespero também se encaixavam nas gavetas da representação, puro teatro. E demorou até acontecer alguma coisa entre nós. Há aquele toque de mãos, quando fingimos esquecer que estamos pele a pele. A mesma pele do ventre, das coxas, dos seios etc. Escorregamos durante alguns segundos no corpo alheio. Eu mesma afasto as mãos. Tenho a preocupação de não deixá-lo constrangido. Passam-se vários dias sem nos prestarmos a toques mais íntimos, apenas o trabalho, sorrisos e algum meneio meu de cabeça.

A iniciativa tem de ser minha, afirmaria a meus botões caso me fosse tal a roupa. Se deixar ao encargo dele, jamais teremos uma relação além da profissional. Passo a refletir sobre o que fazer, sobre como uma mulher pode conquistar um homem sem se mostrar ridícula. O amor? Não sei, amor como as pessoas o entendem parece enredo de telenovela, e meu patrão não é chegado a elas. Coloco-me em prontidão, descubro a possível trilha a seguir, observar-lhe as leituras. Qual o tipo de livro lê ele, qual o autor, qual o tipo de personagem feminina o interessa? Tem às mãos na maior parte do tempo os livros de Machado de Assis. Mas as mulheres de Machado são superiores aos homens, vencem na inteligência, na astúcia; quando não podem vencê-los abertamente se calam, reflito; com o tempo, percebe-se que ostentam o troféu da vitória. Portanto, não me posso colocar como uma das personagens machadianas, para tal empreitada precisaria de muita leitura, e isso levaria tempo. Descubro, entretanto, outra coisa, um possível caminho para as minhas intenções. Não se pode viver de tanta virtude, eis a verdade, quero dizer, não se pode viver de tanta seriedade. Entre numerosas personagens complexas, muitas virtuosas e outras nem tanto, encontro a vulgaridade. Não se trata de livro de Machado, mas obra traduzida do francês (oh, sempre os franceses), se não me engano um livro que logo depois de publicado foi levado às telas. Tomo o exemplar nas mãos e o folheio. Não passa muito tempo para eu descobrir que se trata de um caso de amor, ou seja, de relação sexual, melhor dizer assim. Um homem procura apartamento e, em meio à visita a um deles, encontra ao acaso uma mulher, que também busca onde morar. Não trocam palavras, apenas ligeiros gestos de cumprimento e de tolerância um com outro. Ambos partem, mas voltam duas ou três vezes, nos dias seguintes. Numa dessas visitas, acabam transando. Tudo acontece com naturalidade. São corpos que se atraem por si sós, ambos necessitam do calor recíproco. Na última visita, no entanto, há um pequeno pacote de manteiga. Acho que trazido pelo homem. Não preciso dizer a que a manteiga se presta. A mulher goza intensamente.

Deixo o livro de lado e continuo o meu serviço. Na manhã seguinte vou ao mercado. Entre as compras trago a manteiga, a mais cara, a mais bonita, a de nome atrativo, que dá asas à imaginação. Meu patrão olha o objeto sobre a mesa e, creio eu, não faz a ligação imediata com o assunto do livro encontrado por mim entre seus papéis. Come o lanche matinal e, apenas no final, olha para mim e sorri. Nesse sorriso, encontro uma ponta de malícia. Digo então... E curvo a cabeça. Começo a desfazer a mesa do café.

Duas horas depois, ao entrar no escritório para lhe levar um café puro, como sempre costumo fazer, ele pede a manteiga. O senhor quer também torradas?, pergunto sem malícia. Não, por favor, apenas a manteiga.

Não preciso dizer mais, confio na inteligência dos meus leitores.